Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:016/14
Data do Acordão:09/10/2014
Tribunal:CONFLITOS
Relator:MELO LIMA
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO.
COMPETÊNCIA DOS TRIBUNAIS JUDICIAIS.
RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL.
DIREITO REAL.
Sumário:*
Nº Convencional:JSTA00068896
Nº do Documento:SAC20140910016
Data de Entrada:03/13/2014
Recorrente:MINISTÉRIO PÚBLICO NO CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO ENTRE A 1 VARA DE COMPETÊNCIA MISTA DE GUIMARÃES E O TAF DE BRAGA
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:CONFLITO
Objecto:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO 1 VARA COMPETÊNCIA MISTA GUIMARÃES - TAF BRAGA.
Decisão:DECL COMPETENTE 1 VARA COMPETENCIA MISTA GUIMARÃES.
Área Temática 1:DIR ADM CONT - CONFLITO JURISDIÇÃO.
Legislação Nacional:CONST76 ART209 N3 ART211 N1 ART212 N3.
ETAF02 ART1 N1 ART4 N1 F G.
CPC96 ART27 ART64 ART467 N1 C ART498 N4.
CPC13 ART552 N1 D ART554 N1 ART581 N3 N4.
CCIV66 ART1284 ART1315.
CPTA02 ART10.
LOFTJ99 ART18 N1 N2.
L 52/08 DE 2008/08/28 ART26 N1 N2.
DL 59/99 DE 1999/03/02.
DL 239/04 DE 2004/12/21.
Referência a Doutrina:GOMES CANOTILHO E VITAL MOREIRA - CONSTITUIÇÃO DA REPUBLICA PORTUGUESA ANOTADA VOLII 4ED PAG566-567.
ANSELMO DE CASTRO - DIREITO PROCESSUAL CIVIL DECLARATÓRIO ALMEDINA 1981 VOLI PAG201-208.
MANUEL DE ANDRADE - NOÇÕES ELEMENTARES DE PROCESSO CIVIL COIMBRA EDITORA 1963 PAG297.
ALBERTO DOS REIS - CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL ANOTADO VOLIII PAG106-107.
FERNANDES CADILHA - DICIONÁRIO DE CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO 2007 PAG115.
VIEIRA DE ANDRADE - A JUSTIÇA ADMINISTRATIVA 6ED PAG457.
MÁRIO AROSO DE ALMEIDA E CARLOS ALBERTO FERNANDES CADILHA - COMENTÁRIO AO CÓDIGO DE PROCESSO NOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS 2005 PAG80-82.

Aditamento:
Texto Integral: Acordam em conferência no Tribunal de Conflitos:
I RELATÓRIO
1. i) A……………… e ii) B……………….. instauraram, pelas Varas Mistas da Comarca de Guimarães, ação declarativa com processo comum e forma ordinária, contra: i) IEP, INSTITUTO DAS ESTRADAS DE PORTUGAL; ii) AENOR-AUTOESTRADAS DO NORTE; iii) C………………, D…………………. — OTIMIZAÇÃO DOS MEIOS PARA A CONSTRUÇÃO DO LOTE 5.1 DA AUTO ESTRADA A7 ACE; iv) E………………., S.A. pedindo:
a) O reconhecimento aos AA. do direito de servidão de aproveitamento das águas e de aqueduto, em relação às águas armazenadas nas poças e nas proporções referidas no artigo 8º do Peticionado, e delas conduzidas para o prédio dos AA.;
b) A condenação dos RR. na realização das obras necessárias à restituição aos AA. do direito de aproveitamento das águas, de forma a que lhes seja assegurado o aproveitamento das mesmas para irrigação durante o ano inteiro, de todo o seu prédio, ou, subsidiariamente a pagar aos AA. a quantia de € 50.000,00, a título de compensação pelos prejuízos resultantes da desvalorização do prédio com a perda definitiva de rendimentos futuros; e
c) A condenação dos RR. no pagamento aos AA. da quantia de € 2.000,00, a título de indemnização pelos prejuízos sofridos pelos AA. nos anos 2003 a 2006, da atividade agrícola não desenvolvida no mesmo prédio, em consequência da perda absoluta do aproveitamento, bem como acrescida dos juros legais a contar da citação e ainda nas custas e procuradoria condigna.

2. Alegaram para tanto, em síntese:
2.1 Os AA. são donos e legítimos proprietários de um prédio rústico situado no lugar de ……….., freguesia de …………….., concelho de Guimarães, adquirido por compra e venda, outorgada em escritura de 9 de maio de 1975, com registo da aquisição na respetiva conservatória do Registo Predial.
2.2 Tal prédio rústico — concretamente, as verbas números seis a treze, que o integravam - era irrigado pelas águas da Poça do Amieiral e da Poça da Trebolha, conduzidas através de vários prédios para o prédio dos AA, por dois regos térreos de consorte distintos, tendo-se constituído, por usucapião, uma servidão de aproveitamento daquelas águas e de aqueduto a favor do prédio dos AA.
2.3 Em 2003, iniciou-se a construção da Auto-Estrada A7/IC5 — Guimarães/Fafe, cujo traçado, no sublanço SELHO/CALVOS, confina, na parte inferior do lado norte-nascente com o prédio dos AA.
2.4 O projeto foi concedido pelo IEP, INSTITUTO DAS ESTRADAS DE PORTUGAL à AENOR-AUTO-ESTRADAS DO NORTE, que entregou a obra à C………………….., D………………….. — OTIMIZAÇÃO DOS MEIOS PARA A CONSTRUÇÃO DO LOTE 5.1 DA AUTO ESTRADA A7 ACE que, de sua vez, se encontra segurada pela E…………………., S.A.
2.5 Com aquela construção e as terraplanagens levadas a cabo pela C……………….., D…………………, ao Km 6 + 819 e ao Km 10 + 550, os regos por onde circulavam as águas (2.2) ficaram aterrados, impedindo desta forma o trajeto da água para o prédio dos AA., que dela ficaram privados.
2.6 Em virtude da inexistência de outros meios de captação de água no prédio, estão os AA. privados do seu uso desde 2003, sem que no mesmo pudessem ter desenvolvido qualquer atividade agrícola. Por via do que,
2.7 Deverão os RR. realizar as obras necessárias à restituição aos AA. do direito ao aproveitamento das águas e do aqueduto ou, subsidiariamente, pagar aos AA. a quantia de € 50.000,00 a título de compensação pelos prejuízos resultantes da desvalorização do prédio com a perda definitiva de rendimentos futuros;
2.8 Deverão, ainda, pagar aos AA., a título de perda de rendimentos, resultantes do não exercício de qualquer atividade agrícola, durante os anos de 2003 a 2006, a quantia de € 2.000,00.

3. No desenvolvimento do processo instaurado [Nº 529/06.7TCGMR], foi proferida decisão judicial a declarar a incompetência em razão da matéria invocada pelo R. IEP, INSTITUTO DAS ESTRADAS DE PORTUGAL, sendo os RR. absolvidos da instância.
Esta decisão transitou em julgado, em 13 de fevereiro de 2008. [Fls. 4 a 28]

4. Em face da antedita decisão, A………………. e B………………… intentaram, no Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, Ação Administrativa Comum, sob a forma ordinária, contra i) IEP, INSTITUTO DAS ESTRADAS DE PORTUGAL; ii) AENOR-AUTO-ESTRADAS DO NORTE; iii) C……………………, D…………………. — OTIMIZAÇÃO DOS MEIOS PARA A CONSTRUÇÃO DO LOTE 5.1 DA AUTO ESTRADA A7 ACE; iv) E…………………., S.A., com peticionado idêntico ao deixado transcrito 1., alíneas a), b) e c).

4. Na prolação do despacho saneador, em 23 de setembro de 2013, [Proc. Nº 633/08.7BEBRG], foi declarado incompetente, em razão da matéria, o Tribunal Administrativo e Fiscal e, consequentemente, absolvidos os RR da instância.
Esta decisão transitou em julgado em 23 de outubro de 2013. [Fls. 29>38]

5. Ao abrigo do disposto nos Artigos 109º, 110º e 111º, todos do Código de Processo Civil (CPC), o Exmo. Procurador-Geral Adjunto requereu, em 13 de março de 2014, neste Tribunal dos Conflitos, a resolução do conflito negativo de jurisdição entre a 1ª Vara de Competência Mista de Guimarães e o Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga.

6. Distribuído o projeto pelos Exmos. Adjuntos, é altura de decidir.
7. Sendo que, a questão decidenda reconduz-se a saber e definir qual das jurisdições em confronto — administrativa ou civil comum — é a competente.
II Conhecendo.

1. Suscitada uma questão de conflito (in casu, negativo) de competência entre tribunais, impõe-se ter presente, em primeira linha, o ordenamento judiciário que fundamentará o âmbito da discussão e, a final, o sentido da decisão.
Consabidamente, a lei jusfundamental consagrou o princípio da pluralidade de jurisdições, ou dizer a existência de diferentes categorias de tribunais sob um critério de repartição de competências de modo que as funções judiciais são atribuídas a vários órgãos enquadrados em jurisdições diferenciadas e independentes entre si.
É assim, que a Constituição da República se, por um lado, dispõe no art. 211º nº 1 que «Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais», acrescentando no nº 2 do mesmo dispositivo, que «Na primeira instância pode haver tribunais com competência específica e tribunais especializados para o julgamento de matérias determinadas», dispõe, por outro, no art. 212°, n.º 3, que «compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir litígios emergentes de relações administrativas e fiscais».
Já no âmbito da lei ordinária, o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais [ETAF], aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 29 de fevereiro, se, num primeiro momento, define numa fórmula ampla que «Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais» (Art. 1º/1), enumera, depois, por mera indicação do objeto (sic, “nomeadamente”), os litígios cuja apreciação lhes compete. [Art. 4º nº 1 als. a) a n)]
Pari passu, na assunção daquele papel residual dos Tribunais Judiciais decorrente da antedita norma constitucional, a Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (Lei n.º 3/99, de 13 de janeiro) [LOFTJ] ora dispõe que «São da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional» (De igual modo, o art. 64º do CPC), ora «determina a competência em razão da matéria entre os tribunais judiciais, estabelecendo as causas que competem aos tribunais de competência específica» [Art.18º/1 e 2; Vide, ainda: Lei n.º 52/2008, de 28 de Agosto, Art. 26º/1 e 2]
Voltando à Lei Fundamental, impõe-se ter presente que logo aí se previne a existência de conflitos de competência: «A lei determina os casos e as formas em que os tribunais previstos nos números anteriores se podem constituir, separada ou conjuntamente, em tribunais de conflitos» (Art. 209º/3)
Subjaz ao presente processo uma questão de conflito negativo de competência, vale dizer, um conflito de jurisdição em que dois tribunais — 1ª Vara de Competência Mista de Guimarães e Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga-, integrados em ordens jurisdicionais diferentes, declinam o poder de conhecer da mesma questão, sendo certo que sobre uma e outra decisões, adrede proferidas, ocorreu o trânsito em julgado.
Integrando-se aquela 1ª Vara de Competência Mista na categoria dos Tribunais Judiciais, logo no aludido âmbito residual, importará realçar a função que compete e distingue o Tribunal Administrativo.
Reproduzindo o texto constitucional, o ETAF atribui-lhe o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.
Punctum saliens, a referência às relações jurídico-administrativas (ou fiscais).
Ponto relativamente ao qual julga-se pertinente lembrar, aqui, os ensinamentos de Gomes Canotilho e Vital Moreira:
«Esta qualificação transporta duas dimensões caraterizadoras: (1) as ações e recursos incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos, um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão de poder público (especialmente da administração); (2) as relações jurídicas controvertidas são reguladas, sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo ou fiscal. Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza “privada” ou “jurídico-civil”. Em termos positivos, um litígio emergente de relações jurídico-administrativas e fiscais será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal (cfr. ETAF, art. 4º)
O conceito de relações jurídico-administrativas deve ser entendido neste contexto como uma referência à possibilidade de alargamento da jurisdição administrativa a outras realidades diversas das tradicionais formas de atuação (ato, contrato e regulamento), complementando aquele critério. Pretende-se, com o recurso a este conceito genérico, viabilizar a inclusão na jurisdição administrativa do amplo leque de relações bilaterais e poligonais, externas e internas, entre a Administração e as pessoas civis e entre entes da Administração, que possam ser reconduzidas à atividade de direito público, cuja caraterística essencial reside na prossecução de funções de direito administrativo, excluindo-se apenas as relações jurídicas de direito privado. Trata-se de um conceito suficientemente dúctil e flexível para enfrentar os desafios do “novo direito administrativo”, mas que não pode deixar de ser entendido como complementar da tradicional dogmática das formas de atuação administrativa.» (CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA ANOTADA, Vol. II, 4ª Edição Revista, Coimbra Editora, págs. 566-567 [Negrito e sublinhado do Relator])

2. As decisões objeto de apreciação
2.1 – 1ª Vara de Competência Mista de Guimarães
Destacam-se como pontos relevantes na fundamentação da decisão, aqui proferida, as seguintes transcrições:
• «[n]o que à causa de pedir importa, o fundamento da pretensão reconduz-se à responsabilidade civil das RR/demandadas, em razão da causação de danos pela construção da obra designada por A7/IC 5 — Lanço Guimarães-Fafe, assegurada pelas Estradas de Portugal, por via da concessão à R. AENOR... e executada pelas demais RR..»

• «A determinação do tribunal materialmente competente.... deve partir da análise da estrutura da relação jurídica material submetida à apreciação e julgamento do tribunal, segundo a versão apresentada em juízo pelo A., i.e, tendo em conta… pedido e causa de pedir.»
• «[a] causa de pedir em que a A. baseia o pedido traduz-se essencialmente em atividade de execução de um acordo de concessão e execução/construção de vários lanços de auto-estrada e conjuntos viários de empreitada e subempreitada (de obras públicas) celebrado(s) em execução daquele acordo de concessão, cuja realização (da obra em que se concretiza a empreitada) foi causadora de estragos no seu prédio..»
«Trata-se, assim, de uma situação de responsabilidade civil extracontratual manifestamente conexa com as referidas relações jurídicas administrativas...»
• «No artigo 4º do ETAF, estabelece-se o âmbito da jurisdição administrativa e fiscal.
No atual ETAF (Art. 4º nº 1 al. f)), não estão excluídos da jurisdição administrativa os recursos e ações que tenham por objeto questões de direito privado, ainda que qualquer das partes seja pessoa de direito público.»
• «[o] art.4º nº 1 al. f) abrange todos os casos de responsabilidade civil extra contratual da Administração “independentemente de se tratar de danos resultantes de atos de gestão pública de gestão privada” (neste sentido, avulta não apenas o elemento histórico de interpretação, visto que essa possibilidade é expressamente mencionada na exposição de motivos, como o elemento literal, dado que a alínea g) do nº 1 deixou de fazer qualquer distinção entre atos de gestão pública e atos de gestão privada) e ainda, “as ações de responsabilidade civil extracontratual de sujeitos privados, aos quais seja aplicável o regime especifico da responsabilidade do Estado e demais pessoas coletivas públicas” [FERNANDES CADILHA, Dicionário de Contencioso Administrativo, 2007, pág. 115]
• «[i]mportaria saber se, em face do teor da petição, a relação jurídica estabelecida entre as partes, designadamente pelas RR, se reconduz à atividade de um serviço público administrativo.
Ora a EP - Estradas de Portugal (Através do DL nº 239/2004, de 21 de dezembro..., o Instituto das Estradas de Portugal (IEP), foi transformado em entidade pública empresarial, com a denominação de EP — Estradas de Portugal, E.P.E.) é uma entidade pública empresarial, sujeita ao poder de superintendência e de tutela do Ministro das Obras Públicas, Transportes e Comunicações e aos poderes de tutela conjunta dos Ministros das Finanças e da Administração Pública e das Obras Públicas, Transportes e Comunicações, sendo ela quem representa o Estado como autoridade nacional de estradas em relação às infra-estruturas rodoviárias concessionadas e não concessionadas (arts. 7º e 8º do DL nº 239/2004, de 21 de dezembro), pelo que, dado o caráter público desta entidade, podemos concluir, segundo o critério estatutário (que combina sujeitos, fins e meios), que estamos perante uma relação jurídica pública (vd. José Carlos Vieira de Andrade no Manual “A Justiça Administrativa”, 6ª Edição, p. 57).»
· «Demanda, aqui, a A. a Estradas de Portugal, EPE, na qualidade de responsável pela concessão da obra de construção da auto-estrada (enquanto modo de lograr a execução da obra, tarefa legalmente atribuída) e a AENOR — Auto Estradas do Norte, SA, na qualidade de concessionária e dona da obra de construção, de que terão resultado eventuais danos para si.
Nos termos da lei, incluem-se no objeto da EP — Estradas de Portugal, E.P.E.: a) Assegurar a conceção, a construção, a conservação e a exploração da rede rodoviária nacional; b)...; c) Exercer, de acordo com as orientações do Governo, os poderes e as faculdades do concedente previstos nos contratos de concessão e zelar pela qualidade das infra-estruturas concessionadas assegurando a execução das respetivas obrigações contratuais; d)...; e)....; f) Assegurar a fiscalização, o acompanhamento e a assistência técnica nas fases de execução de empreendimentos rodoviários e zelar pela sua qualidade técnica e económica, em todas as fases de execução; g)...; h)...; i)...; j)....
No âmbito das funções caraterizadas nas alíneas a), c) e f) se inscreve a construção da rodovia em causa.
Razão pela qual, tal como os AA alicerçam os seus pedidos, a atividade da 1ª R., na realização de uma função e poder públicos (...) mediante um acordo de concessão e a posterior adjudicação às demais firmas da empreitada “pública” (com poderes de controlo da execução da obra, conforme da lei resulta, para a 1ª R.), não pode deixar de se considerar emergente de ato de gestão pública....»
• «A questão (gestão pública/gestão privada) seria relevante..., caso a ação tivesse sido instaurada antes de 01.01.2004, data da entrada em vigor do novo ETAF...»
• «[n]os termos do estatuído na al.f) do citado art. 4º, nº 1, do ETAF em vigor, compete aos Tribunais de jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objeto questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e da função legislativa.
A partir da entrada em vigor da citada lei, todas a ações por responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público são da competência dos tribunais administrativos.
Aliás, das “Linhas Gerais da Reforma do Contencioso Administrativo” (...) deduz-se explicitamente que tenha sido esse um dos objetivos da reforma, pois aí se deixa expressa a seguinte afirmação:
«...o ETAF também atribui competência aos tribunais da jurisdição administrativa para apreciarem todos os pedidos indemnizatórios fundados em responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas públicas, eliminando o atual critério delimitador da natureza pública ou privada do ato de gestão que gera o pedido, causador de grandes incertezas na determinação do tribunal competente...».
• «No caso decidendo, dado o caráter evidentemente público do demandado Estradas de Portugal — E.P.E., podemos concluir, segundo o critério estatutário (que combina sujeitos, fins e meios), que estamos perante uma relação jurídica pública (...) acrescendo a integração da atividade em causa (a construção de estradas) no âmbito estatutário do organismo público em apreço, com o que (fica) caraterizada uma evidente função pública administrativa.»
• «Por fim, tendo em consideração que as obras públicas podem ser executadas por empreitada, concessão ou administração direta (art. 1º, nº 2 do DL nº 59/99, de 2 de março) e que por essa razão se encontra nestes autos, no lado passivo e em litisconsórcio voluntário (art. 27º do C. Processo Civil), empreiteiros e concessionária (bem como Companhias Seguradoras), resta agora saber se este tribunal será competente para apreciar do mérito da ação relativamente a estas partes. Ainda aqui se dirá que não. E isso desde logo porque, como preceitua o art. 10º do Código de Processo dos Tribunais Administrativos (C.P.T.A.), «Cada ação deve ser proposta contra a outra parte da relação material controvertida e, quando for caso disso, contra as pessoas ou entidades titulares de interesses contrapostos aos do A.» - nº 1 -, podendo «(...) ser demandados particulares ou concessionários, no âmbito de relações administrativas que os envolvam com entidades públicas ou com outros particulares» - nº 7.
É que, como refere José Carlos Vieira de Andrade «(...) é legítima a atração para os tribunais administrativos da resolução global do litígio, alargada aos aspetos de direito privado, seja para prevenir dúvidas, seja para evitar a duplicidade de processos, independentemente da manutenção de uma diferença de regimes jurídicos aplicáveis.»
• «De todo o modo, o âmbito da previsão e estatuição do art. 10º, nº 7 do CPTA envolve o litisconsórcio voluntário passivo emergente de responsabilidade solidária ou conjunta extracontratual ou contratual da entidade pública e de uma entidade particular (Mário Aroso de Almeida/Carlos Cadilha, Comentário ao CPTA, Coimbra, 2005, págs. 80 a 82).»

2.2 O Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga.
Argumenta do seguinte modo:

• «Os pedidos dos AA, de condenação dos RR a reconhecer os AA como detentores de um direito de servidão de aproveitamento de águas e aquedutos armazenadas nas poças, nas proporções indicadas, e delas conduzidas para o prédio dos proprietários descrito na sua petição inicial; restituição aos AA do direito de aproveitamento das águas para irrigação durante o ano inteiro em todo o seu prédio…, todas estas pretensões dos AA assentam no invocado direito de propriedade do seu prédio e direito de servidão de aproveitamento de águas integrado no seu prédio...»
• «...por causa da violação deste (surgem) inequívocas questões cíveis relativas a matéria exclusivamente cível.»
• «Nestes autos, a relação jurídica prevalecente é a relação jurídica de natureza cível, só surgindo a questão da responsabilidade como derivada da questão cível…»
• «Se a ação é possessória e nela se pede além da restituição da coisa, no presente caso, a restituição da água na medida do direito dos AA, a condenação do R. a indemnizar, a acumulação é aparente, por haver, apenas, uma pretensão — a entrega da coisa — de cuja procedência resulta necessariamente o direito à indemnização, de acordo com o disposto no artigo 1284º do Código Civil. Trata-se, pois, de um único pedido embora complexo.»
• «A responsabilidade extracontratual que se pretende apurar não surge conectada com qualquer relação jurídica administrativa mas antes com uma relação de direito privado — existência de um direito de propriedade ou seu equivalente, pedido do seu reconhecimento, condenação à abstenção de quaisquer atos que obstem ao seu exercício e, finalmente, condenação a indemnizar pelos danos causados.»
• «Assim, porque a relação jurídica em causa...não se enquadra no artigo 1º, nº 1 ou em qualquer das alíneas do art. 4º, nº 1 do ETAF, uma vez que as pretensões formuladas radicam no direito real invocado pelos AA, sendo a responsabilidade por facto ilícito imputada à Administração, questão derivada ou consequente da questão do direito de servidão ao aproveitamento de águas, esta sim, a questão prevalecente ou dominante da relação jurídica destes autos, a competência material para decidir a presente ação cabe ao tribunal judicial ...»

3. Quid iuris?

3.1 É entendimento comum, na doutrina como na jurisprudência, que a competência (ou a iuris dictio) de um tribunal se determina pela forma como o autor configura a acção, sendo definida pelo respetivo objecto, tal como se mostra delimitado pelo petitum formulado e pela respetiva causa petendi.

3.1.1 No que ao primeiro concerne, deverá o pedido ser entendido como o efeito jurídico que se pretende obter com a ação (581º/3NCPC), ou, nas palavras de Anselmo de Castro, como «O círculo dentro do qual o tribunal se tem de mover para dar solução ao conflito de interesses que é chamado a decidir» (Dto. Proc. Civil Declaratório, Almedina, Coimbra, 1981, Vol.I, 201)

A partir da ideia de que «pedido é a enunciação da forma de tutela jurisdicional pretendida pelo autor e do conteúdo e objeto do direito a tutelar» (Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, Lda, 1963, p. 297), dir-se-á com A. dos Reis, que «a providência jurisdicional solicitada pelo autor deve entender-se, não em termos abstratos, mas nos termos positivos e concretos definidos na petição inicial, com referência portanto ao direito que se pretende fazer valer e à incidência material desse direito» ( CPC Anotado, III, 106-107).

