Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:025/21
Data do Acordão:11/08/2022
Tribunal:CONFLITOS
Relator:TERESA DE SOUSA
Sumário:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
Nº Convencional:JSTA000P30171
Nº do Documento:SAC20221108025
Data de Entrada:09/13/2021
Recorrente:REQUERENTE: CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE FARO, JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE OLHÃO — JUIZ 1 E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE LOULÉ UO1.
AUTOR: IHRU INSTITUTO DE HABILITAÇÃO E REABILITAÇÃO URBANA, IP
RÉU: A.......
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Conflito nº 25/21

Acordam no Tribunal dos Conflitos

1. Relatório
O IHRU - Instituto da Habitação e Reabilitação Urbana, IP, intentou no Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo de Competência Genérica de Olhão, acção declarativa sob a forma de processo comum, contra A………., pedindo que a Ré seja condenada a:
“A - Reconhecer o direito de propriedade do Autor sobre o imóvel em causa;
B - Restituir o imóvel ao Autor livre e devoluto de pessoas e bens;
C - Pagar ao Autor uma indemnização no valor de 286,44€ (duzentos e oitenta e seis euros e quarenta e quatro cêntimos) com juros de mora à taxa legal contados a partir da citação.".
Alega, em síntese, que é o único e legítimo proprietário do prédio urbano de habitação social, que identifica, por força da transferência para o Autor de património imobiliário do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, IP, que tal prédio havia sido dado de arrendamento para habitação em Fevereiro de 1999. Mais alega que o arrendamento cessou com o falecimento dos primitivos arrendatários, não se tendo transmitido à Ré, neta do primitivo arrendatário e residente em França, que ocupa de forma ilegal o imóvel de habitação social. Pretende que a Autora seja condenada a reconhecer o seu direito de propriedade, a restituir o imóvel livre e devoluto de pessoas e bens e a pagar uma indemnização pelos danos causados.
Em 12.04.2018, no Juízo de Competência Genérica de Olhão - Juiz 1, foi proferida decisão a julgar o Tribunal incompetente em razão da matéria para apreciação e julgamento da acção intentada, considerando ser a competência material da jurisdição administrativa.
Após trânsito, foi o processo remetido ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé (TAF de Loulé).
Por saneador sentença de 31.12.2020, o TAF de Loulé julgou-se incompetente, em razão da matéria, por entender estar em causa nos autos uma típica acção de reivindicação e, portanto, encontrar-se excluída da competência dos tribunais administrativos.
Suscitada a resolução do conflito negativo de jurisdição, os autos foram remetidos a este Tribunal dos Conflitos.
Neste Tribunal dos Conflitos foi dado cumprimento ao disposto no nº 3 do artigo 11º, da Lei nº 91/2019.
A Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de que a competência material para apreciar a acção deverá ser atribuída aos tribunais comuns.

2. Os Factos
Os factos com interesse para a decisão são os constantes do relatório.

3. O Direito
O presente Conflito Negativo de Jurisdição vem suscitado entre o Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo de Competência Genérica de Olhão, Juiz 1, e o TAF de Loulé.
O Juízo de Competência Genérica de Olhão declarou-se incompetente, em razão da matéria, para conhecer do litígio entendendo que: "Dúvidas não restam de que o Autor é uma entidade de direito público, que exerce uma actividade de natureza pública e actua com vista à realização de um interesse público legalmente definido.
Impõe-se, então, concluir, que o conflito que opõe o Autor, instituto público integrado na administração indirecta do Estado, e a Ré, surgiu no âmbito de uma relação jurídica administrativa, cabendo a respectiva apreciação e decisão aos tribunais administrativos, conforme o estabelecido no artigo 1.°, do ETAF.
E, apoiando-se em jurisprudência proferida em litígios relativos ao regime de renda apoiada, que cita, concluiu: "Em face das considerações expostas, dúvidas não restam de que, atenta a causa de pedir e os pedidos formulados pelo Autor, a apreciação da presente acção cabe na competência material da jurisdição administrativa".
Por sua vez, o TAF de Loulé também se considerou incompetente em razão da
matéria.
Considerou que “A questão material controvertida, tal como apresentada na petição inicial, é, então, o reconhecimento do seu direito de propriedade e subsequente actuação conforme a tal reconhecimento, sendo alegado apenas que a Demandada violou o direito de propriedade, sem que seja identificado nenhum concreto procedimento ou acto administrativo e seus respectivos vícios.
(…) Ora, o reconhecimento do direito de propriedade não integra a noção de relação jurídica de natureza administrativa, conforme resulta dos artigos 212°, número 3 da CRP, 1° e 4° do ETAF, dado inexistirem quaisquer normas de direito público que importe apreciar.
Assim, em face da forma concreta como é configurada a acção, estamos perante matéria cuja competência pertence aos tribunais comuns dirimirem.
O Tribunal de Conflitos foi já chamado a pronunciar-se sobre a questão de saber quais os tribunais competentes para dirimirem estes litígios, tendo concluído que são os tribunais da jurisdição comum e não os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal.".

Vejamos.
Cabe aos tribunais judiciais a competência para julgar as causas «que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional» [artigos 211.°, n.º1, da CRP, 64.° do CPC e 40.°, n.º1, da Lei n.º 62/2013, de 26/8 (LOSJ)], e aos tribunais administrativos e fiscais a competência para julgar as causas «emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais» (artigos 212.°, n.º 3, da CRP e 1.°, n.º 1, do ETAF).
A competência dos tribunais administrativos e fiscais é concretizada no artigo 4.° do ETAF (Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro), com delimitação do "âmbito da jurisdição" mediante uma enunciação positiva (n.ºs 1 e 2) e negativa (n.ºs 3 e 4).
Tem sido reafirmado por este Tribunal, e constitui entendimento jurisprudencial e doutrinário consensual, que a competência material do tribunal se afere em função do modo como o Autor configura a acção e que a mesma se fixa no momento em que a acção é proposta.
Como se afirmou no Ac. deste Tribunal de 01.10.2015, Proc. 08/14, "A competência é questão que se resolve de acordo com os termos da pretensão do Autor, aí compreendidos os respectivos fundamentos e a identidade das partes, não importando averiguar quais deviam ser os termos dessa pretensão, considerando a realidade fáctica efectivamente existente ou o correcto entendimento do regime jurídico aplicável. O Tribunal dos Conflitos tem reafirmado constantemente que o que releva, para o efeito do estabelecimento da competência, é o modo como o Autor estrutura a causa e exprime a sua pretensão em juízo".
Analisados os termos e o teor da petição inicial, constata-se estarmos perante um litígio cuja causa de pedir se situa no âmbito dos direitos reais visando o Autor, para além do reconhecimento do seu direito de propriedade, a restituição do imóvel de habitação social em causa, livre e devoluto de pessoas e bens, e ser indemnizado por todos os prejuízos sofridos devido à ocupação alegadamente ilegal levada a efeito pela Ré.
O que se discute nesta acção não tem a ver com questões relativas a um contrato de arrendamento sujeito ao regime de renda apoiada, tratadas na jurisprudência citada na decisão do Juízo de Competência Genérica de Olhão, mas com a restituição do imóvel ao seu legítimo proprietário, pondo termo a uma situação de ocupação sem título justificativo.
Ora, a jurisprudência deste Tribunal dos Conflitos tem, abundantemente, entendido que a competência para conhecer de acções em que se discutem direitos reais cabe apenas na esfera dos Tribunais Judiciais (cfr. Acórdãos do Tribunal dos Conflitos, de 30.11.2017, Proc. 011/17, de 13.12.2018, Proc. 043/18, de 23.05.2019, Proc. 048/18, de 23.01.2020, Proc. 041/19 e de 02.12.2021, Proc. 03802/20.8T8GMR.G1.S1 (todos in www.dgsi.pt).
E, apreciando casos idênticos ao dos autos, decidiu este Tribunal dos Conflitos em 06.02.2014, Proc. nº 058/13, que: “Ora, na concreta situação dos autos e ponderado o teor da petição inicial apresentada, face aos pedidos ali deduzidos e respectivos fundamentos, não pode duvidar-se que estamos confrontados com acção de natureza real, em que a empresa municipal que figura como A. afirma a existência de um direito de propriedade do município sobre a fracção em litígio (invocando a norma constante do art. 1311° do CC) e deduz contra o R./ocupante ilegítimo pretensão real, traduzida na efectivação da entrega do imóvel ao legítimo proprietário, pondo termo a situação de ocupação ilegítima ocorrida após ter caducado o contrato de arrendamento celebrado com pessoa diversa do actual possuidor”'.
No mesmo sentido, escreveu-se no Acórdão do Tribunal dos Conflitos de 04.02.2106, Proc. nº 046/15: “«ln casu», a pretensão principal que a autora enunciou, e que funciona como caracterizadora do pleito, enquadra-se tipicamente nas acções de reivindicação (art. 1311° do Código Civil); pois consiste nos pedidos de reconhecimento do direito de propriedade sobre um imóvel e de condenação do réu ocupante a restituí-lo.
Assim, e face ao «petitus», a acção dos autos apresenta-se como uma «reivindicatio». E essa sua índole não é negada pela factualidade descrita na petição, relativa ao que sucedeu com um anterior contrato de arrendamento referente ao imóvel. É que esse circunstancialismo, alegado pela autora «in initio litis», opera - na economia da lide - como a alegação antecipada de que o réu ocupa o fogo reivindicado sem dispor de um título justificativo da sua detenção.
Portanto, as duas decisões antagónicas e ora em confronto comungam do mesmo erro de perspectiva: o de localizarem o dissídio num contrato de arrendamento - ainda que depois elas divergissem quanto à natureza pública ou privada desse negócio. Quando, afinal, nenhum contrato está na base da acção, cuja estrutura - verdadeiramente limitada à alegação do direito de propriedade sobre uma coisa detida pelo réu - obriga a configurá-Ia como uma autêntica e genuína «reivindicatio».
Ora, e como este Tribunal dos Conflitos tem repetidamente dito (cfr., v.g., o aresto que resolveu o Conflito n.º 12/10), não há, no ETAF vigente aquando da propositura da causa, uma norma que atribua competência à jurisdição administrativa para o conhecimento de acções de reivindicação («vide», a propósito, o seu art. 4°). Solução que bem se compreende, pois o que nelas essencialmente se discute é a questão, puramente de direito privado, de saber se o direito real invocado pelo «dominus» existe e é oponível ao réu, por forma a tirar-lhe a detenção da coisa; e só acidentalmente se colocará um problema ligado ao direito público - se o detentor se socorrer de regras desta ordem para titular e legitimar a sua detenção." (disponíveis no mesmo sítio).
Ora, é precisamente esta a situação dos autos, pelo que a competência para conhecer do objecto do litígio cabe aos Tribunais Judiciais (cfr. art. 64° do CPC).
Pelo exposto, acordam em julgar competente para apreciar a presente acção o Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo de Competência Genérica de Olhão.
Sem custas.

Lisboa, 8 de Novembro de 2022. – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa (relatora) – Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza.