Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:026/19
Data do Acordão:06/25/2020
Tribunal:CONFLITOS
Relator:HENRIQUE ARAÚJO
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P26095
Nº do Documento:SAC20200625026
Data de Entrada:05/21/2019
Recorrente:ASSOCIAÇÃO DISTRITAL DE JUDO DE ………, NO CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO DE CÍRCULO DE LISBOA UNIDADE ORGÂNICA 3 E O TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LISBOA - JUÍZO LOCAL CÍVEL DE LISBOA — JUIZ 4
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Conflito nº: 26/19
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ACORDAM NO TRIBUNAL DE CONFLITOS

I. RELATÓRIO

A Associação Distrital de Judo de ……… (ADJ…), demandante no processo comum n.º 16510/18.0T8LSB.L1, requereu a resolução de conflito negativo de competência com fundamento no seguinte:
- A requerente intentou no Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa processo cautelar contra a Federação Portuguesa de Judo, que aí correu termos sob o n.º 316/18.0BELSB;
- Nesse procedimento, pedia que:
a) fosse decretada a suspensão provisória da deliberação da Direcção da Federação Portuguesa de Judo, de 11 de Janeiro de 2018, tomada em reunião realizada nesse dia e exarada na acta aqui junta como documento n.º 1, que determinou a suspensão da Direcção da ADJ… de toda a sua actividade até ao dia 24 de Março de 2018, com fundamento no vício de nulidade por violação do disposto nos artigos 55º, n.º 1, e 8º, n.º 1, alíneas g) e l) dos Estatutos da Federação Portuguesa de Judo, e nos artigos 1º, 7º, 33º , n.º 1, do Regulamento Disciplinar da Federação Portuguesa de Judo;
b) se intimasse a Federação Portuguesa de Judo, nomeadamente a Assembleia Geral, na pessoa do seu Presidente ou da Mesa da Assembleia, para se abster de apreciar e deliberar o ponto dois da ordem de trabalhos na Assembleia Geral Extraordinária da Federação a realizar no dia 24 de Março de 2018, que previa a “Deliberação sobre a exclusão da ADJ…, associada ordinária da FPJ, por sistemática grave violação dos deveres a que estava obrigada nos termos do artigo 10º dos Estatutos da FPJ, com fundamento no vício de nulidade por violação do disposto nos artigos 55º, n.º 1, e 8º, n.º 1, alíneas g) e h) dos Estatutos da FPJ, e nos artigos 1º, 7º, 18º e 33º, n.º 1, do Regulamento Disciplinar da FPJ (A ADJ… apresentou articulado superveniente em que alterou a alínea b) do pedido e a correspondente causa de pedir, impetrando que a referida alínea b) passasse a ter o seguinte teor:
b) “Suspender a execução da deliberação da Assembleia Extraordinária da Federação Portuguesa de Judo, realizada no dia 24 de Março de 2018, nomeadamente o ponto dois da ordem de trabalhos que determinou: ‘a exclusão da associada ordinária da FPJ, Associação Distrital de Judo de ………, por sistemática e grave violação dos deveres a que está obrigada nos termos do artigo 10º dos Estatutos da FPJ, com fundamento no vício de nulidade por violação do disposto nos artigos 55º, n.º 1, e 8º, n.º 1, alíneas g) e i) dos Estatutos da Federação Portuguesa de Judo, e bem assim, dos artigos 1º, 7º, 18º e 33º, n.º 1, do Regulamento Disciplinar da Federação Portuguesa de Judo”.
Este pedido de alteração nunca foi, no entanto, apreciado pelo TACS ou pelo Juízo Local Cível de Lisboa.);
c) se intimasse a FPJ a proceder ao pagamento imediato, e reposição das mensalidades em falta até à prolação da sentença, do apoio financeiro mensal de 511,45 € para o desenvolvimento da sua actividade, porquanto o mesmo se revela indispensável à sobrevivência económica da ADJ…, e nas ajudas de custo de transporte, alimentação e alojamento aos seus atletas em eventos desportivos;
d) se permitisse à requerente a organização e participação dos seus clubes e atletas em eventos desportivos federados, a fim de acautelar a subsistência da sua associada ADJ… até à decisão final da acção administrativa principal de declaração de nulidade, a interpor no prazo legal.
- O Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, em decisão datada de 13.04.2018, julgou-se incompetente em razão da matéria.
- Remetido o processo cautelar ao Tribunal da Comarca de Lisboa, foi aí proferida decisão em que se declarou igualmente incompetente, absolvendo a requerida da instância.
- Dessa decisão recorreu a requerente ADJ… para a Relação de Lisboa, que viria a confirmar o despacho proferido na 1ª instância.
- Em 13.04.2018, ainda antes de proferida a decisão do Tribunal Administrativo de Círculo, a requerente deu entrada da acção principal, através do recurso n.º 32/2018 interposto junto do Tribunal Arbitral de Desporto (TAD);
- Todavia, o TAD, por decisão arbitral de 23.01.2019, transitada em julgado no dia 07.02.2019, também se declarou incompetente em razão da matéria.