Se bem se ajuíza, importará, ainda, introduzir, aqui, a distinção feita por Anselmo de Castro entre objecto imediato e objecto mediato, pelas ilações que da mesma se colhem.
Transcreve-se:

“Por pedido (…..) tanto se pode entender as providências concedidas pelo juiz através das quais é atuada determinada forma de tutela jurídica (condenação, declaração, etc), ou seja, a providência que se pretende obter com a ação; como os meios através dos quais se obtém a satisfação do interesse à tutela, ou seja, a consequência jurídica material que se pede ao tribunal para ser reconhecida.

O primeiro, é o objeto imediato; o segundo, é o objeto mediato.»

«Para determinar o petitum concorrem ambos os aspetos, embora o objeto imediato contribua em menor escala que o objeto mediato. Assim, nem sempre a não identidade do objeto imediato da ação importará a não identidade da ação para todo e qualquer efeito em que tal identidade releve, embora não deixe de relevar para alguns deles”.

E acrescenta:

“Embora a lei o não diga, parece que deve adoptar-se, aqui, uma orientação semelhante àquela que em direito privado vigora para a determinação do exacto conteúdo dos contratos: basta que as partes tenham conhecimento do efeito prático, embora careçam da representação do efeito jurídico. Por outras palavras, o que interessará não é o efeito jurídico que as partes formulem, mas sim o efeito prático que pretendem alcançar; o objecto mediato deve entender-se como o efeito prático que o Autor pretende obter e não como a qualificação jurídica que dá à sua pretensão” (Ob. cit. págs. 202 e 203)

3.1.2 A respeito da causa petendi, a partir da norma ínsita no artigo 498º/4 da lei adjetiva civil, identificava-a M. Andrade com «o ato ou facto jurídico (...) donde o Autor pretende ter derivado o direito a tutelar; o ato ou facto jurídico que ele aduz como título aquisitivo desse direito» (Ob. cit. P.297)
Anselmo de Castro, de sua vez, ensinava que «a causa de pedir aparece-nos..., como o elemento causal do poder de ação e, ao mesmo tempo, como algo de composto, na medida em que concorrem para a sua integração vários elementos.»

Distinguia a existência de dois conceitos de causa de pedir: (i) segundo a teoria da individualização ou da individuação, a causa de pedir identificar-se-ia com a relação jurídica material, ou as relações jurídicas legitimadoras da pretensão; (ii) de acordo com a teoria da substanciação, a causa de pedir seria o próprio facto jurídico genético do direito, ou seja, o acontecimento concreto, correspondente a qualquer “fattispecie” jurídica que a lei admita como criadora de direitos, abstração feita da relação jurídica que lhe corresponda.

Entendia aquele mestre de Coimbra que o CPC/1939 consagrava a teoria da substanciação, mas acabava por concluir pela consagração na lei de «conceitos diversos de causa de pedir: causa de pedir referida a factos concretos (para efeitos do caso julgado) e causa de pedir referida a categorias factuais abstratas (no que toca à alteração superveniente da causa de pedir e litispendência)», pelo que, aconselhava, «Não deve..., partir-se de uma noção única preconcebida de objeto do litígio e de causa de pedir».

Independentemente da opção por uma ou outra teorias, retém-se, aqui e agora, daquele mesmo mestre, a chamada de atenção para as ações reais, em que, conforme consagração legal, «a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito real» (Art. 498º/4 CPC/39; 581º/4NCPC).

Se tinha por certo que, logo na P.I., o Autor teria de expor «os factos e as razões de direito que servem de fundamento à ação» (art.467º, nº 1, al. c) CPC/39) (Art. 552º, nº 1, al. d) do NCPC: «Expor os factos essenciais que constituem a causa de pedir e as razões de direito que servem de fundamento à ação»), ou seja «de fazer a indicação dos factos concretos constitutivos do direito, não se podendo limitar à indicação da relação jurídica abstrata», não deixava ele de explicitar que:

«nas ações reais o facto jurídico (de que deriva o direito real) não é simplesmente o ato translativo da propriedade para o autor da ação. Por definição, a ação real, de que é paradigma a reivindicação, supõe que nenhum vínculo pessoal liga o réu ao autor, por força do qual, e independentemente de a propriedade da coisa pertencer ou não ao autor, lhe incumba a obrigação de a restituir ou entregar. Sendo assim, o ato translativo em si mesmo não é título que se imponha ao réu, mas somente na medida em que com os atos translativos anteriores, e em última análise por posse conducente à prescrição, portanto posse durante o prazo necessário, invistam o autor no direito de propriedade ou domínio invocados.

Sempre na prática judicial foi presente intuitivamente esta ideia, não havendo ação de reivindicação que se não fundamente sempre, em última análise, na aquisição da propriedade pela prescrição e não apenas no ato translativo.» (Ob. cit., I, 204 a 208)

3.2 É na divergente apreciação desta questão fundamental, relativamente à natureza e objecto da acção efectivamente proposta, que radica o dissídio das instâncias administrativa e civil comum, sobre o tema da competência material: enquanto a 1ª Vara Cível de Guimarães perspetivou o objeto da ação como situado ainda no plano da responsabilidade subjetiva, extracontratual ou aquiliana,

[«O que a demandante pretende no confronto dos RR é a sua condenação solidária na realização de obras de reparação das regas de água e/ou no pagamento de determinada quantia a título de indemnização.
Assim, o causa de pedir em que a A. baseia o pedido traduz-se essencialmente em atividade de execução de um acordo de concessão e execução/construção de vários lanços de auto-estrada e conjuntos viários de empreitada e subempreitada (de obras públicas) celebrado(s) em execução daquele acordo de concessão, cuja realização (da obra em que se concretiza a empreitada) foi causadora de estragos no seu prédio...»
«Trata-se, assim, de uma situação de responsabilidade civil extracontratual manifestamente conexa com as referidos relações jurídicas administrativas...»]
diferentemente, o Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga identifica o objeto da ação com a questão da reivindicação de propriedade privada de água por parte dos AA

[«Os pedidos dos AA, de condenação dos RR a reconhecer os AA como detentores de um direito de servidão de aproveitamento de águas e aquedutos armazenadas nas poças, nas proporções indicadas, e delas conduzidas para o prédio dos proprietários descrito na sua petição inicial; restituição aos AA do direito de aproveitamento das águas para irrigação durante o ano inteiro em todo o seu prédio, …, todas estas pretensões dos AA assentam no invocado direito de propriedade do seu prédio e direito de servidão de aproveitamento de águas integrado no seu prédio…»].

Dizer: enquanto ali, prevalece a questão indemnizatória, no âmbito da responsabilidade extracontratual, aqui, prevalece a questão real de reivindicação.

Atalhando caminho, acompanha-se a fundamentação decorrente do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga.

3.2.1 Deixou-se referido que a competência de um tribunal se determina pela forma como o autor configura a acção, sendo definida pelo respetivo objecto, tal como se mostra delimitado pelo petitum formulado e pela respetiva causa petendi.
Primeiro elemento identificador, o pedido.
Dizer, a enunciação da forma de tutela jurisdicional pretendida pelo autor e do conteúdo e objeto do direito a tutelar.
In casu, qual a tutela jurisdicional solicitada ao tribunal?
Reza a final do peticionado:
«a) O reconhecimento aos AA. do direito de servidão de aproveitamento das águas e de aqueduto, em relação às águas armazenadas nas poças e nas proporções referidas no artigo 8º do Peticionado, e delas conduzidas para o prédio dos AA.;

b) A condenação dos RR. na realização das obras necessárias à restituição aos AA. do direito de aproveitamento das águas, de forma a que lhes seja assegurado o aproveitamento das mesmas para irrigação durante o ano inteiro, de todo o seu prédio, ou, subsidiariamente a pagar aos AA. a quantia de € 50.000,00, a título de compensação pelos prejuízos resultantes da desvalorização do prédio com a perda definitiva de rendimentos futuros; e

c) A condenação dos RR. no pagamento aos AA. da quantia de € 2.000,00, a título de indemnização pelos prejuízos sofridos pelos AA. nos anos 2003 a 2006, da atividade agrícola não desenvolvida no mesmo prédio, em consequência da perda absoluta do aproveitamento, bem como acrescida dos juros legais a contar da citação e ainda nas custas e procuradoria condigna.»

Manifestamente, a pretensão formulada pelos AA, (i) seja no sobredito sentido do objeto imediato — ou dizer, as providências concedidas pelo juiz através das quais é atuada determinada forma de tutela jurídica (condenação, declaração, etc), ou dizer ainda, a providência que se pretende obter com a ação — tendo em vista a obtenção duma iuris dictio que lhes reconheça o direito de servidão de aproveitamento das águas e de aqueduto, em relação às águas armazenadas nas poças e nas proporções referidas no artigo 8º do peticionado e delas conduzidas para o prédio dos AA; (ii) seja no sentido do objeto mediato — ou dizer a consequência jurídica material que se pede ao tribunal para ser reconhecida -, traduzida, in casu, na formulada pretensão de condenação dos RR a realizar as obras necessárias à restituição aos AA do direito de aproveitamento das águas, de forma a que lhes seja assegurado o aproveitamento das mesmas para irrigação durante o ano inteiro, de todo o seu prédio, não constituem senão a pretensão última dos AA, o interesse primacial que visam obter com o recurso aos meios judiciais.

Manifestamente, pois, uma ação judicial visando a defesa de um direito real (Art. 1315º do Código Civil).

Não se olvida que o peticionado inclui um pedido de indemnização de € 50.000,00.

Todavia, um pedido subsidiário. Dizer: «apresentado ao tribunal para ser tomado em consideração somente no caso de não proceder um pedido anterior» (554º/1 NCPC), mais concretamente, na específica referência ao caso sob apreço, tomando em linha de consideração uma eventual impossibilidade prática de reposição da situação anterior e a consequente «perda definitiva de rendimentos futuros» (Art. 38º da P.I.).

Pedido subsidiário que, a ter de ser conhecido, nunca determinaria a quebra da competência fixada por força do objeto determinante da ação, apenas podendo determinar uma extensão daquela competência.

Não se olvida, pari passu, um outro pedido de indemnização de € 2.000,00 «pelos prejuízos sofridos pelos AA. nos anos de 2003 a 2006, da atividade agrícola não desenvolvida no mesmo prédio, em consequência da perda absoluta do aproveitamento»

Subscreve-se a fundamentação a este propósito aduzida na decisão que acompanhamos e que de novo se transcreve:

«Se a ação é possessória e nela se pede além da restituição da coisa, no presente caso, a restituição da água na medida do direito dos AA, a condenação do R. a indemnizar, a acumulação é aparente, por haver, apenas, uma pretensão — a entrega da coisa — de cuja procedência resulta necessariamente o direito à indemnização, de acordo com o disposto no artigo 1284º do Código Civil. Trata-se, pois, de um único pedido embora complexo.»

«Assim, não é na ação de reivindicação, no sentido de reconhecimento do direito dos AA à água de que foram cerceados, onde o pedido de indemnização assume natureza autónoma.»

«A responsabilidade extracontratual que se pretende apurar não surge conectada com qualquer relação jurídica administrativa mas antes com uma relação de direito privado — existência de um direito de propriedade ou seu equivalente, pedido do seu reconhecimento, condenação à abstenção de quaisquer atos que obstem ao seu exercício e, finalmente, condenação a indemnizar pelos danos causados.»

3.2.2 Segundo elemento identificador, a causa petendi.

Relembram-se, aqui, os ensinamentos de Anselmo de Castro acima transcritos:

«nas ações reais o facto jurídico (de que deriva o direito real) não é simplesmente o ato translativo da propriedade para o autor da ação»; o ato translativo em si mesmo não é título que se imponha ao réu, mas somente na medida em que com os atos translativos anteriores, e em última análise por posse conducente à prescrição, portanto posse durante o prazo necessário, invistam o autor no direito de propriedade ou domínio invocados. Sempre na prática judicial foi presente intuitivamente esta ideia, não havendo ação de reivindicação que se não fundamente sempre, em última análise, na aquisição da propriedade pela prescrição e não apenas no ato translativo

A pretensão dos AA era, como vai referido, o reconhecimento do direito de servidão de aproveitamento das águas e de aqueduto, em relação às águas armazenadas nas poças e nas proporções referidas no artigo 8º da PI e delas conduzidas para o prédio dos AA.
Lendo o articulado inicial — Fls. 39 a 47 — sai notoriamente comprovada a preocupação pela fundamentação na aquisição da propriedade e do direito de servidão pela prescrição.

Os AA. invocam o título translativo da escritura pública relativamente aos prédios adquiridos por compra e venda, bem assim , o respetivo registo da aquisição na Conservatória do Registo Predial. Mas logo no que concerne à reclamada servidão de aproveitamento das águas não deixam de observar a liturgia da usucapião, como deflui dos artigos 19º a 32º do Peticionado.

De forma clara, impõe-se concluir que também com referência à causa de pedir, esta torna óbvia a identificação da ação como uma ação real.

De sorte que, na atenção aos pedidos formulados e à causa de pedir, fica de todo excluída a invocação do regime constante quer da citada alínea f), quer da alínea g) do art. 4º do ETAF.

Relembrando Gomes Canotilho e Vital Moreira: (i) com o recurso ao conceito genérico de relações jurídico-administrativas, pretendeu-se viabilizar a inclusão na jurisdição administrativa do amplo leque de relações bilaterais e poligonais, externas e internas, entre a Administração e as pessoas civis e entre entes da Administração, que possam ser reconduzidas à atividade de direito público, cuja caraterística essencial reside na prossecução de funções de direito administrativo, excluindo-se apenas as relações jurídicas de direito privado, (ii) sendo certo que “em termos positivos, um litígio emergente de relações jurídico-administrativas e fiscais será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal”.
In casu: a ação proposta, o seu fundamento essencial e os pedidos nela formulados são típicos de processos que correm e cabem aos tribunais comuns (visando obter o reconhecimento do direito de servidão de aproveitamento das águas e de aqueduto, a restituição do bem e a indemnização pelos prejuízos sofridos pela indevida ocupação/destruição), não envolvendo manifestamente a sua resolução a convocação e aplicação de quaisquer regimes de direito público.

Termos em que se resolve o conflito de jurisdição, considerando competente, em razão da matéria, a jurisdição comum para o conhecimento da ação proposta.
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III DECISÃO

Termos em que acordam os juízes do Tribunal dos Conflitos em resolver o conflito negativo de jurisdição, considerando que a mesma cabe aos Tribunais Comuns e atribuindo à 1ª Vara de Competência Mista de Guimarães a competência material para os ulteriores termos da ação.

Sem custas, ex vi art. 96º do Decreto n.º 19 243, de 16-01-1931.

Lisboa, 10 de Setembro de 2014. – Joaquim Maria Melo de Sousa Lima (relator) – Carlos Luís Medeiros de Carvalho – Mário Belo Morgado – Vítor Manuel Gonçalves Gomes – Ana Paula Lopes Martins Boularot – Alberto Acácio de Sá Costa Reis.