Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:035/18
Data do Acordão:05/23/2019
Tribunal:CONFLITOS
Relator:MARIA DO ROSÁRIO MORGADO
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P24586
Nº do Documento:SAC20190523035
Data de Entrada:07/12/2018
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE A COMARCA DE LISBOA, LISBOA-INST. CENTRAL, 1ª SECÇÃO CÍVEL, JUIZ 7 E OS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS E FISCAIS.
RECORRENTE: CAIXA GERAL DE DEPÓSITOS.
RECORRIDOS: ESPAÇO POVOAÇÃO-EMPRESA MUNICIPAL DE ACTIVIDADES DESPORTIVAS, RECREATIVAS E TURÍSTICAS, EEM E MUNICÍPIO DA POVOAÇÃO.
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Acordam no Tribunal dos Conflitos

Conflito nº 35/18

- I -


1. Em 4.6.2015, a Caixa Geral de Depósitos, S.A. instaurou contra “A………….., S.A.”, “Espaço Povoação-Empresa Municipal de Actividades Desportivas, Recreativas e Turísticas, E.E.M.”, Município da Povoação e “B……….., S.A.” ação declarativa sob a forma comum, pedindo a condenação solidária dos 1º a 3º réus a pagar-lhe a quantia de EUR 9.763.260,25, devendo a 4ª ré ser condenada no pagamento de EUR 649.765,18.

Subsidiariamente, pediu a condenação da 2ª ré e do 3º réu no pagamento à A. das quantias já referidas, ainda que a título de enriquecimento sem causa.

Para tanto, e em síntese, alegou que:

Visando a construção de piscinas e de um complexo desportivo municipal, a autora - em 21.4.2006 - concedeu à 1ª ré um empréstimo, sob a forma de abertura de crédito, até ao montante de EUR 7.500.000,00, garantido por: hipoteca do direito de superfície de determinados imóveis que identifica, consignação de rendas/ receitas a receber da 2ª ré, bem como transferências a receber ao abrigo de contrato programa celebrado entre a 2ª ré e o 3º réu, carta-conforto emitida pelo 3º réu, garantia bancária e «ownership clause» das 2ª e 4ª rés.
Posteriormente - em 9.4.2008 -, a autora concedeu à 1ª ré um outro empréstimo, sob a forma de abertura de crédito, até ao montante de EUR 489.000,00, de que a 4ª ré se constituiu avalista. Para garantia do pagamento do capital, juros e demais encargos foi ainda acordada a consignação de receitas, designadamente as suportadas no contrato-programa celebrado entre a 2ª ré e o 3º réu e a apresentação de uma carta-conforto pelo 3º réu.

Na sequência do acordado, a autora transferiu para a 1ª ré a quantia de EUR 7.421.000,00, bem como a totalidade do capital relativo ao segundo financiamento contratado.

Acontece que as prestações dos empréstimos concedidos à 1ª ré deixaram de ser pagas nos prazos contratualizados, tendo as demais rés igualmente incumprido as obrigações a que se encontravam vinculadas, pois recusaram pagar à autora a quantia em dívida que ascende a EUR 9.763.260,25.

2. Atenta a declaração de insolvência, com trânsito em julgado, das 1ª e 4ª rés, foi declarada extinta a instância, por inutilidade/impossibilidade superveniente da lide, relativamente a cada uma delas, prosseguindo a ação apenas contra a 2ª ré e o 3º réu.

3. A 2ª ré e o 3º réu contestaram. Para o que agora especialmente releva, invocaram a incompetência do Tribunal Cível de Lisboa, em razão da matéria, alegando que a competência deverá ser atribuída aos tribunais administrativos.

4. A autora respondeu, pugnando pela improcedência da exceção deduzida.

5. Foi, então, proferida decisão que declarou o tribunal cível incompetente em razão da matéria e absolveu a 2ª ré e o 3º réu da instância.

6. Inconformada com esta decisão, a autora recorreu, tendo o Tribunal da Relação de Lisboa proferido acórdão a confirmar a decisão recorrida.

7. De novo irresignada, a autora interpôs recurso para o Tribunal dos Conflitos.

Nas suas alegações, formulou as seguintes conclusões:

1. A decisão recorrida confirma que o tribunal cível é materialmente incompetente, por considerar que, ao abrigo do previsto nas alíneas e) do art 4º do ETAF, o tribunal competente é o tribunal administrativo.

2. Tal decisão encontra-se indevidamente suportada, por indevida compreensão da relação material controvertida, e é ilegal, por incorreta interpretação das normas aplicadas, violando os arts. 211º da Constituição da República Portuguesa, 4º, do ETAF, 64ºs do Código de Processo Civil e art. 40º, nº 1, da Lei de Organização do Sistema Judiciário.

3. A competência do tribunal em razão da matéria afere-se de acordo com a relação material controvertida nos autos - em função do pedido e da causa de pedir -, tal como a mesma é configurada pela Autora, no que se refere aos termos em que propõe a resolução do litígio.

4. A A./Recorrente peticionou a condenação solidária dos Réus sempre e só com base nas respetivas responsabilidades pelo cumprimento/incumprimento de contrato de mútuo e garantias dadas ao cumprimento do mesmo, pelo que o objeto do litígio - responsabilidade das várias entidades pelo incumprimento do contrato de mútuo - não se enquadra em nenhuma das alíneas do art. 4., nº 1, do ETAF.

5. Não respeita a ação a questões relativas à validade de atos pré-contratuais e à interpretação, validade e execução de contratos a respeito dos quais haja lei específica que os submeta a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público (al, e)).

6. A relação material controvertida nos autos, tal como a mesma é configurada pela Autora, no que se refere aos termos em que propõe a resolução do litígio, parece ter sido devidamente entendida: a A. “fundamenta a ação na responsabilidade perante si assumida por cada uma das delas através de um contrato de mútuo celebrado com a 1ª ré.”

7. Para fazer aplicar a alínea e) do art. 4º, o ETAF qualifica o acórdão, em primeiro lugar, apenas os 2º e 3º RR., esquecendo os demais.

8.Tendo a competência dos tribunais administrativos há muito deixado de conexioriar-se com a natureza de algumas das demandadas, como o próprio acórdão reconhece, não se percebe qual a razão desta qualificação, que nada tem que ver com algum dos critérios contidos no art. 4º, do ETAF.

9. O mesmo acontece com a prossecução do interesse público, em nada relevando a afirmação de que os contratos celebrados entre a A. e a 1ª Ré se destinem à construção de equipamentos Municipais; sobretudo, não se percebe como se relaciona um simples contrato de mútuo com a finalidade ora avançada pelo tribunal.

10. A construção da piscina e complexo desportivo releva apenas para explicar, mais uma vez, o aparecimento das 2ª e da 1ª Rés. Em nada releva para o mútuo ou para o seu incumprimento, base desta ação, que é devido seja qual for o destino dos fundos.

11. No essencial, conclui o acórdão que “os contratos em que assenta a responsabilidade da 2ª ré e do 3º réu perante a A. estão, ao menos em parte, sujeitos a procedimento prévio regulado por normas de direito público, como é, claramente, o caso da carta-conforto emitida pelo 3º R. a favor da A. por deliberação da Câmara Municipal de Povoação ou o Contrato-Programa celebrado, então ao abrigo do disposto no art. 31 da já citada Lei nº 58/98, entre os 2ª e 3º RR”.

12. O tribunal não foi chamado a apreciar qualquer contrato-programa, porque nesse sentido não foi deduzido qualquer pedido pela A., o contrato-programa, celebrado entre o 3º réu e a 2ª ré.

13. Tal contrato é apenas referido na p.i. para explicar a razão da confiança da A. na concessão do crédito, confirmar essa que seria abalada caso o 3º réu viesse invocar não ser responsável pela dívida e, assim, justifica eventual defesa deste Réu, em manifesto abuso de direito.

14. O tribunal não tem que apreciar a validade ou a interpretação do contrato-programa, em que a A. nem sequer foi parte e do qual não resultaram para si quaisquer direitos, ou obrigações dos RR. perante aquela.

15. O 3º Réu não foi igualmente demandado por ter cumprido ou deixado de cumprir o regime contido Lei nº 50/2012, de 31/08. Este só é invocado para confirmar que o que consta da carta-conforto se mostra de acordo com tal regime.

16. Ou seja, o 3º Réu é apenas demandado por incumprimento das obrigações que constam da carta-conforto.

17. Ora, sobre esta, diz o acórdão: “Com efeito, a carta-conforto usada como “garantia” no comércio bancário não tem, em si mesma, qualquer cariz administrativo mas, no caso, foi a mesma emitida pelo 3º R. Município apôs deliberação camarária, isto é, de procedimento regulado por normas de direito público, no exercício e prosseguimento do interesse público. (...)

18. Com esta afirmação malbarata o acórdão toda a lei, doutrina e jurisprudência sobre a competência do tribunal administrativo e seu recorte perante a competência dos demais tribunais.

19. De facto, não se vê que tipo de atos pode praticar um Município que não seja procedido de “um procedimento regulado por normas de direito público”, pelo que desta afirmação apenas se pode concluir que todos os atos dos Municípios são apreciados apenas por tribunais administrativos, o que não é de todo o que resulta da lei.

20. Não houve qualquer ato pré-contratual cuja validade esteja em causa nos autos, nem o acórdão o identifica.

21. A carta conforto é uma garantia comum no âmbito de contratações financeiras, não se denotando aqui qualquer relação com cariz administrativo. As cartas conforto convocam regras de puro direito privado, intervindo aqui os entes públicos e privados num mesmo patamar, ou seja, a relação estabelecida é uma relação de natureza privada, regulada por normas de direito privado, pese embora a intervenção de entidade pública.

22. Reconhecer a validade da carta-conforto não se mostra necessário qualquer a convocação de quaisquer regras administrativas e a intervenção da R. é feita nos mesmos moldes que poderia ser feita por qualquer entidade privada idónea para prestar garantias.

23. Por último, defende-se no acórdão que também relativamente ao peticionado, a título subsidiário, com base em enriquecimento sem causa, são competentes os tribunais administrativos.

24. Ora, não se denota aqui qualquer relação com cariz administrativo. O enriquecimento sem causa convoca regras de puro direito privado, intervindo aqui os entes públicos e privados num mesmo patamar, ou seja, a relação estabelecida é uma relação de natureza privada, regulada por normas de direito privado, pese embora a intervenção de entidade pública.

25. O que se invoca no acórdão sobre a possibilidade de o enriquecimento sem causa poder constituir objeto de ação administrativa em nada justifica que apenas possa ser objeto deste, e, logo, da competência exclusiva dos tribunais administrativos, como aquela pretende fazer crer.

26. Estando em causa nos autos um contrato celebrado entre privados, com cartas-conforto prestadas por entidades públicas e por privados, não pode a natureza pública de um ou 2 dos réus, e a qualificação, errada, por força desta, de uma relação entre tal entidade pública e a Autora, arrastar consigo a resolução para “tribunal incompetente” de todas as questões dos autos.

27. A competência dos tribunais comuns para apreciar os autos é, ao invés, o que resulta das diversas decisões jurisprudenciais, que lhes atribuem competência em situações semelhantes.

28. Segundo o nº do art. 211º da CRP, com recorte negativo, “ (o]s tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais”. De modo positivo, a competência da jurisdição administrativa é dada pelo nº 3 do art. 212º, da CRP “dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.”.

29. Em conformidade com estes dispositivos constitucionais, o art. 64º, do novo CPC veio estabelecer que “são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”.

30. Como à jurisdição administrativa e fiscal deve ser adjudicada, em exclusivo, competência para a apreciação de ações e de recursos que tenham por objeto “litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais” importa preencher este conceito.

31. Aplicando este conceito ao caso dos autos - relação contratual incumprida - podemos sumariar a posição da Recorrente citando o Acórdão do Tribunal de Conflitos de 4/6/2013, Proc. 029/13, com especial relevância para o caso dos autos, “A relação jurídica administrativa tem sido definida como aquela que se desenvolve entre um ente público e pessoas privadas sob a égide de normas de direito público, isto é, que regulam a relação de modo diferente de correspondentes relações privadas, por incluírem um poder da parte pública ou uma sujeição especial, determinadas pela necessidade de conferir especial eficácia à tutela do interesse público. No domínio dos contratos a relação jurídica administrativa surge como aquela que extravasa da regra comum de igualdade de posicionamento e de equilíbrio das prestações, através da concessão à parte pública de poderes de conformar ou alterar aspetos da relação, em especial respeitantes à execução, que excedem do direito comum dos contratos.

32. Nos autos estamos perante um litígio meramente privado, em que nem a A. nem os RR. atuaram no exercício de qualquer poder público.

33. Estão em discussão figuras de direito privado, sujeitas a regras dessa natureza, em que o Município age na veste de sujeito de direito privado.

34. Em suma, tratando-se “um litígio de natureza privada, a decidir por aplicação de normas de direito privado, ainda que um dos sujeitos seja uma entidade pública, o tribunal administrativo não é o competente, verificando-se em vez disso a competência dos tribunais comuns.” (Ac. do Tribunal da Relação de Évora, de 19/12/2013, Proc. 80/11.3TBEVR.E1.

8. Nas contra-alegações, pugnou-se pela confirmação do acórdão recorrido.

9. O Exmo. Magistrado do Ministério Público emitiu parecer no sentido de que a jurisdição comum é a competente para conhecer da presente ação.

10. Cumpre, agora, apreciar e decidir.


- II -

11. Os Factos

O acórdão recorrido considerou provado que:

1) A 2ª Ré é uma empresa pública municipal, tendo por objeto:

a) Criação, implementação, desenvolvimento, instalação, gestão e conservação de equipamentos desportivos e recreativos de âmbito local;

b) Apoio de atividades desportivas e recreativas, no sentido de promover a prática desportiva e recreativa bem como servir de apoio educativo à população escolar do concelho da Povoação;

c) Criação, implementação, desenvolvimento, participação e gestão de infraestruturas capazes de potencializar as valências turísticas, etnográficas, gastronómicas e patrimoniais, quer a nível cultural quer a nível paisagístico quer ainda a nível urbanístico do concelho da Povoação.

d) Em complemento das referidas, exercício, direto ou em colaboração com terceiros, de atividades acessórias ou subsidiárias da exploração e gestão, bem como outros ramos de atividade conexos, incluindo a prestação de serviços, que não prejudiquem a prossecução do seu objeto e que tenham em vista a realização dos fins socioculturais e a melhor utilização dos seus recursos disponíveis.

2) Por deliberação de 30/09/2004, o 3.º Réu autorizou a criação da 2ª Ré, assim como o seu objeto social e a transferência em numerário de 50.000,00 € para a constituição do capital social, integralmente detido por aquele.

3) O 3º Réu aprovou um Contrato-Programa, que veio a celebrar com a 2ª Ré, em 15/3/2006, contrato esse cuja cópia consta de fls 22v a 24v, dando-se o seu teor por integralmente reproduzido.

4) Na sequência de um pedido apresentado pela 1ª R., a A. aceitou conceder à mesma um financiamento consistente na abertura de crédito até € 7.500.000,00, para financiamento da construção do complexo das piscinas municipais cobertas de Povoação e complexo Desportivo das Furnas, pelo prazo de 20 anos, com juros à taxa nominal variável correspondente à Euribor a 3 meses/base 360 dias, acrescida de um spread de 1 % com arredondamento do valor assim obtido ao 1/8 do ponto percentual superior, sendo as prestações pagas trimestralmente, de capital e juros e comissão de montagem “flat'' de € 5.000,00.

5) Em reunião ordinária da Câmara Municipal de Povoação, foi deliberado, por maioria, aprovar a carta-conforto a emitir pelo 3.º Réu, relativamente à concessão pela Autora de um empréstimo no montante de € 7.500.000,00 à 1ª Ré, para financiamento da construção do complexo das piscinas municipais cobertas de Povoação e Complexo Desportivo das Furnas.

6) O 3.º Réu emitiu a favor da Autora, uma carta-conforto, nela declarando que “tem conhecimento do empréstimo de longo prazo, até ao montante de € 7.500.000,00 (...) que a CAIXA GERAL DE DEPÓSITOS, SA, adiante designada Caixa, vai conceder à A……………, SA, adiante designada por SOCIEDADE visando a Construção do Complexo de Piscinas Municipais Cobertas de Povoação e do Complexo Desportivo das Furnas”.

7) Consta ainda da carta de conforto que o 3º R. se obriga a tudo fazer “para que a “Espaço Povoação, EM” disponha sempre dos meios financeiros que lhe permitam cumprir regular e pontualmente as obrigações por si contraídas perante a “Sociedade”, a fim de que esta possa, por sua vez, cumprir perante a Caixa, as obrigações emergentes do contrato de financiamento para construção dos supracitados Complexos Desportivos, comprometendo-nos a transferir para a referida Espaço Povoação, EM todas e quaisquer importâncias a que aquela tenha direito, designadamente as previstas no aludido Contrato Programa, celebrado em 15 de Março de 2005 e a não alterar a participação social na Espaço Povoação, EM, atualmente em 100%, durante o prazo do empréstimo, sem o prévio acordo, por escrito dessa Instituição de Crédito...» e reconhece «que a Caixa só aceita conceder este financiamento, nos respectivos termos e condições contratuais, pelo facto de a Espaço Povoação - Empresa Municipal de Atividades Desportivas, Recreativas e Turísticas, E.M, adiante designada por Espaço Povoação, EM, deter 49% do capital social da dita sociedade e ainda pelo facto de os Complexos Desportivos, uma vez construídos serem administrados e explorados pela Espaço Povoação, EM, até ao termo do prazo do empréstimo, ou seja, 19 anos.

8) Por escritura pública lavrada a 21 de Abril de 2006, a Autora declarou conceder à 1ª Ré um financiamento, na modalidade de abertura de crédito, até ao montante de € 7.500.000,00, destinado a financiar a construção complexo das piscinas municipais cobertas de Povoação e complexo Desportivo das Furnas.

9) A 2ª Ré, que foi outorgante da referida escritura, ali declarou ter “o maior interesse na concessão deste empréstimo e na conclusão daquele Complexo e declara que tudo fará para que o serviço da divida do empréstimo seja regular e pontualmente cumprido, obrigando-se, nomeadamente a transferir as rendas, a pagar à Sociedade pela utilização daqueles equipamentos, por crédito na conta de depósito à ordem associada ao empréstimo”.

10) Foi também declarado pela 2ª Ré que “Mais se obriga o Espaço Povoação a transferir para a mesma conta de depósitos à ordem a título de prestações relativas a indemnização devida pelas mais-valias decorrentes da construção dos dois complexos referidos na Cláusula Primeira, as quais se encontram devidamente asseguradas no âmbito do contrato programa que o Espaço Povoação, celebrou com o Município de Povoação, em 16 de Março, ficando, assim consignadas pela Sociedade em garantia de todas as obrigações emergentes deste financiamento.”


- III -

12. O Direito

Sustenta a recorrente que, in casu, a competência em razão da matéria pertence aos tribunais comuns.

Não foi este, contudo, o entendimento do tribunal recorrido que declinou a sua competência para conhecer da causa, atribuindo-a aos tribunais administrativos.

Vejamos.

Sendo a competência dos tribunais judiciais residual, no sentido de que apenas lhes compete julgar as causas não atribuídas a outra ordem jurisdicional (cf. art. 211º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa (CRP), art. 40º, nº1 da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto e o art. 64º do CPC) há que determinar, em primeiro lugar, os casos em que a competência pertence aos tribunais administrativos, tendo presente que, de acordo com o disposto no art.º 38.º, da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto (Lei da Organização do Sistema Judiciário) a competência se fixa no momento em que a ação se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente, a não ser nos casos especialmente previstos na lei (nº1); são igualmente irrelevantes as modificações de direito, exceto se for suprimido o órgão a que a causa estava afeta ou lhe for atribuída competência de que inicialmente carecia para o conhecimento da causa (nº 2).

Para este efeito, é decisivo o critério constitucional plasmado no art. 212º, nº 3 da CRP segundo o qual “compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações administrativas e fiscais”.

Por sua vez, a nível infraconstitucional, à data da propositura da ação (isto é, 4.6.2015), o âmbito da jurisdição administrativa e fiscal estava fixado no Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF) aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro, na redação conferida pela Lei nº 59/2008, de 11 de Setembro (Cf. art. 15º, nº 4, do DL nº 241-G/ 2015, de 2 de outubro, segundo o qual as alterações efetuadas pelo presente decreto-lei ao Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19 de fevereiro, em matéria de organização e funcionamento dos tribunais administrativos, incluindo dos tribunais administrativos de círculo, entram em vigor no dia seguinte ao da publicação do presente decreto-lei.), em cujo art. 1º, nº 1 se dispunha que «os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.

Este art. 1º, do ETAF remete-nos, por seu turno, para o seu art. 4º, nº 1, em cujas alíneas se procede à delimitação do âmbito da jurisdição administrativa atribuindo aos respetivos tribunais a competência para a apreciação de litígios que tenham por objeto as questões ali enunciadas.

Sobre a questão de saber o que deve entender-se por “relação jurídica administrativa”, Vieira de Andrade (José Carlos Vieira de Andrade, in “A Justiça Administrativa”, 16ª edição, pág. 53.) adianta que parece prudente “partir do entendimento do conceito constitucional de «relação jurídica administrativa”, no sentido estrito tradicional de «relação jurídica de direito administrativo” com exclusão, nomeadamente das relações de direito privado em que intervém a Administração”.

E continua o mesmo autor: “apenas têm que se considerar relações jurídicas públicas (segundo um critério estatutário, que combina sujeitos, fins e meios) aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, atuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido”. (...) A utilização de um critério material de delimitação pressupõe (...) um conjunto de relações onde a Administração é, tipicamente ou nuclearmente, dotada de poderes de autoridade para cumprimento das suas principais tarefas de realização do interesse público - é por isso que se justifica um sistema de regras e de princípios diferentes das normas de direito privado, que formam uma ordem jurídica administrativa; será aí que se justificará a existência de uma ordem judicial diferente da ordem dos tribunais judiciais.”. (Ob. Cit., págs. 53-54.)

Também Fernandes Cadilha, Dicionário de Contencioso Administrativo, 2006, pág. 117/118, refere que “por relação jurídico administrativa deve entender-se a relação social estabelecida entre dois ou mais sujeitos (um dos quais a Administração) que seja regulada por normas de direito administrativo e da qual resultem posições jurídicas subjetivas. Pode tratar-se de uma relação jurídica intersubjetiva, como a que ocorre entre a Administração e os particulares, interadministrativa, quando se estabelecem entre diferentes entes administrativos, no quadro de prossecução de interesses públicos próprios que lhes cabe defender, ou interorgânica, quando se interpõem entre órgãos administrativos da mesma pessoa coletiva pública, por efeito do exercício dos poderes funcionais que lhes correspondem. Por outro lado, as relações jurídicas podem ser simples ou bipolares, quando decorrem entre dois sujeitos, ou poligonais ou multipolares, quando surgem entre três ou mais sujeitos que apresentam interesses conflituantes relativamente à resolução da mesma situação jurídica”.

É, pois, tendo presente o conceito de relação jurídica administrativa suprarreferido, que devem ser interpretadas as diferentes alíneas do art.º 4º, nº1, do ETAF.

Sendo pacífico que a competência em razão da matéria é fixada em função da relação jurídica controvertida, tal como é configurada pelo autor, irrelevando, neste plano, o juízo de prognose que se possa fazer relativamente ao mérito da causa, cumpre verificar se o objeto do litígio, definido pelo pedido e pela causa de pedir, se enquadra em alguma das alíneas do n.º 1 do art.º 4.º do ETAF.

No caso em análise, interessa-nos particularmente a alínea e), do nº 1, do ETAF, norma em que se apoiou o Tribunal recorrido para deferir a competência aos tribunais administrativos.

Na referida alínea, na redação vigente à data da propositura da ação, estipulava-se que compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tivesse por objeto: “questões relativas à validade de atos pré-contratuais e à interpretação, validade e execução de contratos a respeito dos quais haja lei específica que os submeta, ou que admita que sejam submetidos, a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público.”.

Argumentou o tribunal recorrido que “discutindo-se na presente causa um contrato de financiamento no âmbito do qual a 2ª e 3º RR., uma empresa municipal e um Município, se obrigaram no exercício de um poder público, prosseguindo um interesse público e no âmbito de atividade regulada por normas do direito administrativo, cremos estar perante uma relação jurídica administrativa que caberá aos tribunais administrativos dirimir. Donde, serão esses os tribunais competentes para conhecer da pretensão principal da A..”

Salvo o devido respeito, não sufragamos este entendimento.

Com efeito, nesta ação pede-se a condenação solidária dos réus no pagamento de determinada quantia, invocando-se, para tanto, o incumprimento das obrigações emergentes dos contratos de mútuo que a autora (a CGD) celebrou com a 1ª ré (a sociedade comercial “A………., S.A.”), e cujo cumprimento, segundo alegado, se mostra assegurado pela 2ª ré e pelo 3ª réu, designadamente através de transferências de receitas para a conta da mutuária e de uma carta conforto, emitida pelo 3º réu.

Ora, tais contratos de mútuo encontram-se integralmente submetidos a um regime de direito privado, pelo que não se vislumbra qualquer fundamento para atribuir a competência para o conhecimento da presente ação aos tribunais administrativos, atento o disposto nas várias alíneas do art. 4º, nº 1, do ETAF.

Neste contexto processual, é igualmente de afastar a possibilidade de fundar a responsabilidade da 2ª ré e do 3º réu pelo incumprimento dos contratos, no âmbito de uma relação jurídico-administrativa, tal como acima a definimos.

Note-se, aliás, que, muito embora tenha sido celebrado um contrato-programa entre a 2ª ré e o 3º réu, o tribunal não é chamado a pronunciar-se sobre a sua validade e/ou a sua interpretação, nem os contratos de mútuo celebrados se encontravam especificamente submetidos a um procedimento pré-contratual, o que, por si, conduz ao afastamento da previsão legal da aI. e), do nº 1, do art. 4º, do ETAF.

Relativamente à carta-conforto, emitida pelo 3º réu, o Município da Povoação, para garantia do cumprimento das obrigações assumidas pelos contratantes no contrato de mútuo, e com base na qual o mesmo é demandado nesta ação, trata-se de uma figura de direito privado, que se rege por normas de direito privado, independentemente da natureza do emitente, sujeita portanto à jurisdição comum. (Cf. Vieira de Andrade, ob. cit., pág. 55, nota 60, referindo que “um contrato de garantia do cumprimento de obrigações assumidas num contrato de administrativo terá independência relativamente ao contrato-base e, enquanto contrato privado, continuará a estar sujeito à jurisdição comum.”.)

(Neste sentido, podem consultar-se os acs. do Tribunal dos Conflitos de 4.6.2013, proc. 29/13, o ac. do Tribunal da Relação de Guimarães de 3.4.2014, proc. 3798/13.)

É, assim, de concluir que a relação material controvertida, tal como é caraterizada pela autora, não se inscreve em nenhuma das alíneas do nº1, do art. 4º, do ETAF.

Por conseguinte, a competência para apreciar a pretensão da autora, deduzida a título principal, atinente ao pagamento da quantia em dívida, em virtude do alegado incumprimento dos contratos de mútuo, cabe aos tribunais judiciais, e não à jurisdição administrativa.

No que respeita ao pedido subsidiário formulado, em que se pede a condenação dos réus, com base no enriquecimento sem causa, não estando em causa, como se viu, uma relação jurídica administrativa, seria igualmente de afastar, também nesta parte, a competência dos tribunais administrativos.

De todo o modo, e tal como se decidiu no acórdão do Tribunal dos Conflitos nº 9/14, de 14.9.2017, é de ter presente que a decisão sobre a competência em razão da matéria é aferida em função do pedido principal e não do pedido subsidiário, pelo que, também neste âmbito, não acompanhamos o acórdão recorrido.

Procede, portanto, o recurso.

13. Nestes termos, concedendo provimento ao recurso, acorda-se em revogar o acórdão recorrido e em julgar competente em razão da matéria para a presente ação o Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa - Instância Central.

Sem custas (art.º 96.º do Decreto n.º 19243 de 16.01.1931).

Lisboa, 23 de Maio de 2019. – Maria do Rosário Correia de Oliveira Morgado (relatora) – Ana Paula Soares Leite Martins Portela – Joaquim António Chambel Mourisco – Maria do Céu Dias Rosa das Neves – Rosa Maria Mendes Cardoso Ribeiro Coelho – Jorge Artur Madeira dos Santos.