Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:033/14
Data do Acordão:10/23/2014
Tribunal:CONFLITOS
Relator:FERNANDA ISABEL PEREIRA
Descritores:DIREITO DE PREFERÊNCIA
Sumário:
Nº Convencional:JSTA00068955
Nº do Documento:SAC20141023033
Data de Entrada:05/16/2014
Recorrente:O MAGISTRADO DO MINISTÉRIO PÚBLICO, NO CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO ENTRE O 1º JUÍZO DO TRIBUNAL JUDICIAL DE BEJA E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE BEJA
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:CONFLITO DE JURISDIÇÃO
Objecto:NEGATIVO JURISDIÇÃO TJ BEJA - TAF BEJA
Decisão:DECL COMPETENTE JURISDIÇÃO COMUM.
Área Temática 1:DIR ADM CONT - CONFLITO NEGATIVO JURISDIÇÃO.
Legislação Nacional:CONST76 ART209 ART212 N3 ART211 N1.
LOFTJ99 ART18.
ETAF02 ART1 N1 ART4 ART3 ART62 I.
CPPTRIB99 ART10 N1 F ART151 N1.
CPC13 ART92 N1.
CCIV66 ART1380.
Jurisprudência Nacional:AC TCF PROC014/09 DE 2011/01/27.; AC TCF PROC022/10 DE 2010/12/09.
Referência a Doutrina:GOMES CANOTILHO E VITAL MOREIRA - CRP ANOTADA VOLII 4ED PÁG56-67.
Aditamento:
Texto Integral: Conflito nº: 33/14

Acordam no Tribunal dos Conflitos:

1. Relatório
A……………… e B…………….. intentaram no 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Beja, acção de condenação, sob a forma sumária, contra C……………….., D…………. e E…………, pedindo que fosse declarada a ineficácia da venda judicial do imóvel identificado na petição inicial, no âmbito de processo de execução fiscal, através de auto de adjudicação emitido em 07-09-2005, reconhecendo-se aos autores o direito de preferência com todas as consequências legais.
Para fundamentar a sua pretensão, alegaram, em síntese, que são proprietários de um prédio de cultura arvense com uma área inferior à unidade de cultura (75 000m2) fixada para os Municípios do Alentejo, que confina com o imóvel vendido ao 2º réu no âmbito do processo de execução fiscal n.º 0248/93-001728 da Repartição de Finanças de Beja, no qual eram executados os aqui 1.ºs réus, venda que se realizou sem o seu conhecimento e sem tivessem sido notificados para exercerem o direito de preferência de que são titulares.

Na sua contestação excepcionaram os 1.ºs réus a incompetência material do Tribunal, tendo o Mm.º Juiz proferido o despacho de fls. 119 a 123 a julgá-lo absolutamente incompetente em razão da matéria, por a mesma caber ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Beja, absolvendo os réus da instância.

No Tribunal Administrativo e Fiscal de Beja, foi, igualmente, proferida decisão a julgar este Tribunal materialmente incompetente, ali se argumentando, essencialmente, não se tratar de uma acção declarativa de simples apreciação da existência do direito de preferência, mas perante uma acção constitutiva de direitos, que visa autorizar uma mudança na ordem jurídica existente, que deve correr na jurisdição comum.

O Mº Público suscitou a resolução do conflito de jurisdição.

2. Fundamentos
De facto:
A factualidade relevante a considerar para dirimir o presente conflito negativo de jurisdição é a que segue:
1. No âmbito do processo de execução fiscal nº 0248199301001728, que correu termos pelo Serviço de Finanças de Beja, movidos contra o réu C…………, foi vendido ao réu E…………. o prédio rústico «………..», ……………, descrito na Conservatória de Registo Predial de Beja sob o n.º 363/19880210, composto de olival e solo subjacente - cultura arvense, inscrito na matriz sob o artigo 362 da Secção B, cuja inscrição se encontrava inscrita na Conservatória do Registo Predial respectiva a favor dos dois primeiros réus
2. O prédio rústico «…………..», …………….., descrito na Conservatória de Registo Predial de Beja sob o n.º 363/19880210, composto de olival e solo subjacente - cultura arvense encontra-se inscrito a favor de E……………, pela Ap. 16, de 09-09-2005, por compra em processo de execução fiscal a C………………, casado com D……………
3. Os autores, arrogando-se proprietários do prédio rústico denominado «………..», composto de terreno, para cultura arvense, destinado ao cultivo de grão, cevada, trigo e milho e composto de olival, tudo com a área de 1,25 hectares, confrontando a norte com Estrada de Cuba, de Sul com Estrada de Monte Abaixo, de nascente com Terras de F…………. e poente com Herdeiros de G…..……., inscrito na matriz rústica sob o art. 362.º da secção B da freguesia de ……….. (anteriormente …………..), concelho de Beja, e descrito na Conservatória do Registo Predial de Beja sob o n.º 00098/170985, intentaram acção sumária contra C………… e mulher D………… e E…………, pedindo:
- a) se declare a ineficácia da alienação do imóvel identificado nos artigos 13 e 14 da presente petição inicial, efectuada judicialmente no âmbito do processo executivo fiscal referido no art. 16 da mesma petição, através do auto de adjudicação emitido em 07-09-2005;
- b) se reconheça aos autores o direito de preferência na ocorrida venda judicial do direito de propriedade de esse mesmo imóvel e, por força disso, o direito de haver para eles esse mesmo imóvel substituindo-se ai 2.º réu, adquirente, como proprietários no mencionado auto de adjudicação lavrado em 07-09-2005;
-c) se ordene o cancelamento da inscrição de aquisição do direito de propriedade a favor do 2.º réu, consubstanciada pelo Registo feito pela Ap. n.º 16 de 09-09-2005 e de todas as demais inscrições registais dependentes de essa inscrição de aquisição ou efectuadas no pressuposto da sua permanente validade;
-d) serem os réus condenados a entregar aos autores a plena propriedade e posse do mesmo imóvel, livre, devoluto e desembaraçado de pessoas e bens; (...).

De direito:
Está em causa um conflito negativo de jurisdição motivado pela pronúncia de duas decisões judiciais, de sentido inverso, emitidas, primeiro, por um tribunal da jurisdição comum e, subsequentemente, por um tribunal da jurisdição administrativa e fiscal, decisões que, mutuamente, declinaram a competência material para dirimir o litígio submetido a juízo.
O poder jurisdicional, como se sabe, encontra-se repartido por diversas categorias de tribunais, segundo a natureza das matérias das causas que perante eles se suscitam - cf. arts. 209.º e segs. da Constituição da República Portuguesa (CRP).
A existência de várias categorias de tribunais supõe, naturalmente, um critério de repartição de competência entre eles, necessariamente de natureza objectiva, de acordo com a natureza das questões em razão da matéria, podendo, como tal, dar origem a conflitos de jurisdição.
A determinação do tribunal competente em razão de matéria é aferida em função dos termos em que é formulada a pretensão do Autor, incluindo os respectivos fundamentos. Neste sentido, podem ver-se, entre outros, os acórdãos do Tribunal dos Conflitos de 28-09-2010, processo n.º 2/10; de 29-03-2011, processo n.º 2510; de 02-03-2011, processo 9/10; e de 09-09-2010, proc. 011/10, todos disponíveis em www.dgsi.pt/jcon.nsf.
In casu, o 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Beja julgou-se incompetente em razão da matéria por entender que cabia ao tribunal tributário conhecer da existência do direito de preferência invocado por quem pretenda exercê-lo na execução fiscal, louvando-se para o efeito num acórdão deste Tribunal dos Conflitos, de 23-09-12.
Por seu turno o Tribunal Administrativo e Fiscal de Beja, apoiando-se na afirmação de que ao titular do direito de preferência não assiste o direito a requerer a anulação dos actos praticados na execução, sendo que - para poder haver para si a coisa alienada - só por via de acção judicial o poderá fazer, e não estando em causa nos autos uma acção de simples apreciação negativa, mas sim uma verdadeira acção constitutiva, concluiu pela competência dos tribunais comuns.

