Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:011/19
Data do Acordão:11/07/2019
Tribunal:CONFLITOS
Relator:LOPES DA MOTA
Sumário:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
Nº Convencional:JSTA000P25140
Nº do Documento:SAC20191107011
Data de Entrada:02/04/2019
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE A COMARCA DE FARO - PORTIMÃO - INST. CENTRAL - 2ª SECÇÃO CÍVEL - E O TAF DE LOULÉ.
RECORRENTE: IGREJA B………..
RECORRIDO: CONDOMÍNIO ………, ……… E OUTRO.
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Conflito n°: 11/19.
ACÓRDÃO

Acordam no Tribunal de Conflitos:

I. Relatório

1. A………., na qualidade de administrador do “Condomínio ……..,……”, por petição apresentada em 22 de Junho de 2016, propôs na Secção Cível da Instância Local de Portimão, Comarca de Faro, acção declarativa de condenação sob a forma de processo ordinário contra “B……. - Igreja …………..” e “C…….. -” pedindo a condenação destas a (1) proceder ao encerramento do estabelecimento de culto religioso numa fracção do prédio, (2) proceder à retirada de um reclame luminoso da fachada do prédio e (3) no pagamento da quantia de 286.720,00 euros a título de indemnização aos condóminos por prejuízos causados.

2. Em substância, fundamenta os pedidos, no essencial e em síntese, nos seguintes termos:

- A ré B……… está instalada na fracção “A” do prédio urbano sito no Largo ………, em Portimão, de que é proprietária a sociedade “D……….., SA”, e locatária a ré C…….., por cessão da posição contratual num contrato de locação financeira inicialmente celebrado com a “Sociedade E…………., Lda.” que, entretanto, cedera a sua posição contratual à sociedade “Supermercados …………, Lda.”;

- Na sequência da celebração, em 30 de Janeiro de 2008, de um contrato promessa de sub-locação com a “Supermercados ………….., Lda.”, a ré B………. passou a ocupar a fracção do imóvel em 3 de Março de 2008, destinando-o ao culto religioso e a obras de acção social;

- Esta fracção, de acordo com a sua afectação inicial, pelo contrato de locação com a “E……….” e pela licença camarária de utilização, destinava-se a comércio, nomeadamente a armazenagem e distribuição de bebidas, estando-lhe vedado qualquer outro uso;

- Tal fracção não poderia ser utilizada para outra finalidade sem que houvesse autorização da proprietária “D……..”, sem que os condóminos o permitissem e sem que houvesse licença camarária;

- Não tendo o consentimento da proprietária nem dos condóminos, as rés fizeram grandes obras sem licença, incluindo a instalação de grandes torres de ar condicionado, e abriram as portas, dando a B…….. início às suas actividades naquela data;

- Com a sua conduta, a ré B…….. vem causando, desde então, grandes incómodos aos condóminos do prédio, pondo em risco a saúde destes e das sua famílias e os seus direitos à reserva da vida privada, à habitação, ao silêncio, ao descanso, à segurança e à qualidade de vida, legal e constitucionalmente protegidos;

- Em caso de edifício em propriedade horizontal, a utilização de fracção destinada a outros fins para fins religiosos depende de acordo da maioria dos condóminos, nos termos do artigo 29.º, n.º 1, da Lei da Liberdade Religiosa (Lei n.º16/2001, de 22 de Junho), o qual nunca foi concedido;

- A utilização da fracção do imóvel para uso diverso do fim a que está destinada constitui violação do disposto na alínea c) do n.º 2 do artigo 1422.º do Código Civil;

- Para além disso, a ré B…….. procedeu à colocação de um reclame luminoso na fachada do prédio, que constitui parte comum, sem autorização dos condóminos, recusando a sua remoção apesar das insistências da administração do condomínio, na sequência de deliberações da assembleia de condóminos.

3. Citada, a ré B…….. apresentou contestação em que, para além do mais, alegou a incompetência absoluta dos tribunais comuns para conhecimento da acção, com o argumento de que, visando-se decisões proferidas pela Câmara Municipal de Portimão que autorizou a alteração do uso da fracção e a colocação do reclame luminoso, a apreciação do litígio está deferida aos tribunais da jurisdição administrativa, nos termos do artigo 4.º, n.º 1, aI. i), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF).

4. Na procedência da excepção dilatória, por despacho de 13 de Outubro de 2016, o juiz do processo julgou o tribunal cível da comarca de Faro incompetente em razão da matéria para conhecimento da acção, absolvendo os réus da instância.

5. Transitada a decisão em julgado, o autor veio requerer a remessa do processo, com aproveitamento dos actos processuais praticados, ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé, nos termos do n.º 2 do artigo 99.° do Código de Processo Civil (CPC).

6. O processo foi remetido ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé em 16 de Janeiro de 2017.

7. Porém, por decisão de 31 de Janeiro de 2018, a juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé declarou esse tribunal materialmente incompetente para apreciar a questão em litígio, absolvendo as rés da instância.

8. Não se conformando com o decidido, a ré B…….. interpôs recurso para o Tribunal Central Administrativo Sul, a que foi negado provimento por acórdão de 22 de Novembro de 2018 confirmando a decisão recorrida.

9. Nos termos do artigo 111.°, n.º 1, do CPC, ex vi artigo 140.°, n.º 3, do CPTA, o Tribunal Central Administrativo Sul suscita oficiosamente a resolução do conflito de competência ao Presidente deste Tribunal de Conflitos.

10. Recebido neste Tribunal, foi o processo com vista ao Ministério Público, tendo o senhor Procurador-Geral Adjunto emitido parecer em que conclui que “o conhecimento e julgamento da presente acção, assim configurada pelo A., é claramente da competência dos tribunais judiciais, por não ser da competência específica dos tribunais administrativos - contrariamente ao decidido pela Instância Central de Portimão e conforme decidido pelo TAF de Loulé e, em confirmação deste, pelo TACS”.

Cumpre, pois, apreciar e decidir.

II. Fundamentação

12. O presente conflito emerge de uma divergência de perspectiva de análise dos tribunais em conflito quanto à configuração da presente acção.

13. Considera o tribunal judicial de Portimão que “segundo a configuração da presente acção feita pelo autor fica preenchida a previsão da alínea i) do n.º 1 do artigo 4.º do estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, pelo que a competência para conhecer do litígio pertence aos tribunais administrativos e fiscais, no caso o Tribunal Administrativo do Círculo de Loulé”. Refere em particular, na argumentação de suporte a esta conclusão, o regime da liberdade religiosa, notando que esta “goza de um específico regime, vinculando entidades públicas e privadas, pelo que a sua restrição só pode ser feita através da lei, quando tal seja necessário, adequado e proporcional a salvaguardar (outros) direitos ou interesses constitucionalmente protegidos (...). É, pois, neste contexto que surge a lei da Liberdade Religiosa, que estabelece as condicionantes do exercício dessa actividade e a intervenção das autoridades administrativas na parte em que está sujeita a regulamentação, cabendo aos tribunais administrativos averiguar do cumprimento dessas condicionantes, da regularidade de actuação das entidades públicas e da colisão desse direito com outros direitos também fundamentais, como o direito à saúde e ao sossego, que também aqui são invocados.” “Noutro plano”, acrescenta, “o autor coloca em crise a actuação da Câmara Municipal de Portimão, que através de decisões baseadas em documentação falsa e insuficiente, acolheram as pretensões da primeira ré, matéria a nosso ver claramente do foro administrativo”.

14. Por sua vez, o Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) de Loulé considera que “a relação, tal como vem configurada pelo A., não pode ser qualificada como uma relação jurídica administrativa, mas tão só uma relação jurídica do foro privado, atentas as partes do processo, o seu fundamento e o pedido”, pelo que a competência para conhecer e decidir do litígio não pertence aos tribunais administrativos e fiscais. Assim considera também o Tribunal Central Administrativo (TCA) Sul, ao conhecer e decidir pela improcedência do recurso da decisão do TAF, dizendo nomeadamente: “Tal como vem configurada a PI, o presente litígio não envolve uma relação jurídica administrativa, mas uma relação jurídica privada. Apenas se quer demandar um condómino que faz um uso da sua fracção, que fez obras na fracção e que colocou um reclame luminoso, sem autorização do condomínio, ou da maioria dos condóminos, quando tal autorização era exigível. Porque esse comportamento provocou danos aos restantes condóminos é pedida uma indemnização civil. O direito invocado a título principal é o direito privado - a violação de várias regras do Código Civil relativas à obrigação de uso das fracções e às exigências de autorização do condomínio ou da maioria dos condóminos. O direito público que acompanha tais invocações visa apenas confirmar essa alegação do A., infirmando as invocações do R. B…….. de que o seu comportamento foi legal, porque faz um uso da fracção e aí fez obras dentro da legalidade.” Quando aos argumentos relacionados com o regime da liberdade religiosa, entende o TCA que se trata de “alegações que não transfiguram o essencial da causa de pedir, que se mantém em termos dominantes como relativa a uma relação jurídico-privada. Aqueles argumentos, relacionados com a liberdade de culto e a legalidade urbanística face aos licenciamentos camarários, não são o cerne do litígio, ou o litígio dominante, mas apenas algo residual, que deve ser conhecido a título incidental”.

15. Constitui jurisprudência firme, reflectindo entendimento consensual, a de que a competência do tribunal se afere em função da configuração da relação jurídica controvertida, isto é, em função dos termos em que é deduzida a pretensão do autor na petição inicial, incluindo os seus fundamentos. Como se afirma no recente acórdão de 08.11.2018 (conflito n.º 20/18, em www.dgsi.pt) “a competência em razão da matéria é, assim, questão que se resolve em razão do modo como o autor estrutura a causa e exprime a sua pretensão em juízo, não importando para o efeito averiguar quais deveriam ser os correctos termos dessa pretensão considerando a realidade fáctica efectivamente existente, nem o correcto entendimento sobre o regime jurídico aplicável - ver, por elucidativo sobre esta metodologia jurídica, o Ac. do Tribunal de Conflitos de 01.10.2015, 08/14, onde se diz, além do mais, que «o tribunal é livre na indagação do direito e na qualificação jurídica dos factos. Mas não pode antecipar esse juízo para o momento de apreciação do pressuposto da competência...»” (assim, acórdão de 14.2.2019, no conflito n.º 31/18).

16. O sistema judicial é constituído por várias categorias ou ordens de tribunais autónomas, em que se incluem os tribunais judiciais e os tribunais administrativos e fiscais (artigo 209.º, n.º 1, al. a) e b), da Constituição). Nos termos do n.º 1 do artigo 209.º, os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras, ordens judiciais, estabelecendo o n.º 3 do artigo 212.º que compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.

Projectam-se estas disposições da lei fundamental nas leis de organização e competência de cada uma destas ordens de tribunais.

17. Nos termos do 40.º da lei de organização do sistema judiciário (Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto), que dispõe sobre competência em razão da matéria, os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.

Nos termos do artigo 1.º, n.º1, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de Outubro, compete aos tribunais da jurisdição administrativa administrar a justiça nos litígios compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no artigo 4.º do mesmo Estatuto.

Com a explicitação do n.º 2 e com a expressa exclusão dos litígios a que se referem os n.º 3 e 4, o n.º 1 do artigo 4.º do ETAF delimita o âmbito da jurisdição administrativa nos seguintes termos:

“1 - Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a:

a) Tutela de direitos fundamentais e outros direitos e interesses legalmente protegidos, no âmbito de relações jurídicas administrativas e fiscais;

b) Fiscalização da legalidade das normas e demais atos jurídicos emanados por órgãos da Administração Pública, ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal;

c) Fiscalização da legalidade de atos administrativos praticados por quaisquer órgãos do Estado ou das Regiões Autónomas não integrados na Administração Pública;

d) Fiscalização da legalidade das normas e demais atos jurídicos praticados por quaisquer entidades, independentemente da sua natureza, no exercício de poderes públicos;

e) Validade de atos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes;

f) Responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público, incluindo por danos resultantes do exercício das funções política, legislativa e jurisdicional, sem prejuízo do disposto na alínea a) do n.º 4 do presente artigo;

g) Responsabilidade civil extracontratual dos titulares de órgãos, funcionários, agentes, trabalhadores e demais servidores públicos, incluindo ações de regresso;

h) Responsabilidade civil extracontratual dos demais sujeitos aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas coletivas de direito público;

i) Condenação à remoção de situações constituídas em via de facto, sem título que as legitime;

j) Relações jurídicas entre pessoas coletivas de direito público ou entre órgãos públicos, reguladas por disposições de direito administrativo ou fiscal;

k) Prevenção, cessação e reparação de violações a valores e bens constitucionalmente protegidos, em matéria de saúde pública, habitação, educação, ambiente, ordenamento do território, urbanismo, qualidade de vida, património cultural e bens do Estado, quando cometidas por entidades públicas;

l) Impugnações judiciais de decisões da Administração Pública que apliquem coimas no âmbito do ilícito de mera ordenação social por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo;

m) Contencioso eleitoral relativo a órgãos de pessoas coletivas de direito público para que não seja competente outro tribunal;

n) Execução da satisfação de obrigações ou respeito por limitações decorrentes de atos administrativos que não possam ser impostos coercivamente pela Administração;

o) Relações jurídicas administrativas e fiscais que não digam respeito às matérias previstas nas alíneas anteriores.”

18. A recondução da situação à previsão da alínea i) deste preceito requer a verificação de dois elementos: que exista um “litígio”, isto é, um conflito concreto de interesses apresentado à consideração do tribunal, nos termos exigidos pela lei processual aplicável, por pessoa que se considere titular do interesse juridicamente tutelado, com vista à justa composição desses interesses, e que (2) tal conflito (litígio) tenha por objecto questões relativas a “condenação à remoção de situações constituídas em via de facto, sem título que as legitime”.

O tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a acção pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra ou outras partes no conflito sejam devidamente chamadas para deduzir oposição (artigo 3.° do Código de Processo Civil). Pelo que, na petição, com que propõe a acção, deve o autor, para além do mais, identificar as partes, expor os factos essenciais que constituem a causa de pedir e as razões de direito que lhe servem de fundamento e formular o pedido (artigo 552.º).

O mesmo sucede no caso de se pretender de obter a condenação da Administração à adopção das condutas necessárias ao restabelecimento de direitos ou interesses violados, incluindo em situações de via de facto, desprovidas de título que as legitime, que constitui competência do tribunal administrativo, por via de acção administrativa (artigos 2.º, n.º 2, al. i), 37.º, n.º 1, al. i), e 78.º, n.º 1, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos).

19. A “via de facto” a que se refere a al. i) do artigo 4.º do ETAF corresponde a situações em que a Administração, na execução de uma actividade material (de facto), comete uma violação grosseira do direito de propriedade do cidadão (ou de uma liberdade fundamental) (assim, Jorge Pação, in Comentários à revisão do ETAF e do CPTA, coord. Carla Amado Gomes et alii, AAFDL Editora, Lisboa, 2016, p. 192).

Com as alterações introduzidas no ETAF pelo Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 2 de Outubro, a condenação à remoção de situações constituídas em via de facto, sem título que as legitime, é agora da competência dos tribunais administrativos. Como se explicita no ponto 9 do preâmbulo deste diploma, “no que respeita ao ETAF, clarificam-se, desde logo, os termos da relação que se estabelece entre o artigo 1.º e o artigo 4.º, no que respeita à determinação do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal, e, por outro lado, dá-se mais um passo no sentido, encetado pelo actual ETAF, de fazer corresponder o âmbito da jurisdição aos litígios de natureza administrativa e fiscal que por ela devem ser abrangidos. Neste sentido, estende-se o âmbito da jurisdição administrativa e fiscal às acções de condenação à remoção de situações constituídas pela Administração em via de facto, sem título que as legitime (...)” (cfr. também a Lei n.º 100/2015, que concedeu autorização legislativa à edição deste diploma e a Proposta de Lei n.º 331/XII, que lhe esteve na origem, in DAR II-A, de 19.5.2015).

Na síntese daquele mesmo autor, “caem por terra as duas principais razões históricas, e hoje já largamente ultrapassadas, que sustentavam a sua atribuição à jurisdição comum: a consideração de que as actuações materiais subjacentes à via de facto perdem a sua administratividade pelo facto de constituírem graves condutas contrárias ao direito administrativo; e a visão de que cabe apenas aos tribunais judiciais a resolução de litígios que envolvam questões atinentes ao direito de propriedade dos particulares”.

20. Na tese do tribunal judicial de Portimão, os factos descritos na petição configurariam uma situação constituída em “via de facto” por estar em causa uma actividade da ré B…….. ou uma utilização, por esta, de uma fracção do prédio para essa actividade sem licença da Câmara Municipal e por essa actividade dizer respeito à aplicação da lei da liberdade religiosa que estabelece as condicionantes ao respectivo exercício e a intervenção das autoridades administrativas na parte em que está sujeita a regulamentação, cabendo aos tribunais administrativos averiguar do cumprimento dessas condicionantes, da regularidade de actuação das entidades públicas e da colisão desse direito com outros direitos também fundamentais, bem como por o autor colocar em crise a actuação da Câmara Municipal que acolheu a pretensão da primeira ré.

21. A constituição de situações resultantes de “via de facto”, para efeitos de atribuição de competência aos tribunais administrativos requer, todavia, como se viu, que a Administração actue na execução de uma actividade material com violação grosseira do direito de propriedade, a qual, como se evidencia da petição e da fundamentação da decisão do tribunal judicial de Portimão, não vem alegada. O que está em causa é uma actividade de culto religioso levada a efeito pela ré B…….., com alegada falta de licença camarária, o que, na argumentação da autora, apenas vem invocado como elemento destinado a, conjuntamente com a falta de consentimento dos condóminos, demonstrar a pretensão de ver cessada tal actividade, sendo irrelevante no que diz respeito à fundamentação dos demais pedidos.

22. Acresce que, sendo a liberdade de religião um direito fundamental reconhecido pelo sistema internacional de protecção dos direitos humanos, nomeadamente pelo artigo 9.° da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH), constitucional e legalmente garantido (artigos 41.º da Constituição e 1.° da Lei n.º 16/2001, de 22 de Junho), que não admite restrições senão as que se mostrem necessárias, numa sociedade democrática, à segurança pública, à protecção da ordem, da saúde e moral públicas, ou à protecção dos direitos, e liberdades de outrem (artigos 9.°, n.º 2, da CEDH, 18.º, n.º 2, da Constituição e 6.º da Lei n.º 16/2001), não se questiona na presente acção qualquer facto relacionado com restrição ilegal ao exercício do direito imposta pela Administração, mas apenas a que resulta da necessidade de consentimento dos condóminos no caso previsto no artigo 29.° da Lei n.º 16/2001. Dispõe este preceito que, sem prejuízo dos direitos de estes recorreram a juízo nos termos gerais (n.º 2), havendo acordo do proprietário, ou da maioria dos condóminos no caso de edifício em propriedade horizontal, a utilização para fins religiosos do prédio ou da fracção destinados a outros fins não pode ser fundamento de objecção, nem da aplicação de sanções, pelas autoridades administrativas ou autárquicas, enquanto não existir uma alternativa adequada à realização dos mesmos fins.

A petição não contém qualquer pedido dirigido à Administração ou a qualquer outra autoridade pública por litígio resultante de actividades restritivas do direito à liberdade de religião.

23. A situação de facto descrita na petição inicial configura um conflito (litígio) entre o condomínio ou entre condóminos e as rés no que diz respeito à alegada afectação de uma fracção do edifício constituído em propriedade horizontal a fins diferentes daqueles a que esta fracção se encontrava afectada e ao exercício de actividades excluídas desses fins, a que os autores pretendem pôr termo, bem como à remoção de um reclame luminoso alegadamente colocado em parte comum de tal edifício e ao ressarcimento de prejuízos causados pelas rés por lesão de direitos individuais.

Na configuração que lhe é dada pelo autor, a causa de pedir e os pedidos formulados emergem de relações de direito privado estabelecidas entre as partes no processo, sujeitos de direito privado, em resultado da constituição do prédio em propriedade horizontal e de alegados danos emergentes de responsabilidade civil extra-contratual, reguladas pelo direito civil (artigos 1420.º e segs. e 483.º e segs. do Código Civil). Como se diz no acórdão do TCA Sul, “apenas se quer demandar um condómino que faz um uso da sua fracção, que fez obras na fracção e que colocou um reclame luminoso, sem autorização do condomínio, ou da maioria dos condóminos, quando tal autorização era exigível. Porque esse comportamento provocou danos aos restantes condóminos é pedida uma indemnização civil. O direito invocado a título principal é o direito privado - a violação de várias regras do Código Civil relativas à obrigação de uso das fracções e às exigências de autorização do condomínio ou da maioria dos condóminos.”

24. Assim sendo, não se verificando o caso previsto na alínea i) do n.º 1 do artigo 4.° do ETAF, nem qualquer outro que se possa compreender na previsão das, restantes alíneas deste mesmo preceito, que permitam submeter o litígio ao âmbito da jurisdição administrativa (artigo 1.°, n.º 1, do mesmo diploma), e sendo da competência dos tribunais judiciais conhecer e decidir das causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional, resulta concluir-se que a resolução do conflito se deve obter pelo reconhecimento e declaração da competência do tribunal judicial.

III. Decisão

Pelo exposto, acorda-se em resolver o presente conflito negativo de jurisdição declarando ser competente para o conhecimento da acção o tribunal judicial da comarca de Faro.

Sem custas.

Lisboa, 7 de Novembro de 2019. – José Luís Lopes da Mota (relator) – Maria Benedita Malaquias Pires Urbano – Maria de Fátima Morais Gomes – José Augusto Araújo Veloso – António Manuel Clemente Lima – José Francisco Fonseca da Paz.