Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:012/23
Data do Acordão:11/15/2023
Tribunal:CONFLITOS
Relator:TERESA DE SOUSA
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
RELAÇÕES DE CONSUMO
FORNECIMENTO DE ÁGUA
Sumário:Incumbe aos tribunais judiciais o julgamento de uma acção em que se discute questão emergente das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais.
Nº Convencional:JSTA000P31571
Nº do Documento:SAC20231115012
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE SANTARÉM – JUÍZO LOCAL CÍVEL DE OURÉM 1 E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE LEIRIA
AUTOR: AA
RÉU: A....
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Acordam no Tribunal dos Conflitos

1. Relatório
AA, identificado nos autos, intentou no Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, Juízo Local Cível de Ourém, contra A..., acção comum pedindo, além do mais, que aquela seja condenada na prestação do serviço de fornecimento de água para consumo humano e para abastecimento de um imóvel, procedendo à instalação do contador de água e ao fornecimento da mesma à casa do Autor, na morada que indica, no prazo que vier a ser designado na sentença final; e, caso não proceda a essa ligação que a Ré seja condenada numa sanção pecuniária compulsória, nos termos do art. 829º-A do Código Civil (CC), na quantia de € 100 por dia, a favor do A., desde o término que for determinado naquela sentença.
O A. alega em síntese que é dono da casa de habitação que identifica, onde tem fixada a sua residência própria e permanente. E que, indevidamente a Ré recusou celebrar um contrato de fornecimento de água da rede pública para fins domésticos em relação a essa casa de habitação, e de realizar a ligação da água da rede ao imóvel. Tendo o A. sofrido danos patrimoniais e morais, devido a esse facto.
Em sede de contestação a Ré, além do mais, excepcionou a incompetência material do Tribunal de Ourém para julgar a acção.
O Tribunal de Ourém proferiu despacho saneador em que indeferiu a excepção de incompetência absoluta daquele Tribunal.
E, proferiu sentença em 09.02.2023, julgando totalmente improcedente a acção.

O Tribunal da Relação de Évora revogou a decisão de 09.02.2023, concluindo pela competência dos Tribunais Administrativos para apreciar a causa e absolveu a Ré da instância.
Após solicitação do Autor, foi proferido despacho judicial em 1ª instância que mandou remeter os autos e o apenso de recurso ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, aproveitando-se os articulados já produzidos na acção.

O TAF de Leiria, por sentença de 23.05.2023, julgou-se incompetente em razão da matéria, para conhecer do mérito da causa, determinando a absolvição da Ré da instância, nos termos dos arts. 96º, alínea a), 278º, nº 1, alínea a), 576º, nº 2 e 577º, alínea a) do CPC, ex vi art. 1º do CPTA.
Suscitada oficiosamente a resolução do conflito pelo TAF de Leiria, foi o processo remetido ao Tribunal dos Conflitos.

Neste Tribunal dos Conflitos as partes, foram notificadas para efeitos do disposto no nº 3 do art. 11º da Lei nº 91/2019, tendo a Ré vindo dizer que devia ser declarada a competência material do TAF de Leiria para conhecer da acção.
A Exma. Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de dever ser atribuída a competência material para apreciar a presente acção aos tribunais judiciais.

2. Os Factos
Os factos relevantes para a decisão são os constantes do relatório.

3. O Direito
A questão a decidir nos autos é o conflito de jurisdição negativo entre o Juízo Local Cível de Ourém [face ao decidido pelo TRE] e o TAF de Leiria.

Vejamos.
O âmbito da jurisdição dos tribunais judiciais é constitucionalmente definida por exclusão, sendo-lhe atribuída em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais (artigo 211º, n.º 1, da CRP).
Por seu turno, a jurisdição dos tribunais administrativos e fiscais é genericamente definida pelo n.º 3 do artigo 212.º da C.R.P., em que se estabelece que «compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais».
A competência dos tribunais administrativos e fiscais é concretizada no artigo 4.º do ETAF, com delimitação do “âmbito da jurisdição” mediante uma enunciação positiva (n.ºs 1 e 2) e negativa (n.ºs 3 e 4). Deste preceito importa reter o disposto na alínea e) do nº 4 que excluí do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal os litígios «emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respetiva cobrança coerciva» (redacção introduzida pela Lei n º 114/2019, de 12.09).
Na Exposição de Motivos que acompanhou a Proposta de Lei nº 167/XIII, que deu origem à referida Lei nº 114/2019, consta o seguinte:
«A necessidade de clarificar determinados regimes, que originam inusitadas dificuldades interpretativas e conflitos de competência, aumentando a entropia e a morosidade, determinaram as alterações introduzidas no âmbito da jurisdição. Esclarece-se que fica excluída da jurisdição a competência para a apreciação de litígios decorrentes da prestação e fornecimento de serviços públicos essenciais. Da Lei dos Serviços Públicos (Lei n.º 23/96, de 26 de julho) resulta claramente que a matéria atinente à prestação e fornecimento dos serviços públicos aí elencados constitui uma relação de consumo típica, não se justificando que fossem submetidos à jurisdição administrativa e tributária; concomitantemente, fica agora clara a competência dos tribunais judiciais para a apreciação destes litígios de consumo.» (disponível em DetalheIniciativa, parlamento.pt).
A ré A... é uma sociedade comercial concessionária da exploração do serviço público de abastecimento de água, para consumo humano, do Município de Ourém.
A Lei nº 23/96, de 26 de Julho, consagra as regras a que deve obedecer a prestação de serviços públicos essenciais em ordem à protecção do utente. De acordo com o artigo 1º, nº 2, alínea a) da referida Lei, de entre os serviços públicos abrangidos encontra-se o serviço de fornecimento de água.
Tem sido reafirmado por este Tribunal, e constitui entendimento jurisprudencial e doutrinário pacífico, que a competência material do tribunal se afere em função do modo como o autor configura a acção e que a mesma se fixa no momento em que a mesma é proposta.
Como se afirmou no Ac. deste Tribunal de 01.10.2015, Proc. 08/14 “A competência é questão que se resolve de acordo com os termos da pretensão do Autor, aí compreendidos os respectivos fundamentos e a identidade das partes, não importando averiguar quais deviam ser os termos dessa pretensão, considerando a realidade fáctica efectivamente existente ou o correcto entendimento do regime jurídico aplicável. O Tribunal dos Conflitos tem reafirmado constantemente que o que releva, para o efeito do estabelecimento da competência, é o modo como o Autor estrutura a causa e exprime a sua pretensão em juízo”.
O litígio em apreciação tem por base uma relação de consumo referente à prestação de um serviço público essencial – o fornecimento de água para consumo humano, sendo certo que a causa de pedir e os pedidos têm como fundamento a omissão da celebração de um contrato de direito privado, para fornecimento de água.
Assim, tal como este Tribunal dos Conflitos já decidiu no acórdão de 15.12.2021, Conflito nº 24/21 «sem dúvida que no presente caso estamos perante um litígio “emergente das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais” e, portando excluído do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal [cfr. o acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 05.11.2020, Proc. nº 43364/19.7YIPRT.E1)» [no mesmo sentido se tendo pronunciado o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 15.05.2018, Proc. nº 63246/17.4YIPRT.P1 (e jurisprudência nele citado)].
Pelo exposto, e atento o disposto no art. 4º, nº 4, al. e), do ETAF, acordam em julgar competentes para apreciar a presente acção os Tribunais Judiciais - Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, Juízo Local Cível de Ourém.
Sem custas.

Lisboa, 15 de Novembro de 2023. – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa (relatora) – Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza.