Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:040/18
Data do Acordão:01/31/2019
Tribunal:CONFLITOS
Relator:MARIA JOÃO VAZ TOMÉ
Descritores:CONFLITO NEGATIVO
Sumário:Cabe aos tribunais judiciais conhecer de ação de condenação em que se pede a uma Câmara Municipal a reparação de danos resultantes de acidente por causa de tarefas exercidas no âmbito de Contrato de Emprego Inserção+ celebrado com a autora. (*)
Nº Convencional:JSTA00070864
Nº do Documento:SAC20190131040
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE A COMARCA DE BRAGA, GUIMARÃES, INST. LOCAL – SECÇÃO CÍVEL, JUIZ 2 E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE BRAGA, UNIDADE ORGÂNICA 1.
AUTOR: A……….
RÉU: MUNICÍPIO DE VIZELA.
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA
Objecto:DECISÕES DO TRIBUNAL DA COMARCA DE BRAGA E DO TAF DE BRAGA
Decisão:ATRIBUI A COMPETÊNCIA AOS TRIBUNAIS JUDICIAIS
Área Temática 1:COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA
Área Temática 2:CONTRATO DE TRABALHO
Legislação Nacional:ARTIGOS 211º, N.º 1 E 212º N.º 1 DA CRP E 4º, N.º 4, AL. B) DO ETAF
Aditamento:
Texto Integral: CONFLITO n.º 40/18

Acordam no Tribunal dos Conflitos,

I – Relatório

A………. propôs, no Tribunal da Comarca de Braga/Guimarães, contra a CÂMARA MUNICIPAL DE VIZELA, ação declarativa de condenação sob a forma de processo comum, pedindo a condenação da Ré no pagamento de uma indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais por si sofridos, assim como no reembolso das despesas por si efetuadas.
Alega a Autora que, a 16 de abril de 2013, foi entre si e a Ré celebrado um contrato Emprego-Inserção+ no âmbito da medida contrato emprego inserção+, regulado pela Portaria n.º 128/2009, de 30 de janeiro. Este contrato tinha por objeto a execução de trabalho socialmente necessário na área de serviços gerais (excluído do regime do contrato de trabalho) por um período de um ano, com início a 16 de abril de 2013 e termo a 15 de abril de 2015.
A Autora refere que, sob as orientações da Ré, exercia funções de serviços gerais, nomeadamente de limpeza do Pavilhão Municipal de Vizela, propriedade da Ré.
Menciona a Autora que, a 1 de março de 2014, no exercício das suas funções, sofreu um acidente no seu local de trabalho: enquanto limpava o piso do pavilhão, que se encontrava molhado por infiltrações, escorregou e caiu. Foi transportada para o Centro Hospitalar do Alto Ave.
A Autora solicitou o acionamento do seguro de acidentes pessoais do qual gozava, ao abrigo do contrato celebrado, pedindo que a seguradora lhe concedesse assistência médica. Foi encaminhada para a Cruz Verde – Serviços Assistência Médica, Lda. Perante a cobrança de determinados valores, a Autora foi informada de que não tinha seguro.
A Ré contestou e requereu a intervenção acessória provocada da B….- Companhia de Seguros, S.A.
Tendo considerado “a verificação de uma exceção dilatória de conhecimento oficioso de incompetência material dos tribunais comuns, uma vez que está em causa a responsabilidade civil de entidade administrativa”, o Tribunal da Comarca de Braga convidou as partes a pronunciar-se. Enquanto a Autora pugnou pela competência dos tribunais judiciais, a Ré não se pronunciou.
O Tribunal considerou-se materialmente incompetente, ordenando a remessa dos autos para o Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga (art. 99.º, n.º 2, do CPC). Tendo este tribunal deferido o chamamento aos autos da sociedade B…..- Companhia de Seguros, S.A., esta apresentou contestação.
O Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, por despacho de 3 de maio de 2018, suscitou a possibilidade de se verificar nos presentes autos a exceção de incompetência material para dirimir o litígio. A Autora pronunciou-se pela continuação dos autos neste tribunal e a Ré nada disse.
No despacho saneador, o Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga decidiu que “Nos termos e com os fundamentos expostos declaro o presente Tribunal incompetente em razão da matéria, consequentemente absolve-se o Réu da instância”.
Tendo em conta o requerimento da Autora, de 5 de julho de 2018, o Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga remeteu os autos para o Tribunal de Conflitos.

II - Fundamentação
A) De facto
Relevam os factos mencionados supra.
B) De Direito
A Autora vem deduzir uma ação de condenação pedindo que lhe sejam reparados os danos que a mesma alega haver suportado em consequência de acidente que sofreu por ocasião e por causa das tarefas que exercia no âmbito do Contrato Emprego Inserção+ celebrado com a Ré.
A questão de se saber quais os tribunais materialmente competentes para conhecer de um acidente sofrido por um trabalhador ao serviço de uma Câmara Municipal no âmbito de um contrato de Emprego-Inserção+ não é nova e tem sido objeto de tratamento jurisprudencial, nomeadamente pelo Tribunal de Conflitos. Nesta sede, importa ter especialmente em conta o Acórdão n.º 015/17, de 19 de outubro de 2017, e o Acórdão n.º 053/17, de 25 de janeiro de 2018, deste Tribunal.
1. As entidades públicas administrativas atuam muitas vezes como particulares, recorrendo aos mecanismos do direito privado, não se servindo do seu poder de império para prosseguir os respetivos fins. Têm, para o efeito, igualmente capacidade de gozo de direitos privados, embora circunscrita à satisfação de necessidades públicas incluídas no quadro das suas atribuições (Cfr. HEINRICH EWALD HOERSTER, A Parte Geral do Código Civil Português - Teoria Geral do Direito Civil, Almedina, Coimbra, 1992, p.35.).
ln casu, estabeleceu-se uma relação jurídica contratual entre uma entidade pública, a Câmara Municipal de Vizela, e uma cidadã, A………..
2. A summa divisio tradicional do universo jurídico é aquela que distingue entre Direito Público e Direito Privado.
A divisão do direito objetivo em Direito Público e Direito Privado tem relevância prática na determinação da via judiciária. A CRP dedica à organização dos tribunais os arts. 211.º e ss. Não levando em linha de conta os tribunais com finalidades específicas (o Tribunal Constitucional, o Tribunal de Contas e os Tribunais Militares), verifica-se que existem os tribunais judiciais, por um lado (arts. 211.º, n.º 1, al a), n.º 3 e n.º 4, e 213.º), e os tribunais administrativos e fiscais, por outro (arts. 211.°, n.º 1, al b), e 214.°). Esta divisão dos tribunais é, em parte, expressão da dicotomia Direito Público-Direito Privado”( Cfr. HEINRICH EWALD HOERSTER, A Parte Geral do Código Civil Português - Teoria Geral do Direito Civil, Almedina, Coimbra, 1992, p. 40.).
Se no âmbito de uma relação jurídica surgir um litígio, impõe-se qualificá-la e situá-la para saber se ela pertence ao direito público ou ao direito privado. Em caso de dúvida, a qualificação é feita com base na teoria dos sujeitos. Se essa relação pertence ao direito público, são competentes os tribunais administrativos ou fiscais, de um lado e, de outro, se pertence ao direito privado, são competentes os tribunais judiciais, precisamente os tribunais cíveis (Cfr. HEINRICH EWALD HOERSTER, A Parte Geral do Código Civil Português - Teoria Geral do Direito Civil, Almedina, Coimbra, 1992, p.41.).
Pode dizer-se que não foi ainda encontrado um critério absolutamente satisfatório para a distinção entre Direito Público e Direito Privado (JOÃO BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, Coimbra, 1987, p.65.).
3. De acordo com a teoria dos sujeitos, dominante na doutrina jurídica, o critério de distinção entre Direito Público e Direito Privado não é o interesse nem a relação entre cidadão e Estado, mas antes a norma invocada e aplicada pelos sujeitos da relação jurídica em causa (Cfr. HEINRICH EWALD HOERSTER, A Parte Geral do Código Civil Português - Teoria Geral do Direito Civil, Almedina, Coimbra, 1992, p.38.).
Se se tratar de uma norma que não tem validade para todos, referindo-se exclusivamente aos titulares do poder de império (Estado e outras entidades públicas), conferindo-lhes nesta qualidade os respetivos direitos ou poderes ou impondo-lhes as correspondentes obrigações, estar-se-á perante uma norma de direito público. Deste modo, quando uma entidade pública invoca normas deste tipo para justificar e fundamentar a sua atuação, a relação jurídica assim constituída pertence ao direito público (Cfr. HEINRICH EWALD HOERSTER, A Parte Geral do Código Civil Português - Teoria Geral do Direito Civil, Almedina, Coimbra, 1992, p.38.).
Mas quando uma entidade pública, sem invocar aquele tipo de normas, age com base numa norma que pressupõe a igualdade de todos e que possui validade para todos - embora aja no interesse público -, trata-se de uma relação de direito privado. Decisiva é a norma invocada pelo sujeito e destinada a regular a respetiva relação jurídica (Cfr. HEINRICH EWALD HOERSTER, A Parte Geral do Código Civil Português - Teoria Geral do Direito Civil, Almedina, Coimbra, 1992, p.38.).
4. A solução da questão de se saber se um litígio pertence ao direito público ou ao direito privado funda-se na natureza da relação jurídica invocada para fundamentar o pedido. Decisivos para a distinção entre um contrato de direito público e um contrato de direito privado são, por isso, o objeto e o fim contratuais. A natureza do contrato determina-se com base na pertinência do objeto do contrato ao direito público ou ao direito privado (Cfr. HEINRICH EWALD HOERSTER, A Parte Geral do Código Civil Português - Teoria Geral do Direito Civil, Almedina, Coimbra, 1992, p.38-39.).
5. O critério mais divulgado e que se revela mais praticável e suscetível de menos reparos é o chamado critério da posição dos sujeitos.
De acordo com este critério, o direito público caracteriza-se pelo facto de, nas relações por si reguladas, se verificar o exercício de um poder de autoridade pública (publica potestas).
Assim, seriam de direito público aquelas normas que regulam a organização e a atividade do Estado e de outros entes públicos menores (autarquias regionais e locais), as relações desses entes públicos entre si no exercício dos poderes que lhes competem, bem como as relações dos entes públicos enquanto revestidos de poder de autoridade (revestidos de publica potestas) com os particulares. Pelo que as relações de direito público entre os entes públicos e os particulares se caracterizam como relações de desigualdade: aqueles aparecem numa posição de supremacia, pois o órgão do ente público atua no exercício do seu imperium, e os particulares numa posição subordinada (JOÃO BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, Coimbra, 1987, p.65.).
Por seu turno, as normas de direito privado seriam aquelas que regulam as relações em que as partes aparecem numa posição de igualdade ou paridade. Disciplinam, portanto, as relações entre os particulares, ou entre os particulares e os entes públicos, quando estes não intervenham nelas revestidos de um poder de autoridade, mas em pé de igualdade com os particulares. Aqui, nenhuma das partes aparece na posição de supremacia de autoridade pública, pelo que se diz que a posição dos sujeitos nas relações de direito privado é de paridade ou de coordenação - não de subordinação, como no direito público (JOÃO BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, Coimbra, 1987, p.66.).
6. Na apreciação da competência ratione materiae, há que atender à matéria da causa, ao seu objeto, considerado sob o ponto de vista da natureza da relação substancial pleiteada.
A competência dos tribunais em razão da matéria afere-se pela natureza da relação material controvertida, pelos termos em que é formulada a pretensão da Autora.
7. Segundo o art. 211.º, n.º 1, da CRP, “Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais” e, de acordo com o art. 212.º, n.º 3, do mesmo corpo de normas, “Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.
A competência dos Tribunais Administrativos e Fiscais está definida no art. 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (doravante ETAF), aprovado pela Lei n.º 13/2002 de 17 de fevereiro. Reitera-se no art. 1.º, n.º 1, que “Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”. Nos termos do art. 4.º, n.º 4, al b), do ETAF, encontram-se excluídos do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal os litígios “decorrentes de contratos de trabalho, ainda que uma das partes seja uma pessoa coletiva de direito público, com exceção dos litígios emergentes do vínculo de emprego público”.
8. O contrato Emprego-Inserção +, em cuja execução ocorreu o acidente de que se cuida nos presentes autos, insere-se no regime jurídico do Rendimento Social de Inserção criado pela Lei n.º 13/2003, de 21 de maio, integrando o programa de inserção aí previsto.
O contrato em apreço tem a sua disciplina na Portaria n.º 128/2009, de 30 de janeiro. As medidas previstas nesta Portaria enquadram-se numa política ativa de emprego. Complementam os instrumentos de proteção social - como o Rendimento Social de Inserção -, e realizam os objetivos estabelecidos no art. 3.º, do mesmo diploma (a) Promover a empregabilidade de pessoas em situação de desemprego, preservando e melhorando as suas competências sócio-profissionais, através da manutenção do contacto com o mercado de trabalho; b) Fomentar o contacto dos desempregados com outros trabalhadores e atividades, evitando o risco do seu isolamento, desmotivação e marginalização; c) A satisfação de necessidades sociais ou coletivas, em particular ao nível local ou regional”. ).
Ao abrigo do contrato celebrado, a Autora obrigou-se a prestar à Ré trabalho socialmente necessário, na área de serviços gerais, no âmbito do projeto organizado pela Ré e aprovado a 27 de março de 2013. De acordo com a cláusula 3ª, n.º 1, do mesmo contrato, como contrapartida, a Autora percebia “a) Uma bolsa de ocupação mensal, de montante igual ao valor do Indexante dos Apoios Sociais; b) Um subsídio de alimentação referente a cada dia de atividade, de valor correspondente ao atribuído à generalidade dos trabalhadores do primeiro outorgante ou, na sua falta, ao atribuído aos trabalhadores que exerçam funções públicas; c) O pagamento das despesas de transporte, entre a residência habitual e o local de atividade, se não for assegurado o transporte até ao local de execução do projeto; d) Um seguro que cubra os riscos que possam ocorrer durante e por causa do exercício das atividades integradas no projeto de trabalho socialmente necessário”.
A prestação de trabalho tinha lugar na área do Município de Vizela e efetuava-se de acordo com o horário legal e convencionalmente em vigor para o setor de atividade onde se insere o projeto da medida Contrato Emprego-Inserção+, conforme a cláusula 2ª do contrato em apreço.
Sobre a Autora recaíam os deveres de “a) Aceitar a prestação de trabalho necessário no âmbito do projeto, desde que aquele reúna, cumulativamente, as seguintes condições: a1) Seja compatível com a capacidade física e com a qualificação ou experiência profissional do segundo outorgante; a2) Consista na satisfação de necessidades sociais ou coletivas ao nível local ou regional; a3) Permita a execução das tarefas de acordo com as normas legais de segurança e saúde no trabalho; a4) Não corresponda ao preenchimento de postos de trabalho nos quadros de pessoal do primeiro outorgante”, “b) Tratar com urbanidade o primeiro outorgante, seus representantes e demais colaboradores, bem como os outros participantes no projeto”, “c) Guardar lealdade ao primeiro outorgante, designadamente, não transmitindo para o exterior informações de que tenha tomado conhecimento durante a execução do projeto”, “d) Utilizar com cuidado e zelar pela boa conservação de equipamentos e demais bens que lhe sejam confiados, pelo primeiro outorgante ou seus representantes, no decurso da execução do projeto” e “g) Aceitar emprego conveniente e/ou formação profissional considerada relevante para a integração no mercado de trabalho, caso lhe venha a ser proposto pelo IEFP, IP no decorrer do projeto” (cláusula 4ª).
A Autora estava também sujeita ao controlo de assiduidade, nos termos da cláusula 5.ª, do contrato sub judice.
Importa igualmente levar em linha de conta que a Ré, enquanto destinatária do trabalho prestado pela Autora, era responsável pelo pagamento de uma parte da bolsa a que a última tinha direito, nos termos do art. 13.º, n.º 3 e n.º 5, da Portaria n.º 128/2009. A bolsa e os restantes componentes retributivos pagos pela Ré à Autora, tendo a sua causa na prestação de trabalho, distinguem-se do Rendimento Social de Inserção, de que a Autora beneficiava.
Pode afirmar-se que a Autora e a Ré celebraram um contrato de trabalho subordinado.
9. A Autora alega que, no exercício das suas funções, como consequência de haver escorregado no pavimento molhado, sofreu várias lesões, designadamente um traumatismo craniano, que originaram incapacidade para o trabalho.
As funções em causa eram desempenhadas nos termos de um Contrato de Inserção-Emprego+ celebrado com a Câmara Municipal de Vizela.
A Ré era a destinatária do trabalho prestado pela Autora, enquadrava e dirigia esse trabalho, assim como assumia a obrigação de pagar parte da contrapartida devida à Autora pelo trabalho por si desenvolvido. Esta contrapartida, por seu turno, não se confundia com o Rendimento Social de Inserção, de que a Autora beneficiava.
O acidente sofrido pela Autora é suscetível de ser considerado como um acidente de trabalho, nos termos dos arts 3.º, 8.º e 9.º, da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro. Na verdade, este acidente subsume-se ao conceito de acidente de trabalho previsto no art. 8.º, n.º 1, segundo o qual “é acidente de trabalho aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza direta ou indiretamente, lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução da capacidade de ganho ou a morte”.
Além do mais, independentemente da natureza jurídica da relação estabelecida entre a Ré e a Autora, a situação sub judice cabe na previsão normativa do n.º 1 do art. 3.º, de acordo com a qual “o regime previsto na presente lei abrange o trabalhador por conta de outrem de qualquer atividade, seja explorada ou não com fins lucrativos”. De resto, conforme o n.º 2, “Quando a presente lei não impuser entendimento diferente, presume-se que o trabalhador está na dependência económica da pessoa em proveito da qual presta serviços”. Na verdade, a Lei n.º 98/2009 estabelece de forma ampla o seu âmbito de aplicação no que toca aos acidentes de trabalho. Por conseguinte, sendo a R destinatária e responsável pelo trabalho prestado pela Autora, pode dizer-se que esta exercia a respetiva atividade “por conta” da R.
Importa também recordar que, conforme o art. 9.º, n.º 1, da Lei n.º 98/2009, não se afigura essencial que a atividade, no âmbito da qual o acidente se verifica, seja desenvolvida no âmbito de uma relação de trabalho subordinado.
Pode, pois, qualificar-se a queda sofrida pela A como um acidente de trabalho nos termos do referido art. 8.º, n.º 1, porquanto ocorreu “no local e no tempo de trabalho” e produziu “direta ou indiretamente lesão corporal, perturbação funcional ...” de que resultou “redução na capacidade de trabalho ou de ganho ...”. Acresce que o regime previsto na Lei n.º 98/2009 (Que estabelece o Regime Jurídico dos Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais.), conforme o art. 3.º, n.º 1, “abrange o trabalhador por conta de outrem de qualquer actividade, seja ou não explorada com fins lucrativos”. Ora o acidente ocorreu durante o exercício de atividade por conta da Ré. Por isso, a Autora sofreu um acidente de trabalho, regulado pela Lei n.º 98/2009.
10. A entidade por conta de quem o trabalho é prestado é obrigada a transferir a responsabilidade pela reparação prevista na Lei n.º 98/2009 para “entidades legalmente autorizadas a realizar este seguro”, conforme o art. 79.º, n.º 1. O regime jurídico dos acidentes de trabalho e doenças profissionais, plasmado na Lei n.º 98/2009, é parte integrante do regime do contrato de trabalho consagrado no Código do Trabalho. O art. 284.º deste corpo de normas remete a regulamentação da prevenção e reparação de acidentes de trabalho e doenças profissionais para “legislação específica”, em que se consubstancia, justamente, a Lei n.º 98/2009.
11. Apesar de a Autora se encontrar ao serviço de uma autarquia local, o sinistro não pode considerar-se um acidente em serviço, nos termos do DL n.º 503/99, de 20 de novembro, que estabelece o Regime Jurídico dos Acidentes em Serviço e das Doenças Profissionais no âmbito da Administração Pública. Com efeito, as funções da Autora não são suscetíveis de serem qualificadas como “funções públicas”, nos moldes e para os efeitos do disposto no art. 2.º, n.º 1 e n.º 2, do mesmo diploma legal.
Em conformidade com o art. 2.º, n.º 1, do DL n.º 503/99, “O disposto no presente decreto-lei é aplicável a todos os trabalhadores que exercem funções públicas, nas modalidades de nomeação ou de contrato de trabalho em funções públicas, nos serviços da administração directa e indirecta do Estado” e, de acordo com o n.º 2, “O disposto no presente decreto-lei é também aplicável aos trabalhadores que exercem funções públicas nos serviços das administrações regionais e autárquicas e nos órgãos e serviços de apoio do Presidente da República, da Assembleia da República, dos tribunais e do Ministério Público e respectivos órgãos de gestão e de outros órgãos independentes”. Acresce que, conforme o n.º 3, “O disposto no presente decreto-lei é ainda aplicável aos membros dos gabinetes de apoio quer dos membros do Governo quer dos titulares dos órgãos referidos no número anterior” e, nos termos do n.º 4, “Aos trabalhadores que exerçam funções em entidades públicas empresariais ou noutras entidades não abrangidas pelo disposto nos números anteriores é aplicável o regime de acidentes de trabalho previsto no Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto, devendo as respectivas entidades empregadoras transferir a responsabilidade pela reparação dos danos emergentes de acidentes de trabalho nos termos previstos naquele Código”. Por seu turno, de acordo com o n.º 5, “O disposto nos números anteriores não prejudica a aplicação do regime de protecção social na eventualidade de doença profissional aos trabalhadores inscritos nas instituições de segurança social”. Por último, de acordo com o n.º 6, “As referências legais feitas a acidentes em serviço consideram-se feitas a acidentes de trabalho”.
Ora a circunstância da Autora, que celebrou com a Ré um Contrato Emprego-Inserção +, não está contemplada em nenhuma das hipóteses previstas no art. 2.º. A relação jurídico-laboral estabelecida entre a Autora e a Ré não se consubstancia num vínculo de trabalho em funções públicas, tal como decorre da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, aprovada pela Lei n.º 35/2014, de 20 de junho. Esse regime, que é aplicável na administração autárquica, por força do disposto do art. 1.º, n.º 2, prevê, no art. 6.º, n.º 1, as modalidades de vínculo e prestação de trabalho para o exercício de funções públicas, que se traduzem no vínculo de emprego público e no contrato de prestação de serviço. Conforme o n.º 3, as modalidades do vínculo de emprego público são o contrato de trabalho em funções públicas, a nomeação e a comissão de serviço (Por seu turno, de acordo com o art. 10.º, n.º 2, da Lei n.º 35/2014, as modalidades do contrato de prestação de serviço para o exercício de funções públicas são o contrato de tarefa e o contrato de avença.).
Não se havendo estabelecido entre a Autora e a Ré qualquer vínculo de emprego público (Nem tão pouco de prestação de serviço para o exercício de funções públicas. ), pois nenhuma daquelas modalidade de vinculação se verifica no caso dos autos, parece que o acidente em apreço não pode, assim, considerar-se abrangido pelo Regime Jurídico dos Acidentes em Serviço e das Doenças Profissionais no âmbito da Administração Pública. Não se tratando, por isso, de litígio emergente do vínculo de emprego público, afasta-se, nos termos do art. 12.°, da Lei n.º 35/2014, a competência dos tribunais administrativos e fiscais. Repare-se, ainda, que, conforme o art. 4.º, n.º 4, al. b), do ETAF, “Estão igualmente excluídas do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal” a “(…) apreciação de litígios decorrentes de contratos de trabalho, ainda que uma das partes seja uma pessoa coletiva de direito público, com exceção dos litígios emergentes do vinculo de emprego público”.
12. Afigura-se igualmente relevante levar em linha de conta que os tribunais judiciais são tribunais de competência genérica, diferentemente dos restantes tribunais, cuja competência se encontra delimitada pelas matérias que lhes são especialmente atribuídas. Por isso se diz que a competência dos tribunais judiciais tem caráter residual, uma vez que são competentes para julgar qualquer litígio cuja competência não seja conferida a outros tribunais. São, pois, da competência dos tribunais judiciais todas as causas cujo objeto consista numa situação jurídica regulada pelo direito privado, de um lado e, de outro, todas as causas que, apesar de não terem por objeto uma situação jurídica disciplinada pelo direito privado, não são legalmente cometidas a qualquer outro tribunal (Cfr. Acórdão do TRC de 12 de setembro de 2017 (ANTÓNIO DOMINGOS PIRES ROBALO), Proc. n.º 1021/16.7T8GRD.C1 - disponível para consulta em www.dgsi.pt. ).
13. De acordo com MANUEL DE ANDRADE (ln Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, Coimbra, 1979, pp 90-91.), a propósito dos elementos determinativos da competência dos tribunais, “são vários esses elementos também chamados índices de competência (CALAMANDREI). Constam das várias normas que provêem a tal respeito. Para decidir qual dessas normas corresponde a cada um, deve olhar-se aos termos em que foi posta a ação - seja quanto aos seus elementos objetivos (natureza da providência solicitada ou do direito para o qual se pretende a tutela judiciária, facto ou ato donde teria resultado esse direito, bens pleiteados, etc.), seja quanto aos seus elementos subjetivos (identidade das partes)”. A competência do tribunal - ensina REDENTl, “afere-se pelo quid disputatum (quid decidendum, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum)”; é o que tradicionalmente se costuma exprimir dizendo que a competência se determina pelo pedido do autor. E o que está certo para os elementos da ação está certo ainda para a pessoa dos litigantes”.
Foi também neste sentido que se fixou a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça (Cfr. Acórdão do STJ de 12 de janeiro de 2010 (MOREIRA ALVES), Proc. n.º 1337/07.3TBABT.E1.S1, onde se refere que “como se deixou já dito e se decidiu no, processo n.º (…) “Para decidir a matéria da exceção, da incompetência material há que considerar a factualidade emergente dos articulados, isto é, a causa petendi e, também o pedido nos precisos termos afirmados pelo demandante” e mais adiante “no fundo, o que sucede com a competência do tribunal, sucede também com outros pressupostos processuais (legitimidade, forma de processo), ou seja, é a instância - no seu primeiro segmento consubstanciado no articulado inicial do demandante - que determina a resolução desses pressupostos””; Acórdão do STJ de 13 de março de 2008 (SEBASTIÃO PÓVOAS), Proc. n.º JSTJ000 - disponíveis para consulta em www.dgsi.pt.) e do Tribunal de Conflitos (Cfr. Acórdão do Tribunal de Conflitos de 8 de março de 2017 (MADEIRA DOS SANTOS), Conflito n.º 012/15 - disponível para consulta in www.dgsi.pt. Com efeito, “I - Se o fundamento da acção for uma relação laboral de direito privado, na qual os autores filiam o direito que invocam «in judicio» contra o réu, deve a causa, atento o modo como vem configurada «in initio Iitis», ser conhecida na jurisdição comum. II - A competência «ratione materiae» dessa jurisdição não se dissipa por tal relação laboral porventura ter sido transposta para um enquadramento de direito público, já que isso, na medida em que negaria o direito invocado, concerne ao mérito do pedido". A questão da competência decide-se pelos elementos essenciais da configuração da acção tal como o autor a apresenta. Como ao A o configura, o litígio respeita a matéria não incluída na jurisdição administrativa; Acórdão do Tribunal de Conflitos de 25 de janeiro de 2018 (MADEIRA DOS SANTOS), Conflito n.º 053/17 - disponíveis para consulta em www.dgsi.pt.).
15. O acidente em causa observa os requisitos suficientes e necessários para ser considerado como um acidente de trabalho nos termos da Lei n.º 98/2009 e, em virtude da relação do regime destes acidentes com o regime jurídico do contrato de trabalho, por força do disposto no art. 4.º, n.º 4, al b), do ETAF, a competência para conhecer do litígio sub judice deve ser atribuída aos tribunais judiciais.
Na verdade, embora a relação entre a Autora e a Ré contenha elementos de natureza administrativa, em virtude do estatuto de beneficiária do Rendimento Social de Inserção da Autora, o litígio resolve-se pela aplicação do direito privado, do regime dos acidentes de trabalho que é parte integrante da disciplina jurídica do contrato de trabalho.

III - Decisão
Termos em que se decide resolver o presente conflito de jurisdição atribuindo a competência para conhecer do presente processo aos Tribunais Judiciais (Cfr. Acórdão do Tribunal de Conflitos de 25 de janeiro de 2018 (MARIA BENEDITA URBANO), Conflito n.º 053/17 - disponível para consulta em www.dgsi.pt.).

Sem custas.
Lisboa, 31 de janeiro de 2019. – Maria João Romão Carreiro Vaz Tomé (relatora) – Carlos Luís Medeiros de Carvalho – Júlio Alberto Carneiro Pereira – José Augusto Araújo Veloso – António Manuel Clemente Lima – José Francisco Fonseca da Paz.