Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:03/21
Data do Acordão:10/18/2021
Tribunal:CONFLITOS
Relator:TERESA DE SOUSA
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
CONTRATO DE EMPREGO-INSERÇÃO
ACIDENTE
TRIBUNAIS JUDICIAIS
Sumário:I - O acidente sofrido por trabalhador, a exercer funções de cantoneiro para uma Junta de Freguesia, no âmbito de um contrato emprego-inserção, no tempo e local do trabalho prestado, deve ser considerado como acidente de trabalho, nos termos dos arts. 3º, 8º e 9º, da Lei nº 98/2009, de 4/9.
II - Nos termos do disposto no art. 4º, nº 4, alínea b) do ETAF, incumbe aos Tribunais Judiciais a competência para conhecer do processo visando a reparação dos danos resultantes de tal acidente.
Nº Convencional:JSTA000P28318
Nº do Documento:SAC2021101803
Data de Entrada:01/21/2021
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE SANTARÉM – JUÍZO DO TRABALHO DE SANTARÉM - JUIZ 2 E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE LEIRIA
AUTOR: A...............
RÉU: UNIÃO DAS FREGUESIAS DE SANTARÉM E B.............., S.A.
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Conflito nº: 3/21

Acordam no Tribunal dos Conflitos

1. Relatório
A………….. intentou no Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, Juízo do Trabalho de Santarém, acção contra a União das Freguesias de Santarém e Companhia de Seguros B…………, para a qual tinha sido transferida a responsabilidade, emergente de acidente de trabalho que sofreu quanto executava trabalhos de cantoneiro, por ordem e conta daquela autarquia, com a qual celebrara um contrato de emprego-inserção+ ao abrigo da Portaria n.º 128/2009, de 30 de Janeiro.
O Juízo do Trabalho de Santarém julgou-se incompetente em razão da matéria para conhecer do objecto da acção.
Remetidos os autos ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria (TAF de Leiria), este também se julgou incompetente em razão da matéria para apreciar e decidir a acção.
Suscitado oficiosamente a resolução do conflito no TAF de Leiria, foi o processo remetido ao Tribunal dos Conflitos.
Neste Tribunal dos Conflitos as partes, notificadas para efeitos do disposto no n.º 3 do artigo 11.º. da Lei n.º 91/2019, nada disseram.
A Exma. Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de dever ser atribuída a competência material para apreciar a presente acção aos tribunais judiciais.
Cumpre decidir.
Em síntese o A alega que sofreu um acidente no exercício da prestação de trabalho executada ao abrigo do Contrato emprego–inserção+ celebrado a União das Freguesias de Santarém, no âmbito da Portaria 128/2009, de 30 de Janeiro, dele resultando danos dos quais se pretende ver ressarcido.
O presente conflito negativo de jurisdição vem suscitado entre o Juízo do Trabalho de Santarém e o TAF de Leiria por ambos se terem considerado materialmente incompetentes para apreciar o pedido do autor.
Entendeu o Juízo do Trabalho de Santarém, na sentença proferida em 15.09.2020, que «Os contratos celebrados nos termos da Portaria n.º 128/2009, de 30 de Janeiro, com as alterações introduzidas pelas Portarias n.º 294/2010, de 31 de maio, n.º 164/2011, de 18 de abril, n.º 378-H/2013, de 31 de dezembro, n.º 20-B/2014, de 30 de janeiro, no âmbito, da "Medida Contrato Emprego-Inserção+" visam que os desempregados inscritos nos centros de emprego e beneficiários de rendimento social de inserção desenvolvam trabalho socialmente necessário, isto é, realizem atividades que satisfaçam necessidades sociais ou coletivas temporárias prestadas em entidades pública ou privadas sem fins lucrativos.
Este contrato confere ao autor o direito a receber da entidade empregadora, com comparticipação do IEFP, uma "bolsa de ocupação mensal de montante igual ao Indexante dos Apoios Sociais", alimentação, pagamento de despesas de transporte e um seguro de acidentes pessoais que cubra os riscos que possam ocorrer durante e por causa do exercício das atividades integradas no projeto de trabalho socialmente necessário.
Perante o quadro normativo aplicável, impõe-se concluir que entre as partes não existiu uma relação de trabalho subordinado pela qual o autor se tenha comprometido a prestar, sob a direção da ré, uma atividade produtiva mediante o pagamento de uma retribuição.
Não se configurando que entre as partes tenha existido um contrato de trabalho e também se não enquadrando a relação entre as partes estabelecida nas categorias previstas nas diversas alíneas do n.º 1, do artigo 126.º da Lei n.º 62/2013 de 26/08, tem que se concluir que juízo do Trabalho é incompetente em razão da matéria para conhecer da causa.
A competência para o seu conhecimento cabe aos tribunais administrativos, como decorre dos artigos 4.º, n.º 1 da Lei n.º 13/2012, de 19 de fevereiro
Por sua vez, o TAF de Leiria, no despacho de 09.12.2020, decidiu com fundamento na jurisprudência do Tribunal