Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:060/13
Data do Acordão:01/29/2014
Tribunal:CONFLITOS
Relator:FERNANDES DA SILVA
Descritores:RENDA APOIADA
HABITAÇÃO SOCIAL
DEPÓSITO
IMPUGNAÇÃO
JURISDIÇÃO ADMINISTRATIVA
Sumário:I - O regime de ‘renda apoiada’, previsto no Decreto-Lei n.° 166/93, de 7 de Maio, é constituído por normas qualificáveis como de direito público.
II - Cabe à Jurisdição Administrativa, ex vi do disposto no art. 4°, n° 1, alínea f), do ETAF, a competência para conhecer de uma acção em que um Município impugne o depósito da renda de uma habitação social, promovido pelo respectivo arrendatário, quando/se essa impugnação se funda no facto de a renda devida divergir da renda depositada, por ser calculável segundo o regime estabelecido no diploma identificado em I.
Nº Convencional:JSTA000P16951
Nº do Documento:SAC20140129060
Data de Entrada:11/04/2013
Recorrente:MUNICÍPIO DE FARO, NO CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO ENTRE O 2º JUÍZO CÍVEL DO TRIBUNAL JUDICIAL DE FARO E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE LOULÉ
Recorrido 1:*
Votação:*
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Acordam no Tribunal de Conflitos:

I

1.
O Município de Faro, pessoa colectiva, instaurou no Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé, em 31.10.2011, acção administrativa comum, sob a forma sumária, visando impugnar a consignação em depósito de rendas, contra A…………, residente na Praceta ……, Bloco ……, ……, na cidade de Faro.
Pediu, a final, que, uma vez recebida a presente impugnação, seja julgado improcedente e ineficaz para qualquer efeito jurídico, nomeadamente de extinção da obrigação de pagamento da renda devida pelo R. ao A., o depósito de que o R. notificou o A. em 10.10.2011, bem como todos os subsequentes que o ora R. vier a efectuar nesse montante ou qualquer outro distinto do reclamado pelo A., bem como ser o R. condenado a pagar ao A. a renda actualizada devida, nos termos que lhe foram comunicados em 28.7.2011, acrescida das penalidades legalmente devidas pela falta de pagamento pontual das rendas devidas, sendo com esse alcance mandado completar o/s depósito/s, acrescendo a tudo ainda a condenação nas custas e demais encargos a que houver lugar.

Alegou para o efeito, em resumo útil, o seguinte:
- É proprietário do imóvel sito na Praceta ……, Bloco ……, ……, 8000 Faro;
- Em 2 de Abril de 1985 deu o mesmo de arrendamento ao R., para fins habitacionais, por via do contrato que ora se junta como documento n.° 1, tendo sido fixada uma duração de um ano, com início em 2 de Abril desse ano, ‘considerando-se sucessivamente renovado por iguais e sucessivos períodos, se não for denunciado por qualquer dos outorgantes, nos termos da lei’;
- Estipulou-se a renda mensal de Esc. 5.100$00, a ser paga na Tesouraria da Câmara Municipal, no primeiro dia útil do mês a que a prestação diga respeito, sendo a mesma actualizável nos termos da Portaria n.° 288/83, de 17 de Março;
- Em 16.7.2010 foi publicado no Diário da República, II Série n.° 137, o Regulamento de Acesso e Gestão do Parque Habitacional do Município de Faro, que entrou em vigor em 21.7.2010;
- O mesmo pressupõe que, após a entrada em vigor desse Regulamento, todo o arrendamento de unidade independente dos imóveis construídos para habitação social no concelho de Faro será afectado ao abrigo e de acordo com as disposições do Decreto-Lei n.° 166/93, de 7 de Maio, até publicação de novos regimes, de acordo com o previsto na Lei n.° 6/2006, de 27 de Fevereiro;
- Em 10.3.2011 foi publicado, nos jornais ‘Jornal do Algarve’, ‘Região Sul’ e ‘Diário de Notícias’, o Edital n.° 110/2011, de 7.2.2011, do Senhor Presidente da Câmara Municipal de Faro, por via do qual o A. decidira aplicar o regime de renda apoiada aos arrendamentos das habitações da Urbanização Municipal de ………, ……… e Avenida ………, a partir de 1 de Junho de 2011;
- Esse mesmo edital foi ainda afixado nos lugares de estilo do A. e das Juntas de Freguesia, tendo ainda sido realizadas sessões de esclarecimento em 24 e 29 de Março de 2011;
- O R. foi notificado em 7.3.2011 com vista a proceder à entrega da documentação necessária ao apuramento da actualização da renda devida e, no seguimento da analise da documentação entregue pelo R., veio a apurar-se ser o agregado composto pelo R. e sua mulher, com um rendimento anual bruto de € 8.499,79;
- Pelo que, procedendo nos termos legalmente previstos, ao cálculo respectivo, apurou-se uma renda devida pelo R. de € 82,80, o que o A. comunicou ao R. em 28.7.2011, mais lhe comunicando que, para assegurar um ajustamento progressivo e gradual das rendas, esse aumento das rendas seria implementado de acordo com um plano de pagamento repartido pelo ano de 2011 e 2012;
- Da actualização levada a cabo resultava que em Outubro de 2011 o valor da renda devida pelo R ascendia a € 29,47;
- Porém, em 10.10.2011 foi o A. notificado de que o R. não procedeu ao pagamento da renda devida, antes tendo promovido o depósito da quantia de € 18,80, à ordem do Tribunal da comarca de Faro, ut doc. n.° 4, assim dando corpo à consignação de depósito a que alude o art. 17° da Lei n.° 6/2006, de 27 de Fevereiro, depósito que o A. não aceita, como não aceita que dele seja extraída qualquer consequência jurídica;
- Procedendo à impugnação do mesmo, por este meio, deve esse depósito julgar-se carecido de qualquer fundamento e validade, não se lhe reconhecendo ou sendo atribuída nenhuma eficácia.

Por decisão de 7 de Novembro de 2011, (transitada em julgado, ut certidão de fls. 468), o Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé, considerando que o litígio versa sobre um contrato de arrendamento, a que é aplicável o NRAU, ou seja, um regime substantivo de natureza privatístico-civilista, declarou-se incompetente em razão da matéria para conhecer da presente acção.

2.
Já no 2.° Juízo Cível do Tribunal Judicial de Faro - para onde transitaram os Autos a requerimento do A./Município de Faro, na sequência da notificação da decisão precedente - foi proferido despacho, com data de 20.6.2013, em que, considerando ser competente para apreciar o pedido formulado o Foro Administrativo, se julgou verificada a excepção de incompetência material do Tribunal, absolvendo da Instância, em consequência, o R. A………….

3.
Na sequência — e uma vez passada em julgado a decisão prolatada — foi o processo remetido a este Tribunal, para os devidos efeitos, conforme determinado no despacho de fls. 492.

Distribuído — e presentes os Autos ao Ministério Público — foi proferido pelo Exm.° Magistrado o proficiente parecer de fls. 503-507, em que conclui no sentido de dever deferir-se a competência para julgamento do pleito à Jurisdição Administrativa, porquanto, como em suma se destaca, o contrato de arrendamento subjacente é destituído de natureza jurídico-privada, sendo antes um contrato administrativo submetido a um regime substantivo de direito público.


Entendeu-se — por se tratar de uma questão recorrente, com solução conhecida, reiterada e consensual — não se justificar a delonga adveniente da notificação desse parecer às partes.

Dispensados os vistos, com entrega prévia do projecto de acórdão aos Exm.°s Juízes-Adjuntos, cumpre apreciar e decidir.
II.

Conhecendo:
Como se lembra no Acórdão prolatado no Conflito n.° 30/12, da pretérita Sessão de 11 de Dezembro, a questão sujeita — configurando mais um conflito de jurisdição protagonizado pelos Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé e Tribunal Judicial de Faro — já foi abordada e decidida por diversas vezes neste Tribunal.

Por isso — e adoptando a metodologia seguida nesse Aresto — limitar-nos-emos a acompanhar, reeditando-os, os momentos mais impressivos da fundamentação que suporta, genericamente, a solução sucessivamente proclamada.

Como é sabido, os Tribunais Judiciais são os Tribunais comuns em matéria cível e criminal - arts. 211°/1 da C.R.P. e 18.°/1 da LOFT) -, exercendo jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais.
Cabe-lhes, pois, na previsão plasmada no art. 64° do NCPC (anterior art. 66°), a chamada competência material residual: «São da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.».

Aos Tribunais Administrativos e Fiscais compete — ainda por determinação Constitucional, ut n.° 3 do art. 212.° da C.R.P. —, o julgamento das acções e recurso que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais, competência que a Lei ordinária concretizou no art. 4.° do ETAF (Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais), aprovado pela Lei n.° 13/2002, de 17 de Fevereiro, com todas as posteriores alterações.
Assim, nos termos do seu (art. 4.º) nº 1, f), ‘compete aos tribunais de jurisdição administrativa e fiscal a apreciação dos litígios que tenham nomeadamente por objecto questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível de acto administrativo, de contratos especificadamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos do respectivo regime substantivo, ou de contratos que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público’.

É também premissa certa e segura de que competência ratione materiae, enquanto pressuposto processual, se define tomando em consideração os termos e/ou forma como o proponente da acção (o autor) configura a respectiva causa de pedir/pedido, o «quid disputatum», nas expressivas palavras de Manuel de Andrade (- ‘Noções Elementares de Processo Civil’, Coimbra Editora, 1976, pg. 91.).
(Veja-se, por todos, o paradigmático Acórdão do S.T.J., de 14.5.2009, acessível em www.dgsi.pt, citado a propósito no Acórdão deste Tribunal, tirado no Conflito n° 13/13, da pretérita sessão de 20 de Junho, em cujos termos, como nele se sumaria, ‘a competência material do tribunal afere-se pelos termos em que a acção é proposta e pela forma como se estrutura o pedido e os respectivos fundamentos. Daí que para se determinar a competência material do tribunal haja apenas que atender aos factos articulados pelo autor na petição inicial e à pretensão jurídica por ele apresentada, ou seja, à causa de pedir invocada e aos pedidos formulados.’).

Assim, analisando o petitório, facilmente se alcança que o A. invoca como fundamento da acção um contrato de arrendamento que celebrou com o R., o qual veio a ficar subordinado ao regime de ‘renda apoiada’, previsto no Decreto-Lei n.° 166/93, de 7 de Maio, na sequência e por imposição do Regulamento de Acesso e Gestão do Parque Habitacional do Município de Faro, entretanto publicado no DR., II série, n.° 137, em vigor desde 21.7.2010.

Acerca da natureza pública das normas que integram o falado regime de ‘renda apoiada’ pronunciou-se já repetidamente este Tribunal dos Conflitos, podendo conferir-se, por todos, v. o Acórdão de 25 de Setembro de 2012, proferido no Proc. n.° 12/11 (in www.dgsi.pt), em cujo sumário se plasmou: “O litígio que concretamente é colocado ao Tribunal emerge, por outro lado, da aplicação das regras do Decreto-Lei n.° 166/93 de 7 de Maio, pretendendo os AA. que tal regime não lhes seja aplicável, perante a iniciativa da ora recorrente tendente à sua aplicação e desse modo alterar a compensação.
Deste modo, o litígio que delimita o objecto deste processo é um litígio sobre a aplicação do ‘regime de renda apoiada’ aos contratos em causa.
Este regime é claramente um regime de direito público e é aplicável, como decorre do seu art. 1.º, n.° 2, aos ‘arrendamentos das habitações do Estado, dos seus organismos autónomos e institutos públicos, bem como os das adquiridas ou promovidas pelas Regiões Autónomas, pelos municípios e pelas instituições particulares de solidariedade social com participações a fundo perdido concedidas pelo Estado, celebrados após a entrada em vigor do presente diploma.’
Abrangia ainda, nos termos do art. 11.º/1, as habitações adquiridas ou promovidas pelas entidades referidas no art. 1º ‘que se encontrem arrendadas para fins habitacionais à data da entrada em vigor do presente diploma’.
Tendo o ora recorrente invocado o presente diploma legal para a actualização das compensações, e procurando os autores que a actualização ao abrigo de tal regime lhes não seja concretizada, é claro que o litígio emerge de uma relação jurídico-administrativa, pois trata-se de uma questão que irá ser dirimida com o recurso a regras de direito administrativo, mais concretamente o Decreto-Lei n.° 166/93, de 7 de Maio, e que envolve uma entidade que, nesta medida, agiu tendo por base um contrato administrativo e pretendendo aplicar normas de direito público’.

