Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:03802/20.8T8GMR.G1.S1
Data do Acordão:12/02/2021
Tribunal:CONFLITOS
Relator:MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Descritores:CONFLITO DE JURISDIÇÃO
Sumário:É da competência dos Tribunais Judiciais uma acção instaurada contra uma entidade pública na qual a autora pede que se reconheça o direito de propriedade que alega e que a ré restitua a parcela de terreno que indevidamente ocupou, invocando que adquiriu o direito por usucapião e que sempre beneficiaria da presunção de titularidade do direito de propriedade fundada, quer no registo predial, quer na posse.
Nº Convencional:JSTA000P28745
Nº do Documento:SAC2021120203802
Recorrente:COELIMA – INDÚSTRIAS TÊXTEIS S.A.
Recorrido 1:JUNTA DE FREGUESA DE SELHO, S. JORGE
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral:
Acordam, no Tribunal dos Conflitos:


1. Em 14 de Agosto de 2020, Coelima-Indústrias Têxteis S.A. intentou no Tribunal da Comarca de Braga, Juízo Local Cível de Guimarães, uma ação de reivindicação contra a Junta de Freguesia de Selho S. Jorge, pedindo a condenação da ré no reconhecimento de que é proprietária da parcela de terreno identificada nos artigos 1.º e 2.º da petição inicial e na respectiva restituição.
Para o efeito, e em síntese, alegou que tal parcela está a ser indevidamente ocupada pela ré, que ali realiza obras sem o seu consentimento.
Por despacho de 14 de Setembro de 2020 do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo Local Cível de Guimarães – Juiz 1, a autora foi convidada a pronunciar-se sobre a competência material do tribunal para conhecer da causa; a autora respondeu, considerando competentes os tribunais judiciais.
Em 2 de Novembro de 2020, o Tribunal proferiu despacho liminar julgando verificada a exceção dilatória de incompetência absoluta, declarando-se incompetente em razão da matéria para apreciar o mérito da ação e absolvendo a ré da instância. Para assim decidir, o tribunal entendeu que, pretendendo a autora o reconhecimento de que a parcela de terreno identificada nos autos lhe pertence e que a ré, entidade pública, deixe de ali praticar atos como se fosse a respectiva proprietária, está em causa matéria enquadrável na alínea i) do n.°1 do artigo 4.° do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais – condenação à remoção de situação constituída em via de facto, sem título que a legitime – e, portanto, da competência da jurisdição administrativa e fiscal.
Inconformada, a autora interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Guimarães que, por acórdão de 25 de Março de 2021, confirmou o despacho recorrido, considerando igualmente que a situação dos autos encontra previsão na alínea i) do n.º 1 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, na redação introduzida pelo Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 2 de Outubro.
A autora recorreu para o Tribunal dos Conflitos.
Nas alegações que apresentou, formulou as seguintes conclusões:


