Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:0205/22.3Y2MTS.P1.S1
Data do Acordão:01/11/2024
Tribunal:CONFLITOS
Relator:MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Sumário:I - A discordância quanto ao decidido não é motivo de nulidade do acórdão; a sua arguição, com este significado, é manifestamente infundada.
II - Tendo sido anulado um acórdão para que fosse cumprido o contraditório, por ter a recorrente alegado que apenas com a sua notificação teve conhecimento de que tinha sido junto um parecer do Ministério Público (que é o recorrido) junto do Tribunal dos Conflitos, e constando o parecer do Citius, plataforma por onde é tramitado o processo, a recorrente teve a oportunidade de se pronunciar sobre o parecer antes de proferido o novo acórdão.
III - O princípio do contraditório tem um significado material, que se reconduz ao princípio da igualdade das partes perante a lei e o tribunal e se traduz no reconhecimento do direito das partes a que a sua posição sobre as questões em litígio possa ser considerada pelo tribunal quando as vai decidir.
IV - É este sentido material do contraditório que o n.º 3 do artigo 3.º do Código de Processo Civil traduz, ao revelar, na sua parte final, que o que o respeito do contraditório impõe é que, antes de o juiz decidir “questões”, as partes devem ter disposto “da possibilidade de sobre elas se pronunciarem”
V - Tendo sido notificado às partes o acórdão que anulou o acórdão anterior, para que fosse cumprido o contraditório, e constando do Código de Processo Civil a regra geral sobre a duração e o início da contagem do prazo para as partes exercerem qualquer outro poder processual para além dos que vêm referidos na lei – cfr. artigo 149.º do Código de Processo Civil e artigo 19.º da Lei n.º 91/2019, de 4 de Setembro –, a recorrente dispôs de todos os elementos de que necessitava e do prazo para se poder pronunciar oportunamente.
VI - Anular o último acórdão por falta de notificação do parecer do Ministério Público seria apenas um formalismo sem qualquer fundamento material; razão pela qual a arguição de nulidade por falta de notificação é manifestamente infundada.
Nº Convencional:JSTA000P31799
Nº do Documento:SAC202401110205
Recorrente:A…, LDA
Recorrido 1:MINISTÉRIO PÚBLICO
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Acordam, no Tribunal dos Conflitos:

1. Por deliberação de 17 de Fevereiro de 2022, o Município de Matosinhos aplicou à ora recorrente A..., Lda., uma coima de € 50.000,00 pela prática das contra-ordenações previstas e punidas pelo artigo 4.º, n.ºs 1 e 2, als. b), c) e j), do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação.


Notificada, A..., Lda., impugnou judicialmente a decisão.


Remetidos ao Ministério Público, os autos foram presentes a tribunal, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 62.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, o Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo Local Criminal de Matosinhos.


Por sentença de 30 de Novembro de 2022, o Juiz ... do Juízo Local Criminal de Matosinhos, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, julgou a impugnação judicial procedente e absolveu a impugnante A..., Lda., da prática das contra-ordenações pelas quais havia sido sancionada.


Inconformado, o Ministério Público junto do Juízo Local Criminal de Matosinhos interpôs recurso da sentença para o Tribunal da Relação do Porto, invocando, além do mais, a incompetência material dos Tribunais comuns.


Para tanto, alegou, em suma, que estando em causa ilícitos contra-ordenacionais de natureza urbanística, a competência para julgar a impugnação pertence à jurisdição administrativa, por via do disposto na al. l) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF.


Notificada, a impugnante contra-alegou, pronunciando-se pela rejeição liminar do recurso.


O Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal da Relação do Porto – ... Secção apresentou parecer, concluindo pela competência dos Tribunais Administrativos e Fiscais, por estar em causa matéria exclusivamente urbanística.


A impugnante A..., Lda., ofereceu resposta ao parecer, pugnando, novamente, pela rejeição liminar do recurso.


Por Acórdão de 8 de Março de 2023, o Tribunal da Relação do Porto declarou a incompetência material “da jurisdição comum para conhecer da impugnação apresentada, nos presentes autos, contra a decisão condenatória proferida pela autoridade administrativa”, atribuindo-a à jurisdição administrativa e fiscal, com fundamento na circunstância de se tratar de infracções a normas de direito administrativo em matéria de urbanismo, subsumíveis ao artigo 4.º, n.º 1, al. l), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.