E mais incisivamente ainda se decidiu no Acórdão deste mesmo Tribunal de 14.3.2013, tirado no Proc. n.° 5/13 (in www.dgsi.pt) que “[n]ão tanto pelas finalidades públicas que o diploma inegavelmente prossegue, já que elas, por si sós, poderiam constituir uma regulação compaginável com a índole privada dos negócios. Mas porque o Decreto-Lei chega ao ponto de prever a transferência dos arrendatários nos casos de subocupação das habitações sociais locadas (art. 10.º, n.º 2), e essa possibilidade de desunir os contratos do seu objecto corresponde a uma solução cuja excepcionalidade é típica do direito público; a qual justifica que, por extensão, enquadremos nessa área do direito a generalidade do regime do diploma.

A bondade desta fundamentação e da solução que suporta não nos oferecem qualquer dúvida relevante, concitando, por isso, o nosso inteiro sufrágio.

Com efeito — e na sequência do entendimento já reiteradamente firmado em sucessivas intervenções deste Tribunal sobre a mesma temática — o referido diploma (Decreto-Lei n.° 166/93, de 7 de Maio) teve por objectivo estabelecer uma disciplina única para o regime de renda apoiada relativamente à habitação social promovida pelo Estado, pelas autarquias locais ou por entidades públicas, definindo as bases em que a renda devida pela ocupação de tais habitações seria calculada, bem como o regime da respectiva actualização.
Nos seus termos, a renda seria fixada pela entidade responsável pela gestão do parque habitacional em concreto, nos quadros de um procedimento de natureza administrativa, que é igualmente disciplinado nesse mesmo diploma.
Assim, a fixação da renda em causa deriva do exercício de competências de natureza administrativa, legalmente atribuída àquelas entidades, que terão de respeitar os parâmetros de natureza geral que enquadram a actividade administrativa.

Por isso, considerando a qualidade das entidades que assumem necessariamente esses poderes de fixação e actualização das rendas e, concomitantemente, a natureza dos objectivos que estão subjacentes a tal exercício, sempre terá de concluir-se que as normas em causa têm natureza de direito público.

Em suma:
Assente a natureza pública do regime de renda apoiada, que resulta do falado Decreto-Lei n.° 166/93, de 7 de Maio, não pode deixar de entender-se que o litígio configurado nos presentes Autos se enquadra na 2.ª parte do art. 4.°, n.° 1, f), do ETAF, uma vez que, respeitando à actualização das rendas devidas pelo R., a sua solução depende da aplicação de normas de direito público, reguladoras de aspectos específicos do regime jurídico do arrendamento em questão, ‘aspectos’ esses ligados ao apuramento da renda exigível.
(Cfr. o Acórdão deste Tribunal de 14.3.2013, prolatado no Proc. n.° 5/13, acessível no siteda dgsi.pt).

Assim sendo — como se nos afigura que seguramente é — e dependendo a solução do presente litígio do seu enquadramento por normas de Direito Público, as constantes do identificado Decreto-Lei n.° 166/93, de 7 de Maio, não pode deixar de concluir-se que os Tribunais competentes para dele conhecer são os Tribunais Administrativos.
III.
DECISÃO
Termos em que se delibera resolver o presente conflito de jurisdição no sentido de que pertence aos Tribunais Administrativos e Fiscais a competência material para conhecer da acção em causa.
Sem custas.
***
Lisboa, 29 de Janeiro de 2014. - Manuel Augusto Fernandes da Silva (relator) - Vítor Manuel Gonçalves Gomes - Sérgio Gonçalves Poças - Alberto Acácio de Sá Costa Reis - Gregório Eduardo Simões da Silva Jesus - António Bento São Pedro.