1. A questão que aqui se coloca a douta apreciação do Meritíssimo Tribunal "ad quem", resume-se a saber se, no caso em apreço, a competência material para a presente demanda pertence aos Tribunais Judiciais ou aos Tribunais Administrativos e Fiscais.
2. Nos termos do disposto no artigo 211°, número 1, da CRP, os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais.
3. O artigo 212°, número 3, da Lei Fundamental estabelece que compete aos Tribunais Administrativos e Fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os "litígios emergentes das refeições jurídicas administrativas e fiscais".
4. São, assim, da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional (Cfr. artigo 64o do Código de Processo Civil e artigo 40° da Lei da Organização do Sistema Judiciário, aprovada pela Lei n.° 62/2013, de 26 de Agosto).
5. Já a competência dos Tribunais Administrativos e Fiscais veio a ser concretizada no artigo 4° do ETAF que enumera os litígios que se encontram incluídos no âmbito da jurisdição administrativa.
6. Para se determinar a competência absoluta dos Tribunais há que atentar no pedido e na causa de pedir ("quid disputatum"), irrelevando qualquer tipo de indagação sobre o seu mérito ("quid decisum").
7. Deste modo, partindo da análise da forma como o litígio se mostra estruturado na Petição Inicial, encontramos as bases para responder à questão de saber qual é a jurisdição competente para o conhecimento do mesmo.
8. Na Petição Inicial, a A. invoca a titularidade do direito de propriedade, pede o seu reconhecimento e, consequentemente, pede a restituição da coisa.
9. A alegação da A. reside apenas, e só, na violação, pela R., do seu direito de propriedade.
10. O objecto do litígio, tal qual consta da Petição inicial, não envolve nem se centra na discussão da legalidade da construção da obra, nem da natureza da obra, nem do seu maior ou menor interesse público.
11. Não é identificado nenhum concreto procedimento administrativo ou um qualquer acto administrativo.
12. Está em causa, outrossim, uma mera actuação material, imputada à R., que, no entender da A., viola o seu direito de propriedade.
13. Por conseguinte, o caso respeita, exclusivamente, a uma figura jurídica de direito privado.
14. Trata-se de uma acção de reivindicação (tal como vem prevista no artigo 1311o do CC), ou seja, de uma acção real.
15. Tal acção não se confunde com as acções obrigacionais em que se exerce a responsabilidade civil extracontratual.
16. E não é a circunstância de uma das partes ter feição pública que impõe concluir-se que as questões decidendas emergem de uma relação jurídica administrativa.
17. Por conseguinte, entende a Recorrente que a competência para apreciar o pedido (no âmbito de uma acção real) é dos Tribunais Judiciais, uma vez que, salvo melhor opinião, não se inclui em qualquer das hipóteses do artigo 4º do ETAF.
18. No mesmo sentido da posição da Recorrente pronunciaram-se, designadamente, os Acórdãos do Tribunal de Conflitos proferidos no âmbito dos seguintes processos: 035/13, de 27/11/2013, 024/13, de 15/05/2013, 018/13, de 18/12/2013, 011/09, de 07/07/2009, 01/17, de 24/05/2017,1/15-70, de 22/04/2015, 015/14 de 30/10/2014, 052/14, de 26-01-2017, 013/14 de 19-06-2014, 015/14, de 30-10-2014, 046/15, de 04/02/2016, 048/15, de 07/07/2016 e 027/14, de 25-09-2014, 062/19, de 02-03-2021, 07/20, de 03-11-2020, 041/19, de 23-01-2020 e, ainda, o Tribunal Central Administrativo Norte no Acórdão proferido no processo n° 00103/14.4BEPRT, de 11/01/2019 e o Tribunal da Relação do Porto, no processo n° 0637020, de 18/01/2007 - Cfr. trechos dos referidos Acórdãos que se transcrevem nas Alegações.
19. Porque a Recorrente alegou factos capazes de demonstrar que é titular do direito de propriedade sobre o terreno em causa nos presentes autos, está, pois, em causa a defesa de um direito real (artigo 1315º do CC), sendo que qualquer eventual responsabilidade extracontratual que se venha apurar (mas que, por ora, não se encontra configurada) não surgirá ligada a qualquer relação jurídica administrativa mas, antes, a uma relação jurídica de direito privado - desde logo, subjaz à pretensão deduzida em juízo, a invocada existência de um direito de propriedade.
20. Assim, os Tribunais Judiciais são competentes para apreciar e decidir este pleito já que está apenas em causa uma questão de natureza cível.
21. Destarte, o Tribunal a quo, ao decidir como decidiu, violou, entre outras, as citadas normas do ETAF e da CRP.

A ré não contra-alegou.


2. Remetidos os autos ao Tribunal dos Conflitos, o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça determinou que fossem seguidas as regras previstas na Lei n.º 91/2019, de 4 de Setembro (Tribunal dos Conflitos), nos termos do disposto no respectivo artigo 18.º, n.º 2.
O Ministério Público emitiu parecer no sentido de ser atribuída competência para conhecer da presente ação ao Juízo Local Cível de Guimarães: “(…) afigura-se-nos que a norma em causa [a al. i) do n.º 1 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais] deve ser interpretada no sentido de apenas atribuir a competência aos tribunais administrativos para as acções em que apenas está em causa a remoção de atuações ilegais da Administração. Já nos casos em que esteja em discussão a titularidade do direito de propriedade sobre o imóvel em questão, a título principal (e não como questão incidental) a competência continuará a caber à jurisdição comum.”

