Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:058/13
Data do Acordão:02/06/2014
Tribunal:CONFLITOS
Relator:LOPES DO REGO
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
Sumário:É da competência dos tribunais judiciais a acção — de natureza real - em que determinada empresa municipal, invocando a propriedade do município sobre certo imóvel, peticiona - contra o terceiro que o ocupou ilegitimamente, após ter caducado, por morte do primitivo arrendatário, o contrato de arrendamento celebrado - a respectiva restituição, bem como o arbitramento de uma indemnização (situada no plano da responsabilidade extracontratual) pelos danos causados com a detenção indevida do prédio.
Nº Convencional:JSTA000P17025
Nº do Documento:SAC20140206058
Data de Entrada:10/24/2013
Recorrente:EMGHA - GESTÃO DA HABITAÇÃO SOCIAL DE CASCAIS, EM., NO CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO ENTRE O 2º JUÍZO CÍVEL DO TRIBUNAL DE FAMÍLIA E MENORES E DE COMARCA DE CASCAIS E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE SINTRA
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Acordam no Tribunal dos Conflitos:

1. EMGHA - Gestão da Habitação Social de Cascais, EM, intentou no Tribunal de Família e Menores e de Comarca de Cascais acção de condenação, na forma sumária, contra o R. A………… em que — afirmando-se proprietária do imóvel dado de arrendamento pelo documento de fls. 21/22 à mãe do R., entretanto falecida (facto que terá determinado a caducidade da relação locatícia), detido desde então pelo demandado sem qualquer título que legitime a ocupação — pede que o R. seja condenado a entregar o imóvel livre de pessoas e bens e no estado de conservação em que a arrendatária o recebeu, bem como a pagar a indemnização devida pela respectiva ocupação sem qualquer título legítimo, por essa via ressarcindo a A. dos danos resultantes da privação da disponibilidade da dita fracção.

Tendo-se frustrado a citação pessoal do R., foi, naquele Tribunal, proferido despacho a julgá-lo materialmente incompetente para os termos da causa, absolvendo-se o R. da instância com base na seguinte argumentação:

A autora formula o pedido de condenação do réu no pagamento de quantias alegadamente em dívida, por falta de pagamento resultante de obrigação decorrente da celebração de um contrato de arrendamento ao abrigo do regime de renda apoiada estabelecido pelo Decreto-lei, n.º 166/93, de 7 de Maio.
Por outro lado, justifica a respectiva legitimidade no facto de ser uma “(...) empresa municipal” à qual foi atribuída a função de promover a gestão “do parque habitacional do Município de Cascais”

Face ao alegado, afigura-se claro que o fundamento da obrigação cujo reconhecimento vem peticionado se reconduz à existência de um acto administrativo de atribuição de um “fogo municipal” e à subsequente obrigação de pagamento de renda, no âmbito de uma relação contratual com a administração.
Nestes termos, dúvidas não subsistem de que o primeiro dos pressupostos que estriba o pedido formulado no âmbito dos presentes autos se reconduz a um verdadeiro e próprio acto administrativo.
Com efeito:
“(...) o que está em causa é a aplicação do regime de renda apoiada aos fogos habitados pelos recorrentes, regime este regulado no DL n° 166/93, de 07-05.

E este regime, ao contrário do sustentado pela recorrida, não é um regime de direito privado.
Não é fixado por acordo das partes, ao contrário do que sucede com os regimes de renda livre e de renda condicionada - artigo 77°, do RAU, aprovado pelo DL n°s 321- B/1990, de 15-10.
Tem por objecto “todas as habitações destinadas a arrendamento de cariz social, quer tenham sido, adquiridas ou construídas pelo Estado, quer pelas autarquias locais... (preâmbulo do DL 166/93, de 07-05, § 2°).
E estabelece prerrogativas de autoridade que não existem no arrendamento de natureza jurídico-privada:
A autoridade locadora pode, a todo o tempo, solicitar aos arrendatários quaisquer documentos e esclarecimentos para a instrução ou actualização dos respectivos processos, fixando para o efeito um prazo de resposta não inferior a 30 dias (artigo 9°, 2 do Decreto-Lei n° 166/93);
O incumprimento injustificado pelo arrendatário do disposto no número anterior dá lugar ao pagamento por inteiro do respectivo preço técnico (artigo 9°, n°3); (...)
Daí ser competente, em razão da matéria, o Tribunal Administrativo e Fiscal, para conhecer de mérito, já que o acto que determina a aplicação de um regime de renda apoiada, previsto no DL 166/93, é um acto administrativo, pelo que sindicável naquele tribunal, nos termos do artigo 51º n° 2 do CPTA, e artigos 1° e 4°, n° 1, alínea d) do ETAF” - cfr. douto acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 08.06.2006, disponível in www.dgsi.pt.
No caso em apreciação a relação material controvertida queda-se já pelo próprio (in)cumprimento do contrato, enquanto complexo de obrigações e deveres, que teve subjacente o acto de atribuição de um fogo, pelo que nos encontramos no âmbito de aplicação da alínea f) do citado artigo 4° do ETAF.
Na verdade, nos termos do artigo 4°, alínea f) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais:
“1 - Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto: (...)
f) Questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível de acto administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo, ou de contratos em que pelo menos uma das partes seja uma entidade pública ou um concessionário que actue no âmbito da concessão e que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público; (…)”
Em suma, perante o facto de a atribuição de fogo ser decidida por despacho, por decisão da autarquia, perante a análise dos rendimentos do agregado e na prossecução do interesse público, afigura-se-me inquestionável que o que legitima a ocupação do locado e que, por outro lado, estriba a obrigação de pagamento de renda não poderá deixar de ser qualificado como administrativo, face ao regime legal a que se submete, — neste sentido, com muito interesse: douto acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 18.05.2006, disponível in www.dgsi.pt.
Assim, também já foi decidido pela 6ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa, no agravo n° 959/06, relatado por Gilberto Martinho dos Santos Jorge.
Assim, impõe-se concluir, sem necessidade de mais delongas, que o presente tribunal é absolutamente incompetente em razão da matéria para a instrução dos autos e subsequente apreciação do pedido, por se verificar a situação prevista no artigo 4º, alínea f) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.
Acresce que, nos termos conjugados dos art°s. 101º, 102°, 103°, 105°, 493°, n° 1 e 2, 494°, al. a), 495° e 795°, todos do Cód. Proc. Civil, a incompetência em razão da matéria constitui excepção dilatória, de conhecimento oficioso, e determina a absolvição do réu da instância.
*
Pelo exposto, julgo este tribunal incompetente em razão da matéria para conhecer do pedido e em consequência, absolvo a ré da instância.

Remetidos os autos ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra - já que a A. renunciou ao direito de impugnar a decisão proferida — e após se ter procedido à citação edital do R., foi proferido despacho a julgar incompetente, em razão da matéria, o Tribunal administrativo, indeferindo-se, por isso, liminarmente a petição inicial, com base na seguinte fundamentação:

EMGHA - Empresa de Gestão do Parque Habitacional do Município de Cascais. E.M., com sede na Av. Eng.° Adelino Amaro da Costa, 89, em Cascais, intentou junto do Tribunal de Família, de Menores e de Comarca de Cascais, contra A…………, ação declarativa de condenação, sob a forma sumária, visando a condenação do Réu a:
a) a entregar à Autora o imóvel sito no Bairro de ……, Rua de ……, Bloco ……, n.° ……, em Cascais, livre de pessoas e bens e em bom estado de conservação, tal como o encontrou;
b) a pagar à Autora indemnização pela ocupação do imóvel de abril a dezembro de 2008 e de janeiro a março de 2009 no valor total de € 44,76;
c) a pagar à Autora indemnização pela ocupação do imóvel desde abril de 2009 até ao presente;
d) a pagar à Autora indemnização devida pela ocupação do imóvel desde a propositura da ação até efetiva desocupação do mesmo.
Alegou, em síntese, que o Réu, ao ocupar ilegítima e ilicitamente o fogo sito no Bairro de ……, Rua de ……, Bloco ……, n.° ……, em Cascais, que é propriedade do Município de Cascais e cuja gestão pertence à Autora, tem a posse não titulada, de má fé, o que se prolonga há mais de dois anos (artigo 1258.° do Código Civil);
Sendo a ação de reivindicação, prevista no artigo 1311.º do Código Civil, a ação competente para a reivindicação da propriedade, cujo efeito útil é não só o reconhecimento do direito de propriedade, mas também a restituição do objeto de que se é proprietário.
O Réu não foi citado.

O 2.° Juízo Cível do Tribunal de Família e Menores e de Comarca de Cascais julgou-se incompetente, em razão da matéria, para conhecer do pedido e absolveu o Réu da instância.

Na sequência de requerimento apresentado pela Autora, foi ordenada a remessa do processo a este tribunal.

O artigo 13.° do Código de Processo nos Tribunais Administrativos estabelece que o “âmbito da jurisdição administrativa e a competência dos tribunais administrativos, em qualquer das suas espécies, é de ordem pública e o seu conhecimento precede o de qualquer outra matéria.”
Nestes termos, cumpre conhecer da competência deste tribunal para decidir a presente ação, sendo manifestamente desnecessário ouvir a Autora sobre a matéria (n.° 3 do artigo 3.° do Código do Processo Civil), designadamente porque a questão da competência já foi tratada no âmbito do Processo n.° 2045/09.6TBCSC, que correu termos no 2º Juízo Cível, do Tribunal de Família e Menores e de Comarca de Cascais.

Estabelece o artigo 1º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais que os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.

O que cumpre, apreciar, para apurar se este tribunal é o competente, em razão da matéria, para apreciar o presente litígio é, pois, se o litígio em causa emerge de uma relação jurídica administrativa.
Vejamos, então.
Face ao alegado pela Autora, na petição inicial, e ao pedido principal por ela formulado, e atenta a causa de pedir, é manifesto que em causa no presente processo está uma ação de reivindicação cujo objeto é, nos termos do disposto no artigo 1311.º do Código Civil (norma que a Autora expressamente invoca), o reconhecimento pelo Réu (possuidor) do direito de propriedade e a consequente condenação do Réu a restituir à Autora o imóvel.

Com efeito, ao contrário do que se refere na sentença do 2° Juízo Cível, do Tribunal de Família e Menores e de Comarca de Cascais, que julgou o tribunal incompetente, em razão da matéria, para conhecer do pedido, não resulta da petição inicial que a «Autora formula o pedido de condenação do réu no pagamento de quantias alegadamente em dívida, por falta de pagamento resultante de obrigação decorrente da celebração de um contrato de arrendamento ao abrigo do regime de renda apoiada estabelecido pelo Decreto-Lei n.° 166/933, de 7 de Maio».
Nem pode afirmar-se, como se faz na referida sentença, que seja «claro que o fundamento da obrigação cujo reconhecimento vem peticionado se reconduz à existência de um acto administrativo de atribuição de um “fogo municipal” e à subsequente obrigação de pagamento de renda, no âmbito de uma relação contratual com a administração» e que no «caso em apreciação a relação material controvertida queda-se (...) pelo próprio (in)cumprimento do contrato, enquanto complexo de obrigações e deveres, que teve subjacente o acto de atribuição de um fogo, pelo que nos encontramos no âmbito de aplicação da alínea f) do (...) artigo 4.° do ETAF.».

O que resulta da petição inicial é algo bem diferente. A Autora pede, a título principal, que se condene o Réu a entregar-lhe o imóvel sito no Bairro de ……, Rua de ……, Bloco ……, n.° ……, em Cascais, livre de pessoas e bens e em bom estado de conservação, tal como o encontrou, uma vez que o Réu, ao ocupar ilegítima e ilicitamente esse fogo, que é propriedade do Município de Cascais e cuja gestão pertence à Autora, tem a posse não titulada, de má fé, que se prolonga há mais de dois anos (artigo 1258.° do Código Civil). A Autora intenta uma ação de reivindicação, prevista no artigo 1311.º do Código Civil, a ação competente para a reivindicação da propriedade, cujo efeito útil para a Autora é não só o reconhecimento do direito de propriedade mas também a restituição do imóvel.
Ora, inexiste no Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais norma que atribuía competência à jurisdição administrativa para conhecer ações de reivindicação, ainda que as mesmas sejam intentadas contra entidades públicas, o que se justifica pelo facto de não se tratar de um litígio emergentes de uma relação jurídica administrativa.

Com efeito, como se refere no voto de vencido apresentado no Acórdão do Tribunal dos Conflitos, de 10 de julho de 2012, Processo n.° 3/12, disponível para consulta em www.dgsi.pt: “ (...) neste tipo de ações o que essencialmente se discute é a questão, puramente de direito privado, de saber se o direito real invocado pelo «dominus» existe e é oponível ao réu, por forma a tirar-lhe a detenção parcial da coisa; e só acidentalmente se colocará um problema ligado ao direito público — se o detentor se socorrer de regras desta ordem para titular e legitimar a detenção”.

Sobre a competência para conhecer de uma ação de reivindicação instaurada ao abrigo do artigo 1311.º do Código Civil pronunciou-se, também, o Tribunal dos Conflitos, em acórdão de 16 de fevereiro de 2012, Processo 20/11, disponível para consulta em www.dgsi.pt, no qual se decidiu que “Os tribunais comuns são os competentes para conhecer de uma ação de reivindicação instaurada ao abrigo do art° 1311º do CC, onde se peticiona a condenação do Réu a reconhecer o direito de propriedade do Autor sobre determinado terreno que havia sido objeto de ato expropriativo judicialmente declarado nulo e a consequente restituição desse terreno ao Autor.”

Assim sendo, não estando em causa no presente processo um litígio emergente de uma relação jurídica administrativa, a sua apreciação não cabe aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal.

Nos termos e com os fundamentos expostos, julga-se a jurisdição administrativa e o Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra incompetentes, em razão da matéria, para conhecer da presente ação e, em consequência, indefere-se liminarmente a petição inicial.

Foi determinada, de seguida, a remessa dos autos ao Tribunal de Conflitos, nos termos dos arts. 135° CPTA e 111º, n°s 1 e 3, do CPC.

Distribuídos os autos, foi pelo Exmo Magistrado do M°P° exarado o seguinte parecer:

1. Constitui objecto do presente processo dirimir o conflito de jurisdição entre o Tribunal Judicial de Cascais (2° Juízo de competência Cível) e o Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra.

2. Como é por demais sabido aos tribunais administrativos incumbe assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, reprimir a violação da legalidade e dirimir conflitos de interesses públicos e privados no âmbito das relações jurídico administrativas. E nos termos do art. 212° da CRP – “Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídico e administrativas e fiscais.
E Vieira de Andrade in “A Justiça Administrativa, 9ª edição, págs. 55 escreve - “Esta questão sobre o que se entende por “relação jurídica administrativa sendo fulcral, devia ser resolvida expressamente pelo legislador. Mas, na falta de uma clarificação legislativa, parece-nos que será porventura mais prudente partir-se do entendimento do conceito Constitucional de “relação jurídica de direito administrativo”, com exclusão, nomeadamente, das relações de direito privado em que intervém a Administração.
Como também se escreveu no Ac. do Tribunal de Conflitos de 9.12.08, Proc. 017/08 – “Por relação jurídico administrativa deve entender-se a relação social estabelecida entre dois ou mais sujeitos (um dos quais a Administração) que seja regulada por normas de direito administrativo e da qual resultem posições jurídicas subjectivas.
Como ensina o Prof. Freitas do Amaral (In “Lições de Direito Administrativo”, edição policopiada, p. 423.), a “relação jurídica de direito administrativo” é aquela que confere poderes de autoridade ou impõe restrições de interesse público à administração, perante os particulares, ou aquela que atribui direitos ou impõe deveres públicos, aos particulares, perante a administração”.

3. Por sua vez, os tribunais judiciais não podem conhecer dos litígios que envolvem a Administração Pública enquanto poder administrativo - isto é, dos litígios em que esteja em causa a actuação da Administração Pública no exercício de uma actividade de gestão pública (Freitas do Amaral - Direito Administrativo - II - 1988 - 12).
Segundo GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, p. 815), a qualificação como “relações jurídicas administrativas ou fiscais” «transporta duas dimensões caracterizadoras: as acções e recursos incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos, um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão de poder público; as relações jurídicas controvertidas são reguladas, sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo ou fiscal. Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza “privada” ou “jurídico-civil”. Em termos positivos, um litígio emergente de relações jurídico-administrativas e fiscais será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal.»
Seguindo, ainda a definição de VIEIRA DE ANDRADE (A Justiça Administrativa, Lições, 2000, p. 79) a relação jurídica administrativa é «aquela em que um dos sujeitos, pelo menos, é uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido».
A actual definição legal, na esteira da lei fundamental, deixou de estribar a delimitação da jurisdição administrativa na distinção entre actos de gestão pública e actos de gestão privada, deslocando o pólo aglutinador para o conceito de relação jurídica administrativa e de função administrativa, em que avulta a realização de um interesse público levado a cabo através do exercício de um poder público e, portanto, de autoridade, seja por uma entidade pública, seja por uma entidade privada, em que esta actua no uso de prerrogativas próprias daquele poder ou no âmbito de uma actividade regulada por normas do direito administrativo ou fiscal.

4. O art. 4° do ETAF delimita o âmbito da jurisdição administrativa, ganhando particular relevo para o que nos interessa, de entre as várias alíneas do n° 1, a alínea f) que dispõe – “Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível de acto administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos do respectivo regime substantivo, ou de contratos que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público”.

5. Como se escreveu em Ac. deste Tribunal de Conflitos – “E pacífico o entendimento de que o pressuposto processual da competência se determina em função da acção proposta, tanto na vertente objectiva, atinente ao pedido e à causa de pedir, como na subjectiva, respeitante às partes (entre muitos outros, cfr. os Ac. do Tribunal de Conflitos de 28-09-10, 20-09-11 e 10-07-12, www.dgsi.pt), importando essencialmente para o caso ter em consideração a relação jurídica invocada.
Tal preceito confere à jurisdição administrativa a competência para apreciar questões relativas a contratos administrativos típicos (a respeito dos quais existam normas de direito público que regulam especificamente aspectos de natureza substantiva), contratos atípicos com objecto passível de acto administrativo (que determinem a produção de efeitos que também poderiam ser determinados através da prática, pela entidade pública contratante, de um acto administrativo unilateral) e de contratos atípicos com objecto passível de contrato de direito privado que as partes tenham expressa e inequivocamente submetido a um regime substantivo de direito público (cfr., entre outros, Freitas do Amaral e Aroso de Almeida, Grandes Linhas da Reforma do Contencioso Administrativo, págs. 38/41, Aroso de Almeida O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos, págs. 104/107, e Esteves de Oliveira, Código de Processo nos Tribunais Administrativos, vol. I, pág. 21).
Ao invés do que se estabelecia na redacção original do ETAF (aprovado pelo DL n.° 129/84, de 27-4), em que a competência da jurisdição administrativa era fundamentalmente definida em função do binómio gestão pública/gestão privada, em face da nova lei, a doutrina e a jurisprudência vêm destacando a utilização do conceito de relação jurídica administrativa (vide, entre outros, os Ac. do STJ de 12-2-07 e de 8-5-07 e o Ac. do STA de 14-1-10, www.dgsi.pt.
Relação jurídica administrativa “é aquela que confere poderes de autoridade ou impõe restrições de interesse público à Administração perante os particulares ou que atribui direitos ou impõe deveres públicos aos particulares perante a administração (Freitas do Amaral, Direito Administrativo, vol. III, pág. 439), sendo pacífico que pelo menos um dos sujeitos tem de actuar nas vestes de autoridade pública, investido de ius imperium, com vista à realização do interesse público (cfr. José Eduardo Figueiredo Dias e Fernanda Paula Oliveira, Noções Fundamentais de Direito Administrativo, pág. 239).

6. Ora, no caso, por detrás de tudo está a deliberação da Câmara Municipal de Cascais em celebrar com a mãe do R. um contrato de arrendamento da habitação em causa, no âmbito da habitação social e de rendas condicionadas.
Como assim, acompanhamos a fundamentação da decisão do Tribunal Judicial de Cascais (2° Juízo Cível) constante de fls. 64/71 destes autos, que, no fundo, segue a jurisprudência constante dos Acs. deste Tribunal de Conflitos n°s. 12/11 de 25.9.2012; 13/12 de 8.11.2012; n° 4/13 de 5.3.2013 e n° 25/13 de 26.9.2013.


7. Somos, pois, de parecer que o presente conflito de jurisdição deve ser dirimido com atribuição da competência aos tribunais administrativos, nomeadamente, ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra.

2. Na base do presente litígio estão, pois, os seguintes factos essenciais, alegados pela A:

1. Entre o município de Cascais e B………… foi celebrado, em 30/3/1959, o contrato de arrendamento titulado pelo documento de fls. 21/22;
2. A arrendatária faleceu em 6/8/2005, o que, na óptica da A., determinou a caducidade da relação de arrendamento;
3. O R. — filho da arrendatária — apropriou-se da fracção arrendada, recusando-se a restituí-la, possuindo-a de má fé há mais de 2 anos, privando com tal comportamento a A. do direito de usar e dispor da respectiva propriedade, causando-lhe danos patrimoniais com o não pagamento, nos períodos referenciados, de qualquer quantia pelo uso ilegítimo — sem qualquer título — do imóvel que se vem recusando a restituir voluntariamente.

3. É ponto incontroverso que a competência (ou jurisdição) de um tribunal se determina pela forma como o autor configura a acção, definida pelo respectivo objecto, tal como se mostra delimitado pelo pedido formulado (pelo efeito jurídico pretendido) e pela respectiva causa de pedir (pelos factos essenciais, constitutivos de tal efeito jurídico).

Importa, deste modo, interpretar e caracterizar adequadamente a acção proposta, definindo e delimitando o respectivo objecto, de modo a determinar se este tem, desde logo, natureza contratual ou real — ou seja, se o efeito jurídico que o A. pretende obter se situa ainda no âmbito de determinada relação contratual, cujas vicissitudes importa definir e concretizar; ou se, pelo contrário, tal objecto e fundamentos essenciais da causa se situam antes num plano extracontratual, tendo a ver com a afirmação da existência de direitos absolutos e com as consequências jurídicas da sua possível violação.

Saliente-se que é numa divergente apreciação desta questão fundamental, levando a definir e estabelecer qual é, em bom rigor, a natureza e o objecto da acção efectivamente proposta, que radicam as decisões opostas das instâncias sobre o tema da competência material: na verdade, o Tribunal comum perspectivou o objecto da acção como situado ainda no plano contratual, qualificando a relação locatícia em causa como integrando uma relação jurídico administrativa, enquadrável na alínea f) do art. 4° do EFAF; pelo contrário, o Tribunal administrativo considerou estarmos antes perante uma acção real — de reivindicação - do imóvel ilegitimamente possuído pelo R., sem qualquer título habilitante, não se fundando a pretensão de restituição do imóvel e de indemnização devida pela sua ilegítima ocupação por terceiro — absolutamente estranho à dita relação locatícia — em qualquer relação contratual configurável como podendo estar submetida a um regime de direito público.

Perante o disposto no n.° 1 do art. 211° da CRP, “Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais”, sendo que, nos termos do art. 212°, n.° 3, “Compete aos tribunais administrativos e fiscais o conhecimento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas”.
O conceito de relação jurídica administrativa é, assim, erigido, tanto pela Constituição como pela lei ordinária, em elemento nuclear da repartição de jurisdição entre os tribunais administrativos e os tribunais judiciais.
O âmbito da jurisdição administrativa encontra-se definido no art. 4° do ETAF onde se estatui que compete aos tribunais administrativos “a apreciação de litígios que tenham por objecto” as situações ali tipificadas, sendo que a decisão em causa nos presentes autos identificou a alínea f) (Questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível de acto administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo, ou de contratos em que pelo menos uma das partes seja uma entidade pública ou um concessionário que actue no âmbito da concessão e que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público).

Ora, na concreta situação dos autos e ponderado o teor da petição inicial apresentada, face aos pedidos ali deduzidos e respectivos fundamentos, não pode duvidar-se que estamos confrontados com acção de natureza real, em que a empresa municipal que figura como A. afirma a existência de um direito de propriedade do município sobre a fracção em litígio (invocando a norma constante do art. 1311° do CC) e deduz contra o R./ocupante ilegítimo pretensão real, traduzida na efectivação da entrega do imóvel ao legítimo proprietário, pondo termo a situação de ocupação ilegítima ocorrida após ter caducado o contrato de arrendamento celebrado com pessoa diversa do actual possuidor.

Saliente-se que tal acção só não pode configurar-se como verdadeira e própria reivindicação pelo facto de se mostrar construída em termos de a afirmação do direito de propriedade ser fundamento — e não objecto — dos pedidos que, na sua estratégia processual, a A. entendeu formular (circunscrevendo-os à restituição do imóvel ilegitimamente ocupado e ao ressarcimento dos danos causados pela ocupação).
Porém — e como é evidente — tal circunstância em nada releva para o tema da determinação da competência material, sendo incontroverso que a acção proposta assume claramente natureza real e não contratual — o que manifestamente exclui a possibilidade de invocação do regime constante da citada alínea f) do art. 4º do ETAF.

Por outro lado, é manifesto que a pretensão indemnizatória deduzida contra o ocupante de facto do imóvel se não pode configurar como uma exigência do pagamento das rendas, vencidas e vincendas, emergentes de uma relação locatícia em vigor, mas antes como formulação de um pedido de indemnização, fundado em responsabilidade extracontratual, tendo como objecto o ressarcimento dos danos causados pela lesão do direito de propriedade da A. com a ilegítima ocupação da fracção em causa.

Está, pois, de todo excluída a invocação do regime constante da citada alínea f) do art. 4º do ETAF, por estarmos confrontados com acção de natureza claramente não contratual.

A acção proposta, o seu fundamento essencial e os pedidos nela formulados são, assim, típicos de processos que correm e cabem aos tribunais comuns (visando obter o reconhecimento do direito de propriedade, a restituição do bem e a indemnização de danos causados pela indevida ocupação de imóveis), não envolvendo manifestamente a sua resolução a convocação e aplicação de quaisquer regimes de direito público.

4. Termos em que se resolve o conflito de jurisdição, considerando competente, em razão da matéria, a jurisdição comum para o conhecimento da acção proposta.
Sem custas.
Lisboa, 6 de Fevereiro de 2014. - Carlos Francisco de Oliveira Lopes do Rego (relator) - Alberto Acácio de Sá Costa Reis - Isabel Celeste Alves Pais Martins - Alberto Augusto Andrade de Oliveira - Manuel Joaquim Braz - Jorge Artur Madeira dos Santos.