A FPJ respondeu ao pedido de resolução do conflito, dizendo, em síntese:
- Não se verifica qualquer conflito negativo de competência, na medida em que não existe conflito de jurisdição quando estejam em causa tribunais estaduais, de um lado, e tribunais arbitrais, do outro;
- Também não se verifica qualquer conflito na medida em que não existia identidade da causa de pedir e dos pedidos submetidos à apreciação das instâncias no alegado conflito;
- Caso assim não seja entendido, sempre deve a competência ser atribuída aos tribunais judiciais.

O Ministério Público emitiu parecer, concluindo nos seguintes termos:
“Nos termos expostos, deve, em nosso parecer, o acórdão recorrido – Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa (7ª Secção), de 5/2/2019 – ser confirmado no que toca à competência da jurisdição administrativa para o conhecimento dos pedidos cautelares formulados, ainda que, no caso, a competência específica possa caber ao Tribunal Arbitral do Desporto por via da arbitragem necessária imposta pelo art. 4º nºs 1 e 2 da Lei 74/2013 (Lei do TAD)”.
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II. FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

Os factos que interessam à decisão são os que constam do antecedente relatório.

O DIREITO

Como vimos, na sua resposta, a Federação Portuguesa de Judo começou por recusar a existência de qualquer conflito negativo de jurisdição, alimentando essa invocação com a circunstância de a declaração de incompetência de uma das instâncias – a última a pronunciar-se – ter sido emitida por um tribunal não estadual, o tribunal arbitral do desporto.
Não nos parece que seja assim.
Há conflito de jurisdição quando duas ou mais autoridades, pertencentes a diversas actividades do Estado, ou dois ou mais tribunais, integrados em ordens jurisdicionais diferentes, se arrogam ou declinam o poder de conhecer da mesma questão: o conflito diz-se positivo no primeiro caso e negativo no segundo – artigo 109º, n.º 1, do CPC.
É constante a jurisprudência deste Tribunal de Conflitos, bem como do STA e do STJ, no sentido de que a competência em razão da matéria é fixada em função dos termos em que a acção é proposta, aferindo-se, concretamente, face ao modo como vem configurada, na petição inicial, a relação jurídica controvertida. Relevam, para esse efeito, a identidade das partes, a pretensão deduzida e os seus fundamentos (Cfr., entre outros, os acórdãos do Tribunal de Conflitos de 20.09.2012 e de 19.06.2014, nos processos nºs 2/12 e 9/14, respectivamente, ambos em www.dgsi.pt.).
Ora, a prolação das decisões do TACL e do Juízo Cível de Lisboa (esta última confirmada pelo Tribunal da Relação de Lisboa), em que vem manifestada a incompetência material dessas instâncias, tiveram como objecto o procedimento cautelar instaurado pela ADJ… contra a FPJ, com os pedidos acima transcritos. Já a decisão do TAD foi proferida no âmbito da acção arbitral instaurada pela ADJ… contra a FPJ, em que os pedidos deduzidos não coincidem, obviamente, com aqueles, o mesmo se dizendo das respectivas causas de pedir.
Isto para concluir que o conflito negativo de jurisdição se reporta ao procedimento cautelar e que, quanto a este, houve dois tribunais, integrados em diferentes ordens jurisdicionais (a administrativa e a judicial), que declinaram o poder de conhecer da mesma questão.
Precisado este ponto, passemos à resolução do conflito.

A decisão do TACL assenta, basicamente, na seguinte fundamentação:
“Em causa nos autos estão essencialmente i) a decisão da suspensão da requerente e ii) a deliberação da Assembleia Geral da entidade requerida sobre a decisão disciplinar de expulsão da requerente.
Assim, para aquilatar a competência deste tribunal para conhecer dos pedidos da requerente importa aferir a natureza dos actos suspendendos, enquadrando-os no exercício de poderes de autoridade da entidade requerida (seja de índole disciplinar ou outra associada ao seu estatuto de utilidade pública desportiva), ou apartando-os dessa mesma natureza administrativa. Sendo certo que, mesmo que cheguemos à conclusão de que, segundo a requerente, estamos perante atos praticados no uso de competências disciplinares, cumprirá indagar da exclusão da competência dos tribunais administrativos por opção legislativa especial. Vamos por partes.
Como vimos, e considerando os termos em que a requerente parece ter pretendido configurar o requerimento cautelar, estará em causa i) a decisão ‘disciplinar’ de suspensão da requerente e ii) a deliberação da Assembleia Geral da entidade requerida sobre a decisão ‘disciplinar’ de expulsão da requerente. Ou seja, apesar de a própria requerente anuir e sustentar que o regulamento disciplinar da entidade requerida não prevê a expulsão (sendo esse, de resto, o punctum saliens do seu argumentário quanto à invalidade da deliberação suspendenda), é, pois, na tónica de uma suposta decisão disciplinar que a requerente centra a sua causa de pedir.
Cotejando as pertinentes disposições normativas do Decreto-Lei n.º 248-B/2008, de 31 de Dezembro, constatamos que ‘as federações desportivas devem dispor de regulamentos disciplinares com vista a sancionar a violação das regras de jogo ou da competição, bem como as demais regras desportivas, nomeadamente as relativas à ética desportiva’ (artigo 52º, n.º 1), sendo que '[p]ara efeitos da presente lei, são consideradas normas de ética desportiva as que visam sancionar a violência, a dopagem, a corrupção o racismo e a xenofobia, bem como quaisquer outras manifestações de perversão do fenómeno desportivo' (n.º 2). Mais constatamos que as matérias que devem estar previstas no regime disciplinar prendem-se, todas elas, com as regras do jogo ou da competição, com regras desportivas ou relativas à ética desportiva (artigo 53º).
Ora, em bom rigor, nenhuma daquelas matérias se relaciona com invalidades cometidas na atuação, organização, orçamentos, contas ou deliberações de associações que façam parte de uma federação. E é isso que está em causa nas deliberações suspendendas.
Por outro lado, nos termos do artigo 43º, n.º 1, do mesmo Decreto-Lei n.º 248-B/2008, de 31 de Dezembro, ‘[a]o conselho de disciplina cabe, de acordo com a lei e com os regulamentos e sem prejuízo de outras competências atribuídas pelos estatutos e das competências da liga profissional, instaurar e arquivar procedimentos disciplinares e, colegialmente, apreciar e punir as infrações disciplinares em matéria desportiva’.
Ora, no caso dos autos, não está em causa a violação de normas em matéria desportiva, que caibam ou devam caber na alçada de um regulamento disciplinar ou na competência do conselho de disciplina da entidade requerida. De resto, em boa verdade, nem a própria requerente alega que estejam em causa tais matérias”.
Significa isto, em suma, que no caso dos autos não está em causa verdadeiramente o exercício de um poder disciplinar ancorado no estatuto de utilidade pública desportiva da entidade requerida.
(…)
E, porque assim, a competência para a apreciação deste litígio não pertence aos tribunais administrativos (cf. artigos 1º e 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais).
A própria jurisprudência do Tribunal de Conflitos confirma, de resto, que para litígios deste tipo – da apreciação da legalidade de atos do puro domínio de auto-organização privada de uma federação desportiva enquanto associação – são competentes os tribunais judiciais e não, como poderia hipoteticamente conceber-se, os tribunais administrativos.
(…)”.
Estamos, de um modo geral, em sintonia com estas apreciações.
As federações desportivas são pessoas colectivas constituídas sob a forma de associação sem fins lucrativos, englobando clubes ou sociedades desportivas, associações de âmbito territorial, ligas profissionais, se as houver, praticantes, técnicos, juízes e árbitros, e demais entidades que promovam, pratiquem ou contribuam para o desenvolvimento da respectiva modalidade.
Às federações desportivas é aplicável o regime do DL 248-B/2008 (Regime Jurídico das Federações Desportivas (RJFD).), de 31 de Dezembro, e, subsidiariamente, o regime jurídico das associações de direito privado – artigo 4º do referido DL.
De singular importância para a resolução do conflito é a norma do artigo 11º onde se estabelece que têm natureza pública os poderes das federações desportivas exercidos no âmbito da regulamentação e disciplina da respectiva modalidade.
Ora, o que foi colocado em causa com o procedimento cautelar instaurado pela ADJ… foi a decisão da Direcção da FPJ, de 11 de Janeiro de 2018, na qual se determinou a suspensão da Requerente e, bem assim, a deliberação do colégio de delegados que compõe a Assembleia Geral no sentido da exclusão da Requerente como associada ordinária da Requerida.
Qualquer um desses actos não diz respeito ao exercício dos poderes de regulamentação, organização, direcção e disciplina da Federação Portuguesa de Judo, inerentes ao estatuto de utilidade pública desportiva, poderes esses que se exteriorizam mediante a aplicação das normas técnicas e disciplinares directamente respeitantes à prática da própria competição desportiva.
Com efeito, o litígio a que se reporta o procedimento cautelar não tem a ver com a regulação da modalidade de judo em si mesma, mas sim com actos puramente privados, internos, sem qualquer manifestação de um poder público.
Como judiciosamente se afirma no acórdão da Relação do Porto, de 21.02.2019 (No processo n.º 4375/18.7T8PRT.P1, em www.dgsi.pt.), a tal “não obsta a circunstância de na génese desse acto ter estado uma deliberação da Direcção (…). Como pessoa colectiva que é (…)toma as suas decisões e formula a sua vontade para efeitos jurídicos através dos respectivos órgãos, no exercício das respectivas competências estatutárias e legais. Todavia, uma coisa é na génese do acto haver uma deliberação orgânica (como quase sempre haverá …) e outra coisa é essa deliberação e este acto estarem compreendidos no âmbito dos correspondentes poderes de regulamentação, organização, direcção e disciplina das competições (…)”.
No caso em apreço, os actos estão compreendidos, conforme já afirmado, no âmbito da vida interna da Federação Portuguesa de Judo, a qual em relação ao seu próprio funcionamento, enquanto associação, se comporta como qualquer outra associação de direito privado, escapando por isso ao âmbito da jurisdição administrativa, que é de ordem eminentemente pública (Em última análise, e por força da revogação do artigo 12º do DL 248-B/2008 pela alínea c) do artigo 4º do DL 74/2013, de 6 de Setembro, nunca caberia à jurisdição administrativa a apreciação deste tipo de litígios, mas antes ao Tribunal Arbitral do Desporto, uma vez que o artigo 4º da Lei do TAD passou a dispor, no n.º 1 do seu artigo 4º, que compete ao TAD conhecer dos litígios emergentes dos actos e omissões das federações e outras entidades desportivas e ligas profissionais, no âmbito do exercício dos correspondentes poderes de regulamentação, organização, direcção e disciplina.) – artigo 4º do ETAF.
Assim, mercê da competência genérica e residual que assiste à jurisdição comum, que é competente para todas as causas não atribuídas a outra ordem jurisdicional (Cfr. artigos 211º, n.º 1, da CRP, 64º do CPC e 40º, nº 1, da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto.), caberá aos tribunais judiciais apreciar o mérito do procedimento cautelar (Veja-se, neste sentido, o acórdão do Tribunal de Conflitos de 29.03.2011, no conflito n.º 28/10, em www.dgsi.pt.).
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III. DECISÃO

Nestes termos, decide-se o presente conflito negativo de jurisdição atribuindo-se a competência material ao Juízo Local Cível de Lisboa.
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Sem custas.
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LISBOA, 25 de Junho de 2020. – (Henrique Araújo – o relator atesta, nos termos do artigo 15º-A do DL n.º 10-A/2020, que o presente acórdão tem votos de conformidade dos Ex.ºs Juízes Conselheiros Adjuntos José Francisco Fonseca da Paz, Raúl Eduardo do Vale Raposo Borges, Maria Benedita Malaquias Pires Urbano, Maria Olinda da Silva Nunes Garcia e José Augusto Araújo Veloso)


Lisboa, 25 de Junho de 2020. - Henrique Luís de Brito Araújo (relator) - José Francisco Fonseca da Paz - Raúl Eduardo do Vale Raposo Borges - Maria Benedita Malaquias Pires Urbano - Maria Olinda da Silva Nunes Garcia - José Augusto Araújo Veloso.