Não obstante à data da prolação deste acórdão já se encontrar em vigor a Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ) - Lei 62/2013, de 26-08 - o facto é que a competência se afere por referência à data da propositura da acção, razão pela qual as referências legislativas feitas a este propósito se referirão à Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (LOFTJ), aprovada pela Lei nº 3/99, de 3 de Janeiro.
Os tribunais judiciais gozam de competência genérica ou residual, o que significa que são competentes para o conhecimento de todas as causas que não sejam atribuídas a outras ordens judiciais - arts. 211.º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, e 18.º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais.
Ao invés, os tribunais administrativos e fiscais têm a sua competência limitada aos litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais - arts. 212.º, n.º 3, da Constituição, e 1.º, n.º 1, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF).
Seguindo de perto Gomes Canotilho e Vital Moreira (CRP Anotada, vol. II, 4 ed., 2010, p. 56/567) ao analisarem o art. 212.º, n.º 3, da Constituição, “estão em causa apenas os litígios emergentes de relações jurídico-administrativas (ou fiscais) (n.º 3, in fine). Esta qualificação transporta duas dimensões caracterizadoras: (1) as acções e recursos incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos, um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão de poder público (especialmente da administração); (2) as relações jurídicas controvertidas são reguladas, sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo ou fiscal. Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza «privada» ou «jurídico-civil». Em termos positivos, um litígio emergente de relações jurídico-administrativas e fiscais será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal (cfr. ETAF, art. 4.º)”.

Infere-se do exposto que a atribuição de competência ao tribunal de jurisdição comum pressupõe a inexistência de norma específica que atribua essa competência a uma jurisdição especial para resolver determinado litígio, tal como o autor o configura. (Como explicita Miguel Teixeira de Sousa “[a] competência material dos tribunais comuns é aferida por critérios de atribuição positiva e competência residual. Pelo primeiro critério cabem-lhes as causas cujo objecto é uma situação regulada pelo direito privado, civil ou comercial. Pelo segundo, incluem-se na sua competência todas as causas que apesar de não terem por objecto uma situação jurídica fundamentada no direito privado, não são legalmente atribuídas a nenhum tribunal não judicial ou a tribunal especial” - cf. A Competência declarativa dos tribunais comuns, 1994, p.76. )
Sendo a competência dos tribunais comuns residual, haverá, pois, que verificar primeiramente se a causa cabe na competência dos tribunais administrativos.
Considerando a data da instauração da acção, há que atender ao estatuído no Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19-02, com as alterações introduzidas pelas Declarações de Rectificação n.ºs 14/2002, de 20-03 e 18/2002, de 12-04, pelas Leis n.ºs 4-A/2003, de 19-02, 107-D/2003, de 31-12, 1/2008, de 14-01, 2/2008, de 14-01, 26/2008, de 27-06, 52/2008, de 28-08, 59/2008, de 11-09, pelo DL n.º 166/2009, de 31-07, pela Lei n.º 55-A/2010, de 31-12, e pela Lei 20/2012, de 14-05.

Dispõe o art. 1.º, n.º 1, do ETAF, que: “Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.
Por seu turno o art. 3.º do ETAF estatui que «incumbe aos tribunais administrativos e fiscais na administração da justiça assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, reprimir a violação da legalidade e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados no âmbito das relações administrativas e fiscais».
Ainda com relevância, acrescenta o art. 62.º, al. i) do ETAF que «compete aos tribunais tributários de 1.ª instância conhecer das questões e incidentes que se suscitem nos processos de execução fiscal para cujo conhecimento não sejam competentes os serviços da administração fiscal», sendo certo que de acordo com o art. 10.º, n.º 1, al. f), do CPPT «aos serviços da administração tributária cabe instaurar os processos de execução fiscal e realizar os actos a estes respeitantes, salvo os previstos no n.º 1 do art. 151.º do presente Código».
Por seu turno o art. 151.º, n.º 1, do CPPT estatui que «Compete ao tribunal tributário de 1.ª instância da área onde correr a execução, depois de ouvido o Ministério Público nos termos do presente código, decidir os incidentes, embargos, a oposição, incluindo quando incida sobre os pressupostos da responsabilidade subsidiária, a graduação e verificação de créditos e as reclamações dos actos materialmente administrativos praticados pelos órgãos de execução fiscal».
Cumpre referir que a titularidade do direito de preferência de que se arrogam os autores é uma titularidade de direito civil - art. 1380.º do CC -. E os autores serão titulares do direito de preferência - direito real de aquisição - se preencherem os pressupostos e os requisitos definidos na lei civil.
Nenhuma legislação de direito público lhes confere essa qualidade de preferentes, nem essa qualidade deriva de qualquer acto de império de qualquer autoridade administrativa do Estado.
Assim, toda e qualquer necessidade de prévia notificação dos titulares do direito de preferência tem a ver com a necessidade de respeito das disposições de direito civil, e não de direito público - neste sentido ver Ac. deste Tribunal dos Conflitos de 09-12-2010, processo 22/10.
Essa evidência retira-se, aliás, da forma como é formulado o pedido pelos autores: - ser reconhecido aos autores o direito de preferência; - ser declarada a ineficácia da alienação do imóvel.
À excepção da circunstância de a venda se ter efectuado no âmbito de uma execução fiscal, nada, nem nenhum elemento nos presentes autos, permite integrar a presente acção na jurisdição administrativa e fiscal.
Uma acção de preferência como a presente, prevista no art. 1380.º do CC, é manifestamente o exercício de um direito real de aquisição, visando dar completude ao direito de propriedade do proprietário confinante.
E tem como objectivo primeiro a declaração da existência desse direito de preferência e como escopo ulterior a materialização e efectivação desse direito de preferência.
Aos autores, nesta acção, compete, provar que são proprietários de um prédio, que o mesmo confina com o prédio objecto da venda executiva, que o seu prédio tem uma área inferior à unidade de cultura.
Comprovados estes factos só a qualidade igualmente de preferente do adquirente ou outros factos modificativos, impeditivos ou extintivos poderão obstaculizar a procedência da acção.
Assim, as questões decidendas não emergem de qualquer relação jurídica administrativa, sendo que a circunstância de o prédio sobre o qual incide a suposta preferência ter sido vendido numa execução fiscal não confere qualquer autonomia dogmática susceptível de converter um pedido privatístico numa pretensão de carácter publicista.
Como se escreveu num Acórdão deste Tribunal dos Conflitos, de 27-01-2011, proc. 014/09, em que se colocava uma questão idêntica - relacionada com o direito de preferência do arrendatário, preterido num ajuste directo que procedeu à adjudicação de fracções do Estado (e que por sua vez citava um outro acórdão deste mesmo tribunal - processo 22/10 -), «a titularidade do direito de preferência de que se arrogam os autores é uma titularidade de direito civil, a sua condição de arrendatários conforme o direito civil. E os autores serão titulares do direito de preferência se preencherem os pressupostos, os requisitos definidos na lei civil.
Não é nenhuma lei de direito público que lhes confere essa qualidade, nem essa qualidade deriva de qualquer acto de império de qualquer autoridade administrativa do Estado, nomeadamente não resulta de qualquer acto da entidade que procedeu à venda em nome do Estado.
Assim, a prévia notificação dos titulares do direito de preferência tem a ver com a necessidade de respeito das disposições de direito civil, não de direito público.
(...).
(...) E afinal nos autos, os autores não pretendem questionar mais nada que não seja o não terem podido exercer o seu direito de preferência, por isso que pedem que lhes seja reconhecida a qualidade de preferentes para os devidos efeitos. (...)».

Ante os pedidos formulados, conexionados com o direito e acção de preferência, previsto no art. 1380.º do CC, é de concluir pela competência material dos tribunais comuns.
Caso houvesse necessidade de discutir, no âmbito dos presentes autos, qualquer vicissitude do processo de execução fiscal, a mesma sempre constituiria uma mera questão prejudicial a atender nos termos do art. 92.º, n.º 1, do CPC.

O litígio em debate é, por conseguinte, subsumível à competência subsidiária dos tribunais comuns, deferindo-se a competência material ao 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Beja.

Em conclusão:
Cabe aos tribunais comuns a competência material para conhecer de acção de preferência subsequente à venda judicial de imóvel no âmbito de processo de execução fiscal.

Decisão
Termos em que acordam os juízes do Tribunal dos Conflitos em julgar materialmente competente a jurisdição comum para o conhecimento da acção.
Sem custas, ex vi do art. 96.º do Decreto n.º 19 243, de 16-01-1931.

Lisboa, 23 de Outubro de 2014. – Fernanda Isabel de Sousa Pereira (relatora) – Alberto Acácio de Sá Costa Reis – Gabriel Martim dos Anjos Catarino – Jorge Artur Madeira dos Santos - João Moreira Camilo – António Bento São Pedro.