2. Notificada, a impugnante interpôs recurso para o Tribunal dos Conflitos, nos termos do disposto na al. c) do artigo 3.º da Lei n.º 91/2019, de 4 de Setembro, pronunciando-se no sentido de a competência pertencer aos Tribunais da Jurisdição Comum.


Remetidos os autos ao Tribunal dos Conflitos, foi determinado pelo Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça que se seguissem os termos previstos na Lei n.º 91/2019, de 4 de Setembro.


O Ministério Público proferiu parecer no sentido de ser atribuída competência à jurisdição administrativa, por estar em causa matéria “de natureza urbanística”, como se entendeu no acórdão recorrido.


3. Por acórdão de 5 de Julho de 2023, o Tribunal dos Conflitos negou provimento ao recurso, julgando competente a jurisdição administrativa e fiscal.


Notificado deste acórdão, A..., Lda., veio arguir a respectiva nulidade (1), por falta de assinatura do Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, (2) por falta de notificação, ao autor, do parecer do Ministério Público “acerca do mérito da questão de fundo controvertida nos autos”, “não obstante o M.º P.ª ser, ele próprio, parte no presente recurso, na qualidade de recorrido” , notificação que deveria ter sido feita, em obediência ao princípio do contraditório (n.º 3 do artigo 3.º do Código de Processo Civil), com protecção constitucional (n.ºs 1 e 4 do artigo 20.º da Constituição).


Por acórdão de 27 de Setembro de 2023, foi anulado o acórdão de 5 de Julho, nestes termos:


«A tramitação prevista na Lei n.º 91/2019, de 4 de Setembro, não prevê a notificação à parte contrária do Parecer emitido pelo Ministério Público nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 18.º, quando seja parte do recurso.


De todo o modo, e tendo em conta o disposto no n.º 3 do Código de Processo Civil, anula-se o acórdão de 5 de Julho de 2023, para que seja cumprido o princípio do contraditório, uma vez que o Ministério Público é recorrido no recurso que está em causa.


Considera-se assim verificada uma nulidade por preterição relevante de um acto imposto por lei (n.º 1 do artigo 195.º do Código de Processo Civil) e anula-se o acórdão, nos termos do disposto no n.º 2 do mesmo artigo 195.º do Código de Processo Civil.


Anulado o acórdão, fica prejudicado o conhecimento do outro vício invocado».


4. As partes foram notificados deste acórdão, nada dizendo.


Foi então proferido novo acórdão, em 22 de Novembro de 2023, do qual se transcreve o ponto 5: «Em primeiro lugar, cabe conhecer da questão da “falta de assinatura do Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça”, uma vez que vai ocorrer de novo neste acórdão e que as partes tiveram a ocasião de se pronunciar sobre ela.


Entende o Tribunal que resulta do disposto n.º 4 do artigo 14.º da Lei n.º 91/2019 que, no julgamento do conflito, o Presidente do Tribunal dirige a discussão e apenas vota para desempatar “quando não possa formar-se maioria”, hipótese na qual assinará o acórdão, naturalmente.


Fora desse caso, não votando, não assina o acórdão.»


Relativamente à questão da jurisdição, negou-se novamente provimento ao recurso, decidindo que “a impugnação judicial é da competência da jurisdição administrativa e fiscal (al. l) do n.º 1 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais)”.


5. Notificada do acórdão, A..., Lda., veio arguir “nulidade do acórdão e nulidade processual secundária”.


Quanto à nulidade do acórdão, A..., Lda., fundamentou-a novamente na falta de assinatura do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça; no que toca à nulidade processual, transcreve-se o artigo 73.º do requerimento:


“73. Do que antecede, podem extrair-se as seguintes proposições:


– A recorrente não foi notificada, como era mister, da pronúncia emitida pelo M.º P.º neste Tribunal dos Conflitos;


– Tal falta ou omissão consubstancia a preterição de uma formalidade que a lei prescreve – art. 3.º, n.º 3, do CPC;


– Essa nulidade foi declarada pelo Acórdão de 27/9/2023 tirado nos autos;


– Nem esse Acórdão nem qualquer outro despacho judicial ou ato da secretaria ordenou ou realizou a notificação do parecer do MP à recorrente;


– Persiste, e renovou-se, a nulidade já declarada pelo Acórdão de 5/7/2023;


– Tal nulidade comunicou-se ao Acórdão de 22/11/2023, tornando-se um vício dessa douta decisão”.


Conclui o requerimento afirmando que o Tribunal dos Conflitos deve:


“A) Declarar a nulidade do Acórdão de 22/11/2023;


B) Declarar a nulidade processual persistente de não se ter ainda notificado a recorrente para exercer o contraditório quanto ao parecer proferido pelo M.º P.º neste Tribunal dos Conflitos, anulando-se todos os termos processuais subsequentes à verificação da dita nulidade”.


6. São manifestamente infundadas as nulidades arguidas.


Relativamente à nulidade do acórdão, por falta de assinatura do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, o que o requerimento agora em apreciação revela é a discordância da recorrente relativamente ao que, quanto a este ponto, se decidiu expressamente no acórdão de 22 de Novembro de 2023, e que acima se transcreveu. Note-se que a circunstância de constar da acta da sessão que o acórdão foi “subscrito pelo Senhor Presidente”, quando é manifesto que não foi, não tem a virtualidade de invalidar o acórdão.


No que toca à nulidade processual resultante da falta de notificação do Parecer do Ministério Público, apresentado no Tribunal dos Conflitos, cumpre ter presente, em primeiro lugar, que este recurso é tramitado através da plataforma Citius, como a recorrente, aliás, nos recorda, ao identificar o acórdão (embora a referência indicada se refira ao acórdão de 5 de Julho de 2023) e a acta da sessão de 22 de Novembro de 2023 pelas respectivas referências Citius e que o referido Parecer do Ministério Público conste da mesma plataforma (ref. 11549441).


Em segundo lugar, cabe frisar que o princípio do contraditório tem um significado material, que se reconduz ao princípio da igualdade das partes perante a lei e o tribunal e se traduz no reconhecimento do direito das partes a que a sua posição sobre as questões em litígio possa ser considerada pelo tribunal quando as vai decidir. Por isso se anulou o acórdão de 5 de Julho de 2023 – recorde-se que a recorrente alegou que só com a leitura deste acórdão tomou conhecimento da existência de tal Parecer, ponto 24 do requerimento de 20 de Julho de 2023.


Tendo o acórdão de 27 de Setembro de 2023, em julgamento da nulidade por falta de notificação do Parecer do Ministério Público, arguida pela recorrente, anulado o acórdão de 5 de Julho anterior “para que seja cumprido o princípio do contraditório, uma vez que o Ministério Público é recorrido no recurso que está em causa” (ponto 2 do acórdão de 27 de Setembro), acórdão que foi notificado à recorrente, e constando do Código de Processo Civil a regra geral sobre a duração e o início da contagem do prazo para as partes exercerem qualquer outro poder processual para além dos que vêm referidos na lei – cfr. artigo 149.º do Código de Processo Civil e artigo 19.º da Lei n.º 91/2019, de 4 de Setembro – a recorrente dispôs de todos os elementos de que necessitava e do prazo para se poder pronunciar antes de ser proferido o acórdão de 22 de Novembro – cfr. ponto 4 deste acórdão de 22 de Novembro.


Recorda-se que é este sentido material do contraditório que o n.º 3 do artigo 3.º do Código de Processo Civil traduz, ao revelar, na sua parte final, que o que o respeito do contraditório impõe é que, antes de o juiz decidir “questões”, as partes devem ter disposto “da possibilidade de sobre elas se pronunciarem”.


Tendo disposto dessa possibilidade, anular o acórdão de 22 de Novembro por falta de notificação do Parecer do Ministério Público seria apenas um formalismo sem qualquer fundamento material; razão pela qual a arguição de nulidade por falta de notificação é manifestamente infundada.


Não se conhecem as inconstitucionalidades suscitadas porque não se aplicam as normas visadas com o sentido que a recorrente considera inconstitucional.


7. Nestes termos, indeferem-se a arguição de nulidade do acórdão de 22 de Novembro de 2023 e a arguição de nulidade processual, por serem manifestamente infundadas.


Sem custas (n.º 2 do artigo 5.º da Lei n.º 91/2019).


Lisboa, 11 de Janeiro de 2024. - Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza (relatora) - Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa.