Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:015/23
Data do Acordão:02/07/2024
Tribunal:CONFLITOS
Relator:TERESA DE SOUSA
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO.
JURISDIÇÃO ADMINISTRATIVA E FISCAL.
CNPD.
ILÍCITO DE MERA ORDENAÇÃO SOCIAL.
Sumário:I - Compete à Jurisdição Administrativa e Fiscal a competência para conhecer das decisões da CNPD, incluindo as de natureza contra-ordenacional;
II – Tal resulta de se encontrar expressamente prevista no art. 34º, nºs 1 e 2 da Lei nº 58/2019 a competência material dos tribunais administrativos para impugnação de todas as decisões da CNPD, incluindo as de natureza contra-ordenacional;
III – Assim, há que ter em conta essa atribuição expressa de competência, independentemente de a mesma não ter sido contemplada na enumeração constante do art. 4º, nº 1 do ETAF.
Nº Convencional:JSTA000P31880
Nº do Documento:SAC20240207015
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LISBOA, JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE LISBOA - JUIZ 11 E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO DE CÍRCULO DE LISBOA U04
AUTOR: A..., UNIPESSOAL, LDA
RÉU: MINISTÉRIO PÚBLICO (CNPD — COMISSÃO NACIONAL DE PROTECÇÃO DE DADOS)
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Conflito n° 15/23

Acordam no Tribunal dos Conflitos

1. Relatório
A Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD), invocando o disposto no art. 34º, nºs 1 e 2 da Lei nº 58/2019, de 08/08, remeteu ao Ministério Público junto do Tribunal Administrativo de Lisboa [TAC de Lisboa] o recurso apresentado pela arguida A..., Unipessoal, Lda [doravante A...], melhor identificada nos autos, nos termos do disposto no art. 59º do RGCO, ex vi art. 16º da Lei nº 41/2004, de 18/08, e os arts. 45º e 66º da Lei nº 58/2019. Recurso este dirigido ao TAC de Lisboa, para impugnação judicial da Deliberação/2021/1529, de 07.12.2021, homologada por decisão da mesma data da Presidente da CNPD, que aplicara à A... a coima de €5.000,00, pela prática de uma contra-ordenação prevista e punida pelas normas conjugadas dos artigos 13-A e 14, nº 1, alínea f), ambos da Lei nº 41/2004, de 18/8, alterada pela Lei nº 46/2012, de 29/8 (Lei da Privacidade nas Comunicações Electrónicas).
O Ministério Público junto do TAC de Lisboa, por considerar, em síntese, que, nos termos do disposto na alínea l) do nº 1 do art. 4º do ETAF, aquele Tribunal “apenas tem competência para apreciar recursos de contra-ordenações em matéria de urbanismo”, determinou a remessa do expediente aos Serviços do Ministério Público do Tribunal Criminal Local de Lisboa, ao abrigo do disposto no art. 130º, nº 2, alínea b) da Lei nº 62/2013, de 26 de Agosto.
O Ministério Público junto do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa - Juízo Local Criminal de Lisboa - fez os autos presentes a esse Tribunal, em 04.04.2022, nos termos do artigo 62º, nº 1 do DL nº 433/82, de 27 de Outubro, tendo o processo de Recurso de Contra-Ordenação recebido o nº 227/22.4Y4LSB.
Por decisão proferida por aquele Juízo Local Criminal de Lisboa, Juiz 11, em 07.04.2022, foi declarada a incompetência desse Tribunal, em razão da matéria, para apreciação do recurso interposto pela arguida, por entender, em síntese, que face ao disposto no artigo 34º, nº 2, da Lei da Protecção de Dados Pessoais, aprovada pela Lei nº 58/2019, de 8 de Agosto, as acções propostas contra a CNPD são da competência dos tribunais administrativos, “uma vez que, está em causa a violação de normas de direito administrativo (artigo 4º, 6.º e 34.º, n.º 2 da Lei n.º 58/2018). (…)”.
Após trânsito, foi o processo remetido ao TAC de Lisboa.
O TAC de Lisboa – Juízo Administrativo Comum, por decisão de 27.06.2023, julgou-se incompetente, em razão da matéria, para conhecer do recurso de impugnação contra-ordenacional considerando, em síntese, que face ao estabelecido na artigo 4.º, n.º 1, alínea l) do ETAF a competência da jurisdição administrativa e fiscal relativamente à impugnação judicial de decisões da Administração Pública que apliquem coimas no âmbito do ilícito de mera ordenação social se encontra circunscrita aos casos que respeitem à violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo ou em matéria tributária. Concluiu, apoiando-se no Acórdão deste Tribunal de 23.03.2022, Proc. nº 039/21, que a decisão de aplicação da coima em causa não decorre da violação de normas que se integram no conceito de matéria de urbanismo ou de normas tributárias, encontrando-se, por isso, o objecto do processo subtraído à competência material do TAC de Lisboa.
Por despacho de 25.09.2023, o TAC de Lisboa determinou, referenciando o disposto nos arts. 2º e 8º da Lei nº 91/2019, de 4/9. a subida dos autos a este Tribunal dos Conflitos. 
Neste Tribunal dos Conflitos foi dado cumprimento ao disposto no nº 3 do art. 11º da Lei nº 91/2019, de 4 de Setembro, nada tendo sido dito pelas partes.
A Exma. Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer em 21.11.2023, no sentido de que a competência material para julgar a impugnação judicial da decisão punitiva em causa deverá ser atribuída aos tribunais da jurisdição administrativa, mais precisamente o Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa (Juízo Administrativo Comum).

2. Os Factos
Os factos relevantes para a decisão são os enunciados no Relatório.

3. O Direito
O presente Conflito Negativo de Jurisdição vem suscitado entre o Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa - Juízo Local Criminal de Lisboa, Juiz 11 e o TAC de Lisboa – Juízo Administrativo Comum.
A questão que está em causa nos autos é a de saber qual a jurisdição competente para apreciar a impugnação judicial apresentada pela arguida A... na CNPD e remetida pelo Ministério Público ao Tribunal em 04.04.2022, respeitante a coima que a CNPD aplicou à arguida, no âmbito do processo de contra-ordenação n° AVG/2019/543, coima esta no montante de €5.000,00, pela prática da contra-ordenação prevista e punida nos termos das disposições conjugadas do nº 1 do art. 13º-A e da alínea f) do n.º 1 e do nº 5, ambos do art. 14º da Lei nº 41/2004, de 18 de Agosto, por alegado tratamento de dados pessoais para efeitos de marketing, sem consentimento prévio da visada.
É, desde já, de definir que em causa nos autos está a Deliberação da CNPD, 2021/1529, de 07.12.2021, que aplicou à A..., no âmbito do processo de contra-ordenação nº AVG/2019/543, uma coima no montante de €5.000,00.
Na referida data encontrava-se já em vigor a Lei n° 58/2019, de 8/8, em cujo artigo 34º se prescreve o seguinte:
1 - Qualquer pessoa, de acordo com as regras gerais de legitimidade processual, pode propor ações contra as decisões, nomeadamente de natureza contraordenacional, e omissões da CNPD, bem como ações de responsabilidade civil pelos danos que tais atos ou omissões possam ter causado.
2 - As ações propostas contra a CNPD são da competência dos tribunais administrativos.”
A competência para apreciar os recursos em matéria contra-ordenacionai foi-se alterando, pertencendo sempre essa competência à jurisdição comum [Lei nº 67/98, de 26 de Outubro, que previu que a competência era do tribunal da concorrência, regulação e supervisão - artigo 112º, nº 1, al. g) da LOSJ, depois a Lei nº 23/2018, de 5 de Junho, que incluiu no artigo 112º, nº 1 da LOSJ a ERC mas não a CNDP, pelo que, após 04.08.2018 (data da sua entrada em vigor), passaram a ser materialmente competentes os juízos locais criminais para o conhecimento dos recursos de contra-ordenação de decisões da CNPD].
Porém, com a Lei nº 58/2019, no seu art. 34º, este paradigma de atribuir a competência para a apreciação dos recursos contra-ordenacionais como o aqui em causa aos tribunais da jurisdição comum terá sofrido uma alteração.
É o que se afigura resultar do disposto no nº 1 do art. 34º que abrange na qualificação como “ações” o recurso de impugnação judicial das decisões de natureza contra-ordenacional da CNDP, regulado nos termos dos artigos 59.º e seguintes do Decreto-Lei nº 433/82, apesar de, verdadeiramente, tal recurso não ser instaurado “contra” a CNDP, que nele não é uma verdadeira parte.
Esta terminologia resultará do disposto nos artigos 78º e 79º do Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27.04.2016, onde, indistintamente, se faz referência ao “direito à ação judicial” e ao “recurso”, como formas processuais similares admissíveis - referindo-se que “todas as pessoas singulares ou coletivas têm direito à ação judicial contra as decisões juridicamente vinculativas das autoridades de controlo que lhes digam respeito." e que “os recursos contra as autoridades de controlo são interpostos nos tribunais do Estado-Membro em cujo território se encontrem estabelecidas.”
Assim, tal terminologia não constitui impedimento a que deva concluir-se que o legislador pretendeu inequivocamente atribuir aos tribunais administrativos a competência material quer para as acções interpostas contra a CNPD, quer para os recursos de impugnação das respectivas decisões contra-ordenacionais. Aliás, se essa intenção não foi declarada expressamente na exposição de motivos da Proposta de Lei nº 120/XIII/3ª, que conduziu à aprovação da Lei nº 58/2019, revela-se da consulta dos trabalhos parlamentares, verificando-se que, nomeadamente, a CNDP propôs que se excepcionasse do nº 2 do artigo 34º as “ações de impugnação das deliberações sancionatórias, cuja competência jurisdicional se afere nos termos da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto”.
Ora, o legislador manteve a redacção do artigo 34º que constava da proposta de lei.
Assim, tendo em atenção o disposto no art. 9º do Código Civil (CC), sendo de reconstituir o pensamento legislativo a partir dos textos parlamentares, tendo em conta as circunstâncias em que a lei foi elaborada, e que o legislador não desconhecia as consequências da redacção que contemplou naquele art 34º - a de atribuir aos tribunais administrativos a competência em matéria de recursos contra-ordenacionais das deliberações sancionatórias da CNPD -, sendo de presumir que consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados, é de concluir que pretendeu, efectivamente, atribuir aos tribunais administrativos a competência material não só para as acções interpostas contra a CNPD, como igualmente para a apreciação de recursos de impugnação de decisões de aplicação de coimas proferidas pela mesma.
É certo que tal competência não resulta expressamente prevista no art. 4º, nº 1 do ETAF, nas suas diversas alíneas (estando essa competência contra-ordenacional já contemplada quanto a impugnações em contra-ordenações respeitantes a matéria de urbanismo – 1ª parte da alínea I), daquele nº 1, do art. 4º). 
No entanto, como referem Mário Aroso de Almeida e C.A. Fernandes Cadilha, in Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Almedina, 2017, 4ª ed., «O âmbito da jurisdição administrativa e fiscal é identificado, no artigo 212º, n.º 3 da CRP, por referência aos meios processuais que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes de relação jurídicas administrativas e fiscais.» (pág. 17). E que «A matéria da delimitação do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal é regulada pelo ETAF no seu artigo 4.º. Na ausência de determinação expressa em sentido diferente, contida em lei avulsa, valem pois, nessa matéria, os critérios estabelecidos no artigo 4º do ETAF. A verdade, porém, é que o regime decorrente deste artigo é objeto de múltiplas derrogações resultantes de legislação especial.» [estando os Autores a referir-se a desvios ao regime do artigo 4.º que devendo pertencer à jurisdição administrativa e fiscal dela foram afastadas, nomeadamente, a impugnação judicial de decisões de aplicação de coimas no âmbito do ilícito de mera ordenação social (sendo que com a alteração introduzida pelo Decreto-Lei nº 214-G/2015, a alínea I) do artigo 4.º, n.º 1, introduziu no âmbito da jurisdição administrativa o ilícito de mera ordenação social “por violação de normas de direito administrativo em direito de urbanismo”)] - cfr. págs. 19 e 20.
Referindo-se às autoridades reguladoras independentes admitem os Autores que «... a determinação da competência contenciosa para conhecer dos litígios que a sua atividade possa gerar suscita outro tipo de dificuldades». «Dentro deste enquadramento geral, a determinação da competência contenciosa em relação a atos administrativos praticados por essas entidades carece de ser analisada casuisticamente em função do estabelecido no respetivo estatuto orgânico, quer por via do regime jurídico que se estiver definido para o seu funcionamento, quer por efeito de regras de competência que se encontrem expressamente previstas.» - págs. 25 e 26.
Ora, encontrando-se expressamente prevista no art. 34º, nºs 1 e 2 da Lei nº 58/2019 a competência material dos tribunais administrativos para impugnação de todas as decisões da CNPD, incluindo as de natureza contra-ordenacional, há que ter em conta essa atribuição expressa de competência, independentemente de a mesma não ter sido contemplada na enumeração constante do artigo 4º, nº 1 do ETAF - cfr. neste sentido, entre outros, os recentes acórdãos deste Tribunal dos Conflitos sobre esta matéria, de 14.07.2022, Proc. n° 013/22, de 05.07.2023, Procs. nº 0218/23.8Y4LSB-A.S1, nº 0114/23.9Y4LSB-A e Proc. nº 07/23 e de 15.11.2023, Proc. nº 014/23 [tendo este Tribunal dos Conflitos invertido, desde há muito, e em sucessivos acórdãos, a sua posição nesta matéria em relação ao que havia decidido no acórdão de 23.03.2022, Proc. nº 039/21, seguido na decisão do TAC de Lisboa].
Pelo exposto, acordam em julgar que a competência para a referida impugnação judicial cabe aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal, concretamente ao TAC de Lisboa.
Sem custas.

Lisboa, 7 de Fevereiro de 2024. – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa (relatora) – Nuno António Gonçalves.