Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:010/21
Data do Acordão:02/15/2023
Tribunal:CONFLITOS
Relator:TERESA DE SOUSA
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
DIREITO DE PROPRIEDADE
FREGUESIA
TRIBUNAIS JUDICIAIS
Sumário:Tal como a Autora apresenta o litígio, formulando pedidos que têm subjacente o direito de propriedade, que invoca e pretende fazer prevalecer, a relação controvertida é uma relação de direito privado, tratando-se da defesa do direito de propriedade de um bem do domínio privado da freguesia, pelo que a competência para conhecer desta acção em que se discutem direitos reais não se inclui no artigo 4º do ETAF, devendo esta ser julgadas pelos tribunais comuns, cuja competência é residual.
Nº Convencional:JSTA000P30588
Nº do Documento:SAC20230215010
Data de Entrada:03/11/2021
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VILA REAL, JUÍZO LOCAL CÍVEL DE VILA REAL – JUIZ 1 E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE MIRANDELA, UNIDADE ORGÂNICA.
AUTORA: A UNIÃO DE FREGUESIAS DE ERMELO E PARDELHAS
RÉU: UNIÃO DE FREGUESIAS CAMPANHÓ E PARADANÇA
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Conflito nº 10/21

Acordam no Tribunal dos Conflitos

1. Relatório
A União de Freguesias de Ermelo e Pardelhas intentou no Tribunal Judicial da Comarca de Vila Real, Juízo Local Cível de Vila Real, acção de condenação contra a União de Freguesias de Campanhó e Paradança, formulando os seguintes pedidos:
a) Ser declarada a nulidade do registo correspondente à Ap. ...73 de 2016/11/24, pelo qual se mostra inscrito a favor da ré, a aquisição, por “transferência do património”, do prédio rústico sito no Lugar ... denominado ..., descrito na C.R.P. de Mondim de Basto, sob o nº ...30- Ermelo, e inscrito na matriz rústica de Ermelo sob o art. ...98, por violação das normas legais identificadas em 23) e sempre com o mui Douto suprimento de V.Exa.
b) e em consequência, ser ordenado o cancelamento de tal registo, em ordem a possibilitar o registo da propriedade plena do mesmo prédio favor da A., tudo com as legais consequências.”.
Em síntese, a Autora alega que o prédio rústico, que identifica, foi indevidamente registado pela Ré com base na Lei nº 11-A/2013, de 28 de Janeiro (reorganização administrativa do território das freguesias), apesar de haver uma decisão judicial transitada em julgado que havia reconhecido a propriedade a favor da extinta Junta de Freguesia de Ermelo, integrada na actual Autora, como um bem do seu domínio privado e não como mero integrante dos seus limites territoriais e que, ainda anteriormente, a extinta Junta de Freguesia de Ermelo havia adquirido tal prédio, embora não tivesse formalizado a compra por escritura pública. Considera que o registo do prédio a favor da Ré foi efectuado contra a lei por não existir título legal ou translativo negocial e muito menos aquisição originária e, por isso, deve ser declarada a sua nulidade.
A Ré contestou.
As partes foram notificadas para se pronunciarem quanto à possibilidade de o Tribunal se declarar incompetente, tendo a Autora defendido a competência do Tribunal por ser “a propriedade do prédio rústico e consequente registo predial o objecto da acção - e não o exercício de direitos administrativos” e não estar em causa questão “sobre a reorganização administrativa e os diplomas que a regulam”.
Em 10.11.2017, no Juízo Local Cível de Vila Real, Juiz 1, foi proferida decisão a julgar o Tribunal incompetente em razão da matéria para conhecer do objecto da acção, absolvendo as Ré da instância.
Remetidos os autos ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela (TAF de Mirandela), foi aí proferida sentença em 26.01.2021 a julgar verificada a excepção dilatória de incompetência do Tribunal em razão da matéria e a absolver a Ré da instância.
Suscitada a resolução do conflito negativo de jurisdição, foram os autos remetidos a este Tribunal dos Conflitos.
Neste Tribunal dos Conflitos foi dado cumprimento ao disposto no nº 3 do art. 11º, da Lei nº 91/2019.
O Ministério Público teve vista do processo.

2. Os Factos
Os factos relevantes para a decisão são os enunciados no Relatório.

3. O Direito
O presente Conflito Negativo de Jurisdição vem suscitado entre o Tribunal Judicial da Comarca de Vila Real, Juízo Local Cível de Vila Real, e o TAF de Mirandela.
Entendeu o Juízo Local Cível de Vila Real que “No caso dos autos, (…) dúvidas inexistem que A. e R. são pessoas colectivas de direito público. (…) o litígio dos autos centra-se na interpretação das normas atinentes à Reorganização Administrativa e Territorial Autárquica (Lei n.º 142/85, de 18 de Novembro - Lei quadro da criação de Municípios e sucessivas alterações -, Lei n.º 22/2012, de 30 de Maio - que aprova o regime jurídico da reorganização administrativa territorial autárquica -, Lei n.º 11-A/2013, de 28 de Janeiro - Define a Reorganização administrativa do território das freguesias, rectificada por Declaração de rectificação n.º 19/2013, 28 de Março -, Lei n.º 81/2013, de 6 de Dezembro e transição das freguesias no âmbito da reorganização administrativa operada pelas Leis n.ºs 56/2012, de 8 de Novembro, e 11-A/2013, de 28 de Janeiro). (…) Será em face da interpretação oferecida a essa regulamentação que, tal como a causa de pedir é formulada, se concluirá ou não se a A. é dona do terreno dos autos, sendo que a nulidade do registo e o seu eventual cancelamento constituirá eventual decorrência da resolução da primeira, e fulcral, questão. (…) Vale isto por dizer que se entende, sempre com todo o devido respeito por entendimento diverso, que os presentes autos caiem no âmbito da aI. j) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF”.
Por sua vez o TAF de Mirandela considerou que “(…) por um lado, do cotejo do pedido com a causa de pedir, infere-se que a Autora peticiona expressamente a nulidade do registo do prédio em causa nos autos e requer que seja ordenado o cancelamento desse registo, em ordem a possibilitar o registo da propriedade plena do mesmo prédio em seu favor. Nessa linha, diz, em síntese, que o mesmo foi indevidamente registado pela Ré alegadamente com fundamento no artigo 6º da Lei nº 11-A/2013, de 28 de Janeiro, apesar de haver uma decisão judicial transitada em julgado que lhe havia reconhecido a propriedade sobre o prédio. (…) A factualidade essencial que sustenta essa pretensão tem enquadramento nos artigos 17º e 13º do CRPredial. (…)
Por outro lado, do confronto do pedido com a causa de pedir, infere-se, ainda, que a Autora peticiona implicitamente o reconhecimento do direito de propriedade sobre o prédio em causa. (…)
Observado pedido formulado pela Autora, apenas se vislumbra uma pretensão de reivindicação de propriedade e de consequente declaração de nulidade e cancelamento do registo que a Autora entende ter sido feito indevidamente a favor da Ré. (…) Mesmo que a Autora antecipe que a Ré não pode invocar o artigo 6º da Lei n º 11-A/2013, de 28 de Janeiro, como título aquisitivo de propriedade, não é isso que transforma a situação vertente numa relação jurídica administrativa. Note-se que nem sequer se está diante de um quadro que acolha, ainda que sob a forma de lei, actos ou normas administrativas (cf. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 08-01-2014, proc. nº 0949/13). Trata-se, pois, exclusivamente, de, ao abrigo das normas de direito privado, verificar se a acção reivindicatória sobre a propriedade do prédio deve ou não obter provimento e se a lei é ou não, nas circunstâncias do caso, título suficiente para a aquisição da propriedade sobre o prédio que a Autora reclama ser seu (cf. v.g. artigos 1311º e 1316º do CC). Em função disso, à jurisdição comum cabe aferir dessa questão, bem como da subsequente questão da nulidade e cancelamento do registo, para a qual, como também já vimos, se considera a jurisdição comum igualmente competente”.

Vejamos.
O âmbito da jurisdição dos tribunais judiciais é constitucionalmente definida por exclusão, sendo-lhe atribuída em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais [artigos 211º, nº 1 da CRP, 64º do CPC e 40º, nº1 da Lei nº 62/2013, de 26/8 (LOSJ)].
Por seu turno, a jurisdição dos tribunais administrativos e fiscais é genericamente definida pelo nº 3 do art. 212º da CRP, em que se estabelece que “compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.
A competência dos tribunais administrativos e fiscais é concretizada nos artigos 1º e 4º. do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro, com várias alterações legislativas, sendo que no caso, atendendo à data de propositura da acção, é aplicável a versão decorrente do Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 2 de Outubro.
Tem sido reafirmado por este Tribunal, e constitui entendimento jurisprudencial e doutrinário consensual, que a competência material do tribunal se afere em função do modo como o Autor configura a acção e que a mesma se fixa no momento em que a acção é proposta.
Como se afirmou no Ac. deste Tribunal de 01.10.2015, Proc. nº 08/14 “A competência é questão que se resolve de acordo com os termos da pretensão do Autor, aí compreendidos os respectivos fundamentos e a identidade das partes, não importando averiguar quais deviam ser os termos dessa pretensão, considerando a realidade fáctica efectivamente existente ou o correcto entendimento do regime jurídico aplicável. O Tribunal dos Conflitos tem reafirmado constantemente que o que releva, para o efeito do estabelecimento da competência, é o modo como o Autor estrutura a causa e exprime a sua pretensão em juízo”.
Ora, na presente acção a Autora pede a declaração de nulidade do registo do prédio rústico, que a Ré efectuou ao abrigo artigo 6º da Lei nº 11-A/2003 [“1 - A freguesia criada por agregação integra o património mobiliário e imobiliário, os ativos e passivos, legais e contabilísticos, e assume todos os direitos e deveres, bem como as responsabilidades legais, judiciais e contratuais das freguesias agregadas. (…) 3 - A presente lei constitui título bastante para todos os efeitos legais decorrentes do disposto nos números anteriores, incluindo os efeitos matriciais e registrais. 4 - Sem prejuízo de outras formas de cessação da validade, consideram-se válidos os registos anteriores à data de entrada em vigor da presente lei que mencionem as freguesias objeto de agregação.(…)”], por não existir título legal ou translativo negocial, nem aquisição originária, que permitisse fazê-lo. E, alegando que é a proprietária do prédio em causa, como foi reconhecido judicialmente por sentença transitada em julgado, requer o seu cancelamento, para poder proceder ao registo da propriedade plena do referido prédio rústico a seu favor.
Assim, o que se pretende é, imediata e claramente, o reconhecimento de uma relação de direito privado, de direito de propriedade e de registo predial.
Tal como a Autora apresenta o litígio, formulando pedidos que têm subjacente o direito de propriedade, que invoca e pretende fazer prevalecer, a relação controvertida é uma relação de direito privado, trata-se da defesa do direito de propriedade de um bem do domínio privado da freguesia.
Apesar de estarmos em presença de um litígio entre duas freguesias, pessoas colectivas de direito público, não está em causa uma relação jurídica administrativa de modo ao seu conhecimento caber na competência dos tribunais administrativos nos termos da alínea j) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF. De facto, na presente acção não se discute os limites territoriais entre as duas freguesias, não está em discussão a localização do bem, só está em causa a propriedade e registo de um bem do domínio privado da freguesia.
Este Tribunal dos Conflitos tem entendido que a competência para conhecer de acções em que se discutem direitos reais não se inclui no artigo 4º do ETAF, devendo estas ser julgadas pelos tribunais comuns, cuja competência é residual (cfr. Acórdãos de 30.11.2017, Proc. 011/17, de 13.12.2018, Proc. 043/18, de 23.05.2019, Proc. 048/18, de 23.01.2020, Proc. 041/19 e de 02.12.2021, Proc.03802/20.8T8GMR.G1.S1 (todos consultáveis in www.dgsi.pt).
Deste modo, não se enquadrando no art. 4º do ETAF a relação jurídica em causa nos presentes autos, tal como configurada pela Autora, uma vez que as pretensões formuladas radicam no invocado direito real de propriedade, a competência material para apreciar a presente acção cabe aos tribunais judiciais.
Pelo exposto, acordam em julgar competente para apreciar a presente acção o Tribunal Judicial da Comarca de Vila Real, Juízo Local Cível de Vila Real, Juiz 1.
Sem custas.

Lisboa, 15 de Fevereiro de 2023. - Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa (relatora) – Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza.