Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:025/09
Data do Acordão:01/20/2010
Tribunal:CONFLITOS
Relator:GARCIA CALEJO
Descritores:RELAÇÃO JURÍDICO-ADMINISTRATIVA
ÂMBITO DA JURISDIÇÃO ADMINISTRATIVA
CONCESSÃO SCUT
CONCESSIONÁRIA
DANO
INDEMNIZAÇÃO
RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
Sumário:
Nº Convencional:JSTA00066222
Nº do Documento:SAC20100120025
Data de Entrada:10/15/2009
Recorrente:A... E B... NO CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO ENTRE TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VIANA DO CASTELO E OS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS E FISCAIS
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC PRE CONFLITO.
Objecto:AC RG DE 2009/07/02.
Decisão:NEGA PROVIMENTO.
Área Temática 1:DIR ADM CONT - RESPONSABILIDADE EXTRA.
Área Temática 2:DIR JUDIC - ORG COMP TRIB.
Legislação Nacional:CPC96 ART684 N3 ART690 N1 ART66.
LOFTJ99 ART18.
CONST76 ART211 N1 ART212 N3.
ETAF02 ART1 N1 ART4 N1.
L 67/2007 DE 2007/12/31 ART1 N5.
Jurisprudência Nacional:AC STA PROC423/08 DE 2008/11/13.; AC STJ PROC08B845 DE 2008/04/10.
Referência a Doutrina:ALBERTO DOS REIS COMENTÁRIO AO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL VI PAG110.
MANUEL DE ANDRADE NOÇÕES ELEMENTARES DE PROCESSO CIVIL 1976 PAG94.
AROSO DE ALMEIDA NOVO REGIME DO PROCESSO NOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS 2005 PAG57.
GOMES CANOTILHO E OUTRO CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA ANOTADA 3ED PAG815.
FREITAS DO AMARAL LIÇÕES DE DIREITO ADMINISTRATIVO 1989 VIII PAG439-440.
FERNANDES CADILHA REGIME DA RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL DO ESTADO E DEMAIS ENTIDADES PÚBLICAS PAG48-49.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam no Tribunal de Conflitos:
I – Relatório:
1-1- No Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo, A… e B…, residentes no Lugar da
Costa, freguesia de Perre, Viana do Castelo, propõem a presente acção com processo ordinário contra C… S.A., com sede na Rua …, …, … Aveleda, Vila do Conde, pedindo a condenação da R.:
a) A pagar-lhes a indemnização de 50.000 € a título de danos morais, acrescida de juros legais contados desde a citação até efectivo pagamento;
b) A pagar-lhes a quantia de 5.500 € a título de danos materiais;
e, caso assim se não entenda:
A proceder, a expensas suas, à substituição da toda a caixilharia da sua casa, nomeadamente portas e janelas, por outras com vidro duplos.
Fundamentam este pedido, em síntese, dizendo que por despacho do Secretário de Estado das Obras Públicas de 18-8-2003, publicado pelo DR n° 220, II série de 23-9-2003, foi declarada a utilidade pública da expropriação de uma parcela de terreno com a área de 992 m2 a desanexar do prédio de que são proprietários, com vista à construção da A 28/ICI – Viana do Castelo / Caminha, sendo que essa parcela se situa junto à sua casa de habitação, tendo feito parte do logradouro do seu prédio urbano. A via rápida abriu ao trânsito a 5-11-2005 e partir daí o trânsito que se processa aí produz vibrações, trepidações, estremecimentos, emissão de fumos e ruídos intensos que perturbam a sua saúde e impedem o seu repouso, o sono, o sossego e de sua família, constituindo isso a violação dos direitos de personalidade tutelados pelo art. 70º do C.Civil. Para minorar os efeitos decorrentes da ofensa dos ditos direitos, necessitam de fazer obras de isolamento sonoro na sua casa de habitação, dotando-a de janelas e portas com vidros duplos, no que terão de despender a quantia de 5.500 €.
A R. contestou invocando, para além do mais, a excepção da incompetência absoluta do tribunal, sustentando ser de atribuir a competência para conhecer do pleito, aos tribunais administrativos.
Na sua resposta os AA. sustentaram a improcedência da excepção.
1-2- No despacho saneador o M° Juiz declarou improcedente a excepção invocada pela R., considerando competentes em razão da matéria para conhecer da acção, os tribunais comuns.
1-3- Não se conformando com esta decisão, dela recorreu a R. para o Tribunal da Relação de Guimarães, tendo-se aí, por acórdão de 2-7-2009, julgado procedente o recurso, revogando-se a decisão recorrida considerando-se procedente a invocada excepção de incompetência do tribunal, absolvendo-se, nos termos dos arts. 101º, 102º, 105º nº 1, 493º nº 2, 494º al. a) 288º nº 1 al. a) do C.P.Civil, a R. da instância.
1-4- Irresignados agora com este acórdão, dele recorreram os AA. para este Tribunal de Conflitos, recurso que foi admitido.
Os recorrentes alegaram, tendo das suas alegações retirado as seguintes conclusões:
1ª- A R. recorrente é uma sociedade anónima, pessoa colectiva de direito privado, sujeita à jurisdição dos tribunais judiciais e não administrativos, não sendo aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado, nem se enquadrando a situação no disposto na alínea i) do nº 1 do art. 4º do ETAF.
2ª- Ainda que se entenda que ao caso é aplicável o nº 5 do art. 1º do Regime de Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, tal não significa, só por isso, que o tribunal competente seja o administrativo.
3ª- “Os tribunais administrativos são incompetentes em razão da matéria para o conhecimento de uma acção de indemnização com vista a efectivação da responsabilidade civil extracontratual de uma sociedade anónima de capitais maioritariamente públicos, pessoa colectiva de direito privado, sendo competentes os tribunais judiciais (artigo 211º n° 1 da CRP, 18º da LOTJ e 66º do Cód. Proc. Civil)” – Ac. do STA de 13-11-2008, Processo 0423/08, in www.dgsi.pt.
4ª- O douto acórdão recorrido deve ser revogado, substituindo-se por outro que declare que o Tribunal competente para apreciar e decidir a questão dos autos, é o tribunal comum, ou seja, o Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo.
5ª A douta decisão recorrida viola por errada interpretação e aplicação, o disposto no art. 18º da LOTJ, 66º do CPC, art. 1º n° 5 da Lei 67/2007 de 31/12.
1-5- A parte contrária contra-alegou, pronunciando-se pela improcedência do recurso.
1-6- O M.P. junto do STA deu parecer no sentido de o recurso não merecer provimento, sustentando, em síntese:
Nos termos do art. 212° da CRP compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais. Segundo o entendimento de Vieira de Andrade (in A Justiça Administrativa, 9ª edição pág. 55), à falta de clarificação legislativa deve entender-se como “relação jurídica de direito administrativo”, todas as relações, com exclusão das relações de direito privado em que intervém a Administração ou ainda a relação em que um dos sujeitos, pelo menos, é uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido. A actual definição legal, na esteira da lei fundamental, deixou de estribar a delimitação da jurisdição administrativa na distinção entre actos de gestão privada e de gestão pública, deslocando o pólo aglutinador para o conceito de relação jurídica administrativa, em que avulta a realização de um interesse público levado a cabo através do exercício do poder público e, portanto, de autoridade, seja por uma entidade pública, seja por uma entidade privada, em que esta actua no uso de prerrogativas próprias daquele poder ou no âmbito de uma actividade regulada por normas de direito administrativo e fiscal. O art. 4° do ETAF delimita o âmbito da jurisdição administrativa, interessando-nos especialmente o disposto na alínea i) que estabelece a competência dos tribunais administrativos para conhecer a «responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público». A recorrida é uma pessoa colectiva de direito privado, mas isto não afasta a aplicação ao caso do disposto no art. 4° n° 1 al. j) do ETAF. Isto porque do contrato de concessão de obras públicas celebrado com o Estado, resulta que as acções da empresa são reguladas “por disposições e princípios de direito administrativo”, tendo a natureza do contrato celebrado a índole de contrato administrativo. E se alguma dúvida antes existisse a questão agora está devidamente esclarecida, face ao disposto no n° 5 do art. 1° da Lei 60/07 de 31/12. Esta norma veio estender o regime de responsabilidade administrativa, às pessoas colectivas de direito privado, dando seguimento ao disposto no art. 4º n° 1 do ETAF.
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir:
II – Fundamentação:
2-1- Como o âmbito objectivo dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelo recorrente (arts. 690° n° 1 e 684° nº 3 do C.P.Civil), conclui-se que a única questão que haverá a conhecer e decidir, será a de saber que tribunais serão competente para conhecer do pleito, se os tribunais comuns, como pretendem os recorrentes, se os tribunais administrativos, como defende a R. (recorrida) e decidiu o douto acórdão recorrido.
Como nos parece pacífico, para determinação da competência em razão da matéria, é necessário atender-se ao pedido e especialmente à causa de pedir formulados pelo A., pois é desta forma que se pode caracterizar o conteúdo da pretensão do demandante, ou nas doutas palavras de Alberto Reis, é assim que se caracteriza o “modo de ser do processo” (in Com. 1°, 110). Quer dizer que, para se fixar a competência dos tribunais em razão da matéria, deve atentar-se à relação jurídica material em debate e ao pedido dela emergente, segundo a versão apresentada em juízo pelo demandante.
A competência em razão da matéria, “deriva da competência das diversas espécies de tribunais dispostos horizontalmente, isto é, no mesmo plano, não havendo entre elas uma relação de supra-ordenação e subordinação”, sendo que “na definição desta competência a lei atende à matéria da causa, quer dizer, ao seu objecto encarado sob o ponto de vista qualitativo – o da natureza da relação substancial pleiteada. Trata-se pois de uma competência ratione materiae. A instituição de diversas espécies de tribunais e da demarcação da respectiva competência obedece a um princípio de especialização, com as vantagens que lhe são inerentes”1 Manuel Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1976, pág. 94.
O art. 18° da LOFTJ (Lei da Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, Lei 3/99 de 13/1, aplicável ao caso vertente) estabelece que as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional são da competência dos tribunais judiciais. É que os tribunais judiciais, constituindo os tribunais regra dentro da organização judiciária, gozam de competência não descriminada, gozando os demais, competência em relação às matérias que lhes são especialmente cometidas. A competência dos tribunais judiciais determina-se, pois, por um critério residual, sendo-lhes atribuídas todas as matérias que não estiverem conferidas aos tribunais de competência especializada. Em sentido idêntico estipula o art. 66° do C.P.Civil que “são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”. Na mesma direcção aponta o art. 211° n° 1 da Constituição da República Portuguesa ao estabelecer que “os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais”.
Por outro lado e no que toca à competência dos tribunais administrativos, estabelece o art. 212° n° 3 da Constituição que “compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”. Em sentido idêntico estabelece o art. 1° n° 1 do ETAF (Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais - Lei 13/2002 de 19/2 – com as alterações pela Lei 4-A/2003 de 19/2 e 107-D/2003 de 31/12) que “os tribunais administrativos e fiscais são os órgãos de soberania com competência administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações administrativas e fiscais”.
Quer dizer, face aos ditos arts. 1° n° 1 do ETAF e ao 212° n° 3 da Constituição, a competência dos tribunais administrativos e fiscais, dependerá da ponderação sobre se está, ou não, perante pleitos derivados de relações jurídicas administrativas (e fiscais), sendo que só no primeiro caso tal competência se verificará.
E o que constituirá uma relação jurídica administrativa?
Como refere Mário Aroso de Almeida (in Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos, 2005, pág. 57) “as relações jurídico-administrativas não devem ser definidas segundo critério estatutário, reportado às entidades públicas, mas segundo um critério teológico, reportado ao escopo subjacente às normas aplicáveis”. Ou seja, segundo cremos, serão relações jurídicas administrativas as derivadas de actuações materialmente administrativas, praticadas por órgãos da Administração Pública ou equiparados. Por sua vez os Profs. Gomes Canotilho e Vital Moreira (in Constituição Anotada, 3ª edição, 815) referem a respeito de tais relações que “esta qualificação transporta duas dimensões caracterizadoras: 1- as acções e recursos que incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos, um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão de poder público (especialmente) da administração; 2 – as relações controvertidas são reguladas sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo ou fiscal. Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza privada ou jurídico civil. Em termos positivos, um litígio emergente da relações jurídico administrativas e fiscais será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal”. No acórdão do STA de 3-11-04 (in www.dgsi.pt.jsta.nsf), invocando-se o Prof. Freitas do Amaral (Lições de Direito Administrativo, edição 1989, Vol. III, págs. 439, 440) definiu-se a relação jurídica administrativa como “aquela que confere poderes de autoridade ou impõe restrições de interesse público à administração perante particulares, ou aquela que atribui direitos ou impõe deveres públicos aos particulares perante a administração”.
Concretizando o âmbito de jurisdição dos tribunais administrativos, exemplificativamente2 Esta circunstância é denunciada pelo emprego na norma, da expressão «nomeadamente»
estabelece o art. 4º nº 1 do ETAF que “compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto...”, procedendo depois à enunciação de diversas situações, dentre as quais salientaremos a alínea i) onde se refere “responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público”. Isto é, o art. 4º n° 1 al. i) do ETAF atribuiu competência aos tribunais administrativos e fiscais para apreciar (e decidir) a responsabilidade civil extracontratual3 No presente caso não se levanta qualquer dúvida que os AA., e as instâncias assim o consideraram, que os AA. demandam e pedem a condenação da R. com base em responsabilidade extracontratual desta. Dado que esta situação é absolutamente pacífica, abstemo-nos de fazer mais considerações sobre o tema. dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público.
Significa isto que a competência dos tribunais administrativos e fiscais abrangerá as questões atinentes à responsabilidade civil extracontratual de sujeitos privados desde que a eles deva ser aplicado o regime próprio da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público. Considerou-se aqui, implicitamente, ser adequado entender as relações firmadas, como relações jurídicas administrativas.
Existiu, segundo cremos, por banda do legislador, o propósito de estender a competência dos tribunais administrativos e fiscais a áreas de jurisdição que antes não eram suas4 Deixou de vigorar o art. 4º al. f), norma restritiva da competência dos tribunais administrativos inserta no anterior ETAF (Dec-Lei 124/84 de 27/4), segundo a qual estavam excluídos da jurisdição administrativa e fiscal os recursos e acções que tinham por objecto questões de direito privado, ainda que qualquer das partes fosse pessoa de direito público.. O regime introduzido atribuiu competência aos tribunais administrativos e fiscais a todas as questões de responsabilidade civil envolvendo pessoas colectivas de direito público (vide alíneas g) e h) do referido art. 4° n° 1), independentemente de se saber se as mesmas eram regidas por normas de direito público ou por normas de direito privado5 Neste ponto existiu uma evidente intenção de alargar a jurisdição dos tribunais administrativos. Vide nota 4..,
indo ainda mais além ao aplicar essa competência à responsabilidade civil extracontratual dos próprios privados desde que lhes deva ser aplicado o regime próprio da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público.
Face a estas circunstâncias parece-nos que, para efeitos de competência dos tribunais administrativos e fiscais, deixa de ter relevância a distinção, que antes do actual ETAF entrar em vigor, se fazia entre actividade de gestão privada e a de direito público, atribuindo-se a competência a esses tribunais apenas nesta hipótese. A este propósito escreveu-se adequadamente no acórdão do STJ de 10-4-2008 (in www.dgsi.pt/jstj.nsf)6 Número Convencional do Processo 08B845 que tal distinção “não releva para determinação da competência jurisdicional, certo que a lei seguiu critério objectivo da natureza da entidade demandada, ou seja, sempre que o litígio envolva uma entidade pública7Ou, acrescentaremos nós, entidades privadas desde que a estas deva ser aplicado o regime próprio da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público., em quadro de imputação à mesma de facto gerador de um dano, o conhecimento do litígio compete aos tribunais da ordem administrativa, independentemente do direito substantivo aplicável”.
A competência do foro administrativo em relação à responsabilidade civil extracontratual dos privados, como se viu, está dependente de a estes dever ser aplicado o regime próprio da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público.
Estabelece o art. 1° n° 5 da Lei 67/2007 de 31/12 (diploma que aprovou o regime de responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas) que “as disposições que, na presente lei, regulam a responsabilidade das pessoas colectivas de direito público, bem como dos titulares dos seus órgãos, funcionários e agentes, por danos decorrentes do exercício da função administrativa, são também aplicáveis à responsabilidade civil de pessoas colectivas de direito privado e respectivos trabalhadores, titulares de órgãos sociais, representantes legais ou auxiliares, por acções ou omissões que adoptem no exercício de prerrogativas de poder público ou que sejam regulados por disposições ou princípios de direito administrativo”.
Quer dizer esta disposição, em relação às entidades privadas, faz aplicar-lhes o regime de responsabilidade civil extracontratual do Estado, no que toca a acções ou omissões levadas a cabo «no exercício de prerrogativas de poder público» ou que sejam «regulados por disposições ou princípios de direito administrativo». Ou seja, desde que as pessoas colectivas de direito privado (e respectivos trabalhadores, titulares de órgãos sociais, representantes legais ou auxiliares) actuem em moldes de direito público, desenvolvam uma actividade administrativa, deve aplicar-se às suas acções e omissões o regime de responsabilidade civil extracontratual do Estado.
Como diz Carlos Alberto Cadilha “...tal como de resto sucede em relação a órgãos e serviços que integram a Administração Pública, o regime da responsabilidade administrativa é apenas aplicado no que se refere às acções ou omissões em que essas entidades tenham intervindo investidas de poderes de autoridade ou segundo um regime de direito administrativo, ficando excluídos os actos de gestão privada e, assim, todas as situações em que tenham agido no âmbito do seu estrito estatuto de pessoas colectivas privadas”.8In Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, pág. 49.
Concretiza este art. 1º n° 5 da Lei 67/2007, na prática, o princípio delineado no art. 4º n° 1 al. i) do ETAF que, recorde-se, atribuiu competência aos tribunais administrativos e fiscais para apreciar (e decidir) a responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público9 Carlos Alberto Cadilha na obra indicada, pág. 48, refere que o dito art. 1° nº 5 «se correlaciona directamente» com art. 4º n° 1 al. i) do ETAF.. Indica, pois, aquela disposição as situações em que as entidades privadas poderão ser submetidas a um regime de responsabilidade administrativa e, consequentemente, poderão ser demandadas perante os tribunais administrativos em acções de responsabilidade civil, nos termos do referido art. 4° n° 1 al. i) do ETAF.
Como se viu, nos termos do art. 1° n° 5 da Lei 67/2007, são dois os factores determinativos do conceito de actividade administrativa. O primeiro refere-se ao exercício de prerrogativas de poder público, o que equivale ao desempenho de tarefas públicas para cuja realização sejam outorgados poderes de autoridade. O segundo respeita a actividades que sejam reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo, o que significa que os respectivos exercícios deverão ser reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo.
Segundo o acórdão recorrido é precisamente neste factor indicativo da actividade administrativa, que a acção da R., questionada no presente processo, deve ser integrada. As entidades privadas concessionárias que são chamadas a colaborar com a Administração na execução de tarefas administrativas através de um contrato administrativo (que poderá ser de concessão de obras públicas ou de serviço público), devem ter a sua actividade regulada e sujeita a disposições e princípios de direito administrativo.
Parece-nos ser certa esta posição. Com efeito, como se vê da Resolução do Conselho de Ministros n° 139/2001 de 31/8, publicada na I Série B do Diário da República, foi celebrado entre o Estado Português e a R., C…, o contrato de concessão de lanços de auto-estrada, designada por concessão SCUT do Norte Litoral. Nesse contrato ficou estabelecido, no que toca ao objecto e tipo de concessão, que esta tem por objecto a concepção, projecto, construção, financiamento, conservação, exploração em regime de portagem SCUT, os lanços de auto-estrada IP 9, Nogueira – Estorãos, IP 9 Estorãos – Ponte de Lima e IC 1 Viana do Castelo (IP 9) Caminha, assim como, para efeitos de projecto, aumento do número de vias, conservação, exploração em regime de portagem SCUT, os lanços de auto-estrada IP 9 Viana do Castelo (IC 1) – Nogueira e IC 1 Porto Viana do Castelo (IP9) e o complemento do nó Modivas. Na cláusula 6 do contrato ficou estabelecido que a concessão é de obra pública e é estabelecida em regime de exclusivo relativamente à auto-estrada que integra o seu objecto. Na cláusula 7.2 estabeleceu-se que a concessionária não pode, em qualquer circunstância, recusar o fornecimento do serviço público concessionado a qualquer pessoa ou entidade, nem discriminar ou estabelecer diferenças de tratamento entre utentes.
Por sua vez, o Dec-Lei 234/2001 de 28/8 que aprovou as bases da concepção, projecto, construção, financiamento, conservação e exploração dos lanços de portagem acima indicados, na sua Base III e sobre a natureza da concessão, estabeleceu que a concessão é de obra pública.
Destas normas é possível inferir-se que a actividade a desenvolver pela R. no âmbito da concessão em causa, desenvolve-se num quadro de índole pública. A entidade privada concessionária da auto-estrada, é notoriamente chamada a colaborar com a Administração na execução de uma tarefa administrativa de gestão pública10 Aí se deve inscrever a tarefa de realização de vias de comunicação em Portugal. Vide ainda a este propósito o art. 14° nºs 1 e 2 do Dec-Lei 558/99 de 17/12 na redacção introduzida pelo Dec-Lei 300/2007 de 23/8 (que republicou em anexo aquele Dec-Lei 558/99). através de um contrato administrativo, pelo que as acções e omissões da R. concessionária se devem integrar e ser reguladas por disposições e princípios de direito administrativo.
Assim sendo como, no caso vertente, os AA. pretendem ser ressarcidos com vista a receberem uma indemnização, em razão de uma invocada responsabilidade extracontratual da R. C… Norte, em consequência de uma actividade por ela desenvolvida na qualidade de concessionária da auto-estrada em questão, lícito é concluir que a sua eventual responsabilização, por actos e omissões decorrentes dessa sua actividade, se insere no âmbito de aplicação do art. 1° n° 5 da Lei 67/2007 e, consequentemente, serão os tribunais administrativos os competentes para conhecer do pleito (art. 4° n° 1 al. i) do ETAF).
Quer dizer que o douto acórdão recorrido merece confirmação.
2-2- Para terminar diremos que o acórdão do STA de 13-11-2008 (Processo 0423/08, in www.dgsi.pt.) invocado pelos recorrentes para sustentar a sua tese, baseou-se no regime do anterior ETAF e, além disso, não atendeu (por não ser aplicável ao caso) ao regime jurídico introduzido pela Lei 67/2007 de 31/12 (regime de responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas). Isto é, o acórdão foi proferido com base num quadro jurídico anterior e diverso do utilizado no douto aresto recorrido, razão por que não será possível transpor para a situação em análise, os fundamentos do aresto.
III – Decisão:
Por tudo o exposto, nega-se provimento ao recurso, confirmando-se o douto acórdão recorrido.
Custas pelos recorrentes.
Lisboa, 20 de Janeiro de 2010. - Ernesto António Garcia Calejo (relator) - Jorge Manuel Lopes de Sousa - Henrique Manuel da Cruz Serra Baptista - Luís Pais Borges - António José Cortez Cardoso de Albuquerque - Alberto Acácio de Sá Costa Reis.