3. A matéria de facto relevante consta do relatório.
Cumpre conhecer do recurso, cujo objecto se traduz em determinar qual é a jurisdição competente para conhecer do pedido da autora, se os tribunais judiciais – que, no conjunto do sistema judiciário, têm competência residual (n.º 1 do artigo 211º da Constituição, n.º 1 do artigo 40º da Lei de Organização do Sistema Judiciário, a Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto e artigo 64.º do Código de Processo Civil) – , se os tribunais administrativos e fiscais, cuja jurisdição é delimitada pelo n.º 3 do artigo 212º da Constituição e pelos artigos 1.º e 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.
Os tribunais administrativos, “por seu turno, não obstante terem a competência limitada aos litígios que emerjam de «relações jurídicas administrativas», são os tribunais comuns em matéria administrativa, tendo «reserva de jurisdição nessa matéria, excepto nos casos em que, pontualmente, a lei atribua competência a outra jurisdição» [ver AC TC nº508/94, de 14.07.94, in Processo nº777/92; e AC TC nº347/97, de 29.04.97, in Processo nº139/95]” – acórdão do Tribunal dos Conflitos de 2018, www.dgsi.pt, proc. n.º 020/18).
Esta forma de delimitação recíproca obriga a começar por verificar se a presente acção tem por objecto um pedido de resolução de um litígio “emergente” de “relações jurídicas administrativas e fiscais” (nº 2 do artigo 212º da Constituição, nº 1 do artigo 1º e artigo 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais).
Como uniformemente se tem observado, nomeadamente no Tribunal dos Conflitos, a competência determina-se tendo em conta os “termos da acção, tal como definidos pelo autor — objectivos, pedido e da causa de pedir, e subjectivos, respeitantes à identidade das partes (cfr., por todos, os acórdãos de 28 de Setembro de 2010, www.dgsi.pt, proc. nº 023/09 e de 20 de Setembro de 2011, www.dgsi.pt, proc. n.º 03/11” – acórdão de 10 de Julho de 2012, www.dgsi.pt, proc. nº 3/12 ou, mais recentemente, o acórdão de 18 de Fevereiro de 2019, www.dgsi.pt, proc. n.º 12/19, quanto aos elementos objectivos de identificação da acção.
Disse-se no Acórdão do Tribunal dos Conflitos de 8 de Novembro de 2018, processo n.º 020/18: “como tem sido sólida e uniformemente entendido pela jurisprudência deste Tribunal de Conflitos, a competência dos tribunais em razão da matéria afere-se em função da configuração da relação jurídica controvertida, isto é, em função dos termos em que é deduzida a pretensão do autor na petição inicial, incluindo os seus fundamentos [por todos, AC STA de 27.09.2001, Rº47633; AC STA de 28.11.2002, Rº1674/02; AC STA de 19.02.2003, Rº47636; AC Tribunal de Conflitos de 02.07.2002, 01/02; AC Tribunal de Conflitos de 05.02.2003, 06/02; AC Tribunal de Conflitos de 09.03.2004, 0375/04; AC Tribunal de Conflitos de 23.09.04, 05/05; AC Tribunal de Conflitos 04.10.2006, 03/06; AC Tribunal de Conflitos de 17.05.2007, 05/07; AC Tribunal de Conflitos de 03.03.2011, 014/10; AC Tribunal de Conflitos de 29.03.2011, 025/10; AC Tribunal de Conflitos de 05.05.2011, 029/10; AC Tribunal de Conflitos de 20.09.2012, 02/12; AC Tribunal de Conflitos de 27.02.2014, 055/13; AC do Tribunal de Conflitos de 17.09.2015, 020/15; AC do Tribunal de Conflitos de 01.10.2015, 08/14].
A competência em razão da matéria é, assim, questão que se resolve em razão do modo como o autor estrutura a causa, e exprime a sua pretensão em juízo, não importando para o efeito averiguar quais deveriam ser os correctos termos dessa pretensão considerando a realidade fáctica efectivamente existente, nem o correcto entendimento sobre o regime jurídico aplicável - ver, por elucidativo sobre esta metodologia jurídica, o AC do Tribunal de Conflitos de 01.10.2015, 08/14, onde se diz, além do mais, que «o tribunal é livre na indagação do direito e na qualificação jurídica dos factos. Mas não pode antecipar esse juízo para o momento de apreciação do pressuposto da competência…»].”.

