Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:03/17
Data do Acordão:03/01/2023
Tribunal:CONFLITOS
Relator:ANA PAULA PORTELA
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P30667
Nº do Documento:SAC2023030103
Data de Entrada:01/19/2017
Recorrente:AA, NO CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO ENTRE A COMARCA DE BRAGA, V.N. DE FAMALICÃO, INSTÂNCIA LOCAL – SECÇÃO CÍVEL – J1 E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE BRAGA, U.O.1
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: AA intentou ação comum na Instância Local de Vila Nova de Famalicão, Comarca de Braga, contra a Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de Vila Nova de Famalicão e a Companhia de Seguros ... SA, na sequência do acidente de viação ocorrido em 5.7.2012, no concelho de Vila Nova de Famalicão com uma viatura da 1ª R., causado pela travagem brusca do seu condutor, bombeiro daquela associação, veículo em que a A., então com 79 anos de idade, era transportada em cadeira de rodas sem cinto de segurança, entre o Lar ..., ..., V. N. Famalicão [que frequentava] e uma clínica a que fora necessário deslocar-se.
Como consequência desse acidente, a A., com 79 anos de idade, sofreu danos físicos, com várias sequelas irreversíveis, perdendo a autonomia que até então tinha.

Pelo que requereu então o seu ressarcimento, pedindo o pagamento de indemnização no valor de 30.000,1€, pela 1ª e 2ª RR., esta última por contrato de seguro celebrado entre as duas, acrescida de juros de mora à taxa legal desde 5/7/2012 até efetivo e integral pagamento.

2. Por decisão de 19.04.2016, o Tribunal de Comarca de Braga, Instância Local de V. N. Famalicão, suscitou oficiosamente a questão da incompetência absoluta do Tribunal, por serem competentes os Tribunais Administrativos para apreciação da matéria em apreço, e com fundamento em que o exercício da atividade de bombeiro tem natureza pública, prosseguindo um fim de interesse público - sendo as associações humanitárias de bombeiros (Lei n.° 32/2007, de 13.08.) reconhecidas como pessoas coletivas de utilidade pública administrativa, sendo a sua atividade regulada e sujeita às disposições e princípios de direito administrativo, de acordo com o disposto nos arts. 1°, n° 1, e 4°, n° 1, al.s f), h), i), do ETAF conforme redação então vigente, e sujeitas ao regime de responsabilidade civil extracontratual (Lei n.° 67/2007, de 31.12.).

E veio a julgar procedente a exceção de incompetência absoluta em razão da matéria, absolvendo da instância as RR. em conformidade com os arts. 96°, n° 1, 97°, n° 1, 98°, 99°, n° 1, 278°, n° 1, al. a), 576°, n° 2, 577°, al. a) e 578°, todos do CPC.

3. A A. veio então requerer a remessa, embora não aderindo a essa decisão, “ao tribunal em que a ação deveria ter sido proposta” invocando o art. 99, n° 2, CPC.

4. Remetidos os autos ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, veio este Tribunal declarar a sua incompetência em razão da matéria, ao abrigo dos arts. 13° CPTA e 278°, n° 1, al. a), CPC, para conhecer a ação, porquanto a causa de pedir configurada pela A. consiste na verificação dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual para o ressarcimento dos danos sofridos, resultantes do acidente de viação sub judice. Assim, dando como provada a exceção dilatória de incompetência material do Tribunal, absolveu da instância as RR..

5. A A. veio então requerer a remessa dos autos a este Tribunal dos Conflitos, tendo em vista a resolução do conflito entre o Tribunal da Comarca de Braga Instância Local de V. N. Famalicão e o TAF de Braga, nos termos dos arts. 110º a 112º, CPC, e 13º e segs. e 135° e segs. CPTA.

6. O Exm° Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal dos Conflitos, emitiu parecer, defendendo que o presente conflito de jurisdição deve ser resolvido com a atribuição da competência ao TAF de Braga.

7. Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.


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Os Factos

Os factos que relevam para a decisão deste conflito são os que constam do antecedente relatório.


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O DIREITO

Os tribunais judiciais são competentes para julgar as causas «que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional» [arts. 211°, n°1, da CRP, 64° do CPC e 40°, n°1, da Lei n° 62/2013, de 26/8 (LOSJ)], enquanto os tribunais administrativos e fiscais são competentes para julgar as causas «emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais» (artigos 212°, n° 3, da CRP e 1º, n°1, do ETAF).

Nos termos daquele artigo 211.°, n.° 1, da CRP os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens jurisdicionais.

No mesmo sentido o artigo 64.° do Novo Código de Processo Civil dispõe que são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.

Dispõe o art. 1º do ETAF na redação anterior à dada pelo DL n.° 214-G/2015, de 02 de outubro que "1- Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.

2 - Nos feitos submetidos a julgamento, os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal não podem aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consagrados.”

Veio, assim, reafirmar-se a cláusula geral estabelecida no artigo 212° n.° 3 da Constituição, que define a competência material dos Tribunais Administrativos, como dizendo respeito aos litígios emergentes das relações jurídico-administrativas.

A delimitação do poder jurisdicional atribuído aos tribunais administrativos faz-se, pois, segundo um critério material, ligado à natureza da questão a dirimir, tal como resulta deste preceito, nos termos do qual “compete aos tribunais administrativos... o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios das relações jurídicas administrativas."

A jurisdição dos tribunais administrativos e fiscais está expressamente consagrada no art. 4º do ETAF (Lei n° 13/2002, de 19 de fevereiro), sob o título “Âmbito da jurisdição”.

E, nos termos do mesmo, veio o legislador indicar exemplificativamente os litígios que se encontram incluídos no âmbito da jurisdição administrativa, assim como aqueles que dela se encontram excluídos (neste sentido ver Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira in Código de Processo nos Tribunais Administrativos Volume I, Anotação XXIX, Almedina, pág. 59).

A questão será, pois, saber se está em causa uma situação integrável neste preceito e serão competentes os tribunais administrativos ou se, antes, competirá à jurisdição comum tal conhecimento.

Existe unanimidade quer na doutrina, quer na jurisprudência, que a competência material do tribunal se afere em função do modo como o A. configura a ação/pedido e que a mesma se fixa no momento em que a ação é proposta.

A competência dos tribunais determina-se, assim, pelo pedido do A., não dependendo o seu conhecimento nem da legitimidade das partes nem da procedência da ação.

Diz M. de Andrade, (N.E. de Processo Civil, 1956, pág.92) que, a competência em razão da matéria atribuída aos tribunais, baseia-se na matéria da causa, no seu objeto, "encarado sob um ponto de vista qualitativo o da natureza da relação substancial pleiteada."

Constitui jurisprudência pacífica que: "a competência material do tribunal afere-se pelos termos em que a ação ê proposta e pela forma como se estrutura o pedido e os respetivos fundamentos. Daí que para se determinar a competência material do tribunal haja apenas que atender aos factos articulados pelo autor na petição inicial e à pretensão jurídica por ele apresentada, ou seja à causa de pedir invocada e aos pedidos formulados" (vide Ac. do STJ, de 14.05.2009).

É, pois, a partir da análise da forma como a causa se mostra estruturada na petição inicial que teremos de encontrar as bases para responder à questão de saber qual é a jurisdição competente para o conhecimento da presente ação.

Vejamos então que tipo de relação está em causa atendendo que na determinação da competência em razão da matéria há que atender ao pedido e à causa de pedir formulados pelo autor.

Está aqui em causa uma ação para efetivação da responsabilidade civil extracontratual da Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de Vila Nova de Famalicão e da Companhia de Seguros ... S.A. mediante o arbitramento de indemnização por danos patrimoniais em consequência de um acidente de viação do veículo desta Associação conduzido por um dos seus funcionários que efetuou uma travagem brusca e terá provocado a queda da A., que era transportada numa cadeira de rodas, no chão da viatura, sem que aquele funcionário, alegadamente, lhe tivesse colocado o cinto de segurança, provocando-lhe lesões.

O artigo 4º do ETAF na redação da Lei n.° 20/2012, de 14 de Maio dispunha:

"Âmbito da jurisdição

1- Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objeto (...):

g) Questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e da função legislativa;

h) Responsabilidade civil extracontratual dos titulares de órgãos, funcionários, agentes e demais servidores públicos;

i) Responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas coletivas de direito público;

j) Relações jurídicas entre pessoas coletivas de direito público ou entre órgãos públicos, no âmbito dos interesses que lhes cumpre prosseguir...”

A demandada na presente ação é a Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de Vila Nova de Famalicão que era a proprietária do veículo, o qual era conduzido por um seu funcionário em serviço de interesse público.

As associações humanitárias de bombeiros são pessoas coletivas de utilidade pública administrativa e prosseguem fins de interesse público cujo regime jurídico vem regido na Lei n° 32/2007, de 13.8 (art. 3º) e nos respetivos estatutos criados em cumprimento do art. 51° da referida Lei.

Resulta do seu art. 2° que:

«1 - As associações humanitárias de bombeiros, adiante abreviadamente designadas por associações, são pessoas coletivas sem fins lucrativos que têm como escopo principal a proteção de pessoas e bens, designadamente o socorro de feridos, doentes ou náufragos, e a extinção de incêndios, detendo e mantendo em atividade, para o efeito, um corpo de bombeiros voluntários ou misto, com observância do definido no regime jurídico dos corpos de bombeiros.

2 - Com estrita observância do seu fim não lucrativo e sem prejuízo do seu escopo principal, as associações podem desenvolver outras atividades, individualmente ou em associação, parcería ou por qualquer outra forma societária legalmente prevista, com outras pessoas singulares ou coletivas, desde que permitidas pelos estatutos.»

E, nos termos do art 3º, n° 1 e 2, da referida Lei n° 32/2007:

“Aquisição de personalidade jurídica

As associações adquirem personalidade jurídica e são reconhecidas como pessoas coletivas de utilidade pública administrativa com a sua constituição. ”

E, como se decidiu no acórdão 02/17 de 19/10/2017, em situação idêntica:

" As associações humanitárias de bombeiros, que logo com a sua constituição são reconhecidas como pessoas de utilidade pública administrativa, têm, como escopo principal, a proteção de pessoas e bens, designadamente o socorro de feridos, doentes ou náufragos, e a extinção de incêndios, detendo e mantendo em atividade, para o efeito, um corpo de bombeiros voluntários ou misto (cf. arts. 2.°, n° 1 e 3.°, ambos da Lei n.° 32/2007, de 13/8).

Nos termos do art.° 9. deste diploma, tais associações “respondem civilmente pelos atos ou omissões dos seus representantes, agentes ou mandatários, nos mesmos termos em que os comitentes respondem pelos atos ou omissões dos seus comissários”.

Este preceito remete, assim, para o disposto no art.º 500° do Código Civil, que define o regime de responsabilidade do comitente, igualmente aplicável ao Estado e às pessoas coletivas públicas por danos causados no exercício de atividade de gestão privada.

Sob a epígrafe “Direito subsidiário”, o art.° 50°, da mesma Lei, dispõe o seguinte:

“1- Em tudo o que não se encontre especialmente regulado na presente lei, é aplicável às associações humanitárias de bombeiros o regime geral das associações.

2- As disposições do Código Administrativo relativas às pessoas coletivas de utilidade pública administrativa não são aplicáveis às associações humanitárias de bombeiros".

Resulta do exposto que, face à sua qualidade de entidades privadas, as associações humanitárias de bombeiros regem-se, em regra, pelo direito privado, só estando vinculadas ao direito administrativo por determinação expressa da lei e, tal como os titulares dos seus órgãos e agentes, respondem pelos prejuízos causados a terceiros no exercício da sua atividade segundo um regime de direito privado, apenas respondendo perante os tribunais administrativos, de acordo com um regime substantivo de direito público, quando o ato danoso tenha sido praticado no exercício de poderes de autoridade ou segundo um regime de direito administrativo.

No caso em apreço, é pedida a indemnização de um dano sofrido pelo ocupante de um veículo terrestre a motor (ambulância) que caiu no seu interior quando era transportado a uma consulta, em virtude de o seu condutor (2.º R) não lhe ter colocado o cinto de segurança e ter efetuado uma travagem brusca quando circulava pela via pública. Assim, o facto lesivo invocado consistiu na referida travagem conjugada com o incumprimento dos deveres de utilização de dispositivos de segurança de passageiros.

Atendendo aos termos em que a ação se mostra proposta, isto é, considerando o pedido e a causa de pedir que o fundamenta, é de concluir que o que está em causa é a responsabilidade civil emergente de um acidente de viação, entendido este como “o fenómeno ou acontecimento anormal decorrente da circulação de um veículo” (Ac. do STJ de 1/4/93 in BMJ 426-132), que não abrange apenas as colisões ou os despistes, mas quaisquer outros eventos ou acontecimentos estradais que tenham que ver com o funcionamento desse veículo.

Embora o facto lesivo tenha ocorrido no âmbito da atividade de transporte de doentes a consultas - a qual, aliás, pode ser prosseguida por qualquer outra entidade privada, desde que com autorização do Ministro da Saúde, nos termos do DL n.º 38/92, de 28/3 - o R. B….., ao conduzir a viatura em espaço público, fá-lo de forma idêntica aos outros utentes da estrada e com submissão às mesmas normas de direito privado, não agindo no exercício de poderes públicos que lhe sejam atribuídos em função da sua condição de condutor da ambulância propriedade da R. Associação Humanitária. Por isso, o regime jurídico aplicável é o privado, nos termos do art.º 500º do C. Civil e os tribunais competentes são os comuns.

A circunstância de a aludida atividade constituir uma das missões do corpo de bombeiros [cf. art.º 3°, n.° 1, al. d), do DL n.° 247/2007, de 27/6] não significa que, no seu âmbito, qualquer ação ou omissão ilícita se integra na previsão do n.° 5 do art.° 1.° do Regime aprovado pela Lei n.° 67/2007, dado este preceito exigir que elas exprimam o exercício de prerrogativas de poder público ou que sejam reguladas por regras ou princípios de direito administrativo, sendo certo que a imperícia e a falta de cuidado que são imputadas ao condutor do veículo não resultou do desrespeito de vinculações jurídico-públicas impostas à Associação R. enquanto titular de funções públicas.”

A competência na situação dos autos pertence, assim, aos tribunais judiciais.




Em face de todo o exposto acordam os juízes deste Tribunal de Conflitos em resolver o conflito, considerando como competente, em razão da matéria, os tribunais judiciais.

Sem custas [cfr. art. 96.° do Decreto n.° 19243, de 16.01.1931].

Lisboa, 1 de Março de 2023. – Ana Paula Soares Leite Martins Portela (relatora) – Maria Teresa Féria Gonçalves de Almeida – Adriano Fraxenet de Chuquere Gonçalves da Cunha – Paulo Jorge Rijo Ferreira – Carlos Luís Medeiros de Carvalho – Helena Isabel Gonçalves Moniz Falcão de Oliveira.