4. No caso dos autos, a autora alega, em síntese, ter cedido ao domínio público uma parcela do terreno de que é proprietária e legítima possuidora, destinada à criação de uma nova artéria viária, cedência essa que provocou um desmembramento físico do seu prédio e ocasionou o surgimento de uma parcela de terreno sobrante.
Mais alega que tal parcela (sobrante) é propriedade sua e tem vindo a ser utilizada por si sem oposição de quem quer que seja, de forma ininterrupta, à vista de toda a gente.
No entanto, no dia 22 de Abril de 2020, a ré (Junta de Freguesia), que sempre havia reconhecido o direito de propriedade da autora sobre a parcela, ocupou-a sem qualquer permissão da sua parte, iniciando a execução de uma obra (abatendo plátanos, removendo paralelepípedos e abrindo rasgos no solo).
Consequentemente, procedeu ao embargo extrajudicial da obra, intentando, posteriormente, procedimento cautelar destinado à ratificação do referido embargo.
Conclui que a relação jurídica em causa tem natureza privada. Todavia, quer a 1.ª, quer a 2.ª Instâncias entenderam que a relação material controvertida, tal como caracterizada pela autora, se inscreve na alínea i) do n.º 1 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, pois consideraram que se trata de uma situação destinada a obter uma “condenação à remoção de situação constituída em via de facto, sem título que a legitime” (al. i) do n.º 1 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, na redação resultante do Decreto-Lei n.º 214-A/2015, de 2 de Outubro), entendimento que se não acompanha.
É certo que, como se escreveu no acórdão do Tribunal dos Conflitos de 3 de Fevereiro de 2011 (proc. n.º 09/10, www.dgsi.pt ), “Não pode, com efeito, afirmar-se que o exercício da função administrativa se resume à prática de actos administrativos de autoridade. A actuação da Administração Pública compreende também actuações materiais e muitas delas não correspondem necessariamente à execução de um acto administrativo. Essas actuações não deixam de ter natureza administrativa pelo facto de se apresentarem sob a forma de simples operações materiais. O que é necessário é que estejam enquadradas nas funções legais da entidade respectiva. Só uma voie de fait – ou seja, uma actuação material totalmente à margem das atribuições e competências da ré – abriria caminho à competência dos tribunais comuns.
A natureza meramente material de um acto gerador de danos não é, portanto, suficiente para excluir a competência dos tribunais administrativos (…)”.

Neste acórdão estava em causa uma versão anterior do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais; seja como for, tendo em conta o pedido e a causa de pedir apresentadas, o caso dos autos reduz-se a uma acção de reivindicação – a autora pede que se reconheça o direito de propriedade que alega e que a ré restitua a parcela de terreno que indevidamente ocupou, invocando que adquiriu o direito por usucapião e que sempre beneficia “quer da presunção de titularidade derivada do registo predial, prevista no artigo 7º do Código de Registo Predial, quer da presunção de titularidade do direito de propriedade derivada da posse, prevista no artigo 1268º do Código Civil.”

5. Sobre questão idêntica à dos autos pronunciou-se recentemente o Acórdão do Tribunal dos Conflitos de 19 de Maio de 2021 (processo n.º 34/20, disponível em www.dgsi.pt):
Ora, tal como a A. a configura, estamos perante uma causa no âmbito dos direitos reais, já que a requerente alega factos que visam demonstrar a titularidade do seu direito de propriedade sobre o terreno em causa, que considera ter sido violado pelas requeridas. (…)
No mesmo sentido, escreveu-se no Acórdão do Tribunal dos Conflitos, de 23 de Maio de 2019, processo n.º 048/18, também disponível em www.dgsi.pt :
Sendo pacífico que a competência em razão da matéria é fixada em função do pedido e da causa de pedir, irrelevando, neste plano (Cf. entre muitos, os acórdãos deste Tribunal de 26.1.2017, preferido no proc. nº 052/14 e o acórdão proferido, também neste Tribunal, em 30.11.2017 no proc. nº 011/17, disponíveis em www.dgsi.pt),o juízo de prognose que se possa fazer relativamente ao mérito da causa, é de concluir que a relação material controvertida, tal como é caracterizada pelo autor, não se inscreve em nenhuma das alíneas do nº1, do art. 4º, do ETAF, muito particularmente na alínea i).Com efeito, a matéria alegada pelo autor visa, em primeira linha, alicerçar o pedido de reconhecimento do seu direito de propriedade sobre o imóvel e a condenação do R. na sua restituição. Por sua vez, o R. alega que o terreno em causa integra o domínio público, para, por esta via, justificar a ocupação. Estamos, assim, perante uma típica ação de reivindicação (cfr. art. 1311º do Cód. Civil), pelo que a competência para apreciar a pretensão do autor, cabe aos tribunais judiciais, e não à jurisdição administrativa (art. 64° do CPC). (Neste sentido, cf. o ac. deste Tribunal dos Conflitos, de 13.12.2018, proc. 43/18, disponível em www.dgsi.pt.)”.
Podem citar-se, ainda, os acórdãos igualmente do Tribunal dos Conflitos, ambos de 3 de Novembro de 2020: “Tal como se apresenta, deparamo-nos com uma causa no âmbito dos direitos reais já que a requerente alega factos que visam demonstrar a titularidade do seu direito de propriedade sobre o terreno em causa, excluir o mesmo direito por parte da requerida, invoca inclusive ter o prédio sido esbulhado (art. 49 do p.i.) e, em consequência, pede a condenação na restituição da sua posse. Acresce que a requerente refere o processo expropriativo apenas para explicar que a requerida adquiriu por essa via de duas parcelas de terreno desanexadas do prédio da requerente (cfr. art. 15.º da p.i.p). Ora, a jurisprudência deste Tribunal dos Conflitos tem, abundantemente, entendido que a competência para conhecer de acções em que se discutem direitos reais cabe apenas na esfera dos Tribunais Judiciais (cfr. Acs. de 30.11.2017, Proc. 011/17, de 13.12.2018, Proc. 043/18, de 23.05.2019, Proc. 048/18 e de 23.01.2020, Proc. 041/19, in www.dgsi.pt).” (www.dgsi.pt , processo n.º 056/19) ou
No presente conflito, que somos chamados a dirimir, está precisamente em causa saber se a nova alínea i), do art. 4º, nº 1, do ETAF abrange, ou não, as acções reais, como a dos autos, em que a controvérsia se centra no reconhecimento do direito de propriedade sobre o imóvel reivindicado, face à actuação de uma entidade administrativa alegadamente ofensiva do direito invocado pelo autor. Importa, consequentemente, trazer à colação o disposto no art. 9º do CC, onde se prescreve que a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada (nº1), não podendo, no entanto, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso (nº2). Atente-se ainda que, conforme se determina naquele dispositivo legal, "na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados" (nº3). Nesta tarefa interpretativa, partindo da letra da lei e tendo em conta quer o elemento histórico, quer o elemento racional ou teleológico, nos termos acima mencionados, afigura-se-nos que a norma em causa deve ser interpretada no sentido de apenas atribuir a competência aos tribunais administrativos para as acções em que apenas está em causa a remoção de actuações ilegais da Administração. Já nos casos em que esteja em discussão a titularidade do direito de propriedade sobre o imóvel em questão, a título principal (e não como questão incidental), a competência continua a caber à jurisdição comum. (…) Tal como se apresenta, deparamo-nos com uma causa no âmbito dos direitos reais já que aquela alega factos que visam demonstrar a titularidade do seu direito de propriedade sobre o terreno em causa, excluindo o direito por parte da ré a realizar obras naquele sem sua autorização e, em consequência, pede, além do mais, a condenação na restituição da sua posse. Ora, a jurisprudência deste Tribunal dos Conflitos tem, abundantemente, entendido que a competência para conhecer de acções em que se discutem direitos reais cabe apenas na esfera dos Tribunais Judiciais (cfr. Acs. de 30.11.2017, Proc. 011/17, de 13.12.2018, Proc.º 043/18, de 23.05.2019, Proc. 048/18 e de 23.01.2020, Proc. 041/19, consultáveis in www.dgsi.pt e o muito recente de 25.06.2020, Proc. 31/19 e jurisprudência nele indicada, no qual estava igualmente em causa um pedido indemnizatório). (www.dgsi.pt, processo n.º 07/20).

É esta jurisprudência que se reitera.


6. Conclui-se, assim, que a competência para apreciar a relação controvertida, balizada pelo pedido e pelas causas de pedir definidos pela autora, cabe aos tribunais judiciais.
Concede-se, portanto, provimento ao recurso, revogando-se o acórdão recorrido e julgando-se que o Tribunal competente para conhecer da ação em causa é o Juízo Local Cível de Guimarães (artigos 70.º, n.º 1, do Código de Processo Civil e 130.º, n.º 1 da Lei de Organização do Sistema Judiciário, a Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto).

Sem custas (art. 5.º nº 2, da Lei n.º 91/2019, de 4 de Setembro).

Lisboa, 2 de Dezembro de 2021. - Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (relatora) - Henrique Araújo - Teresa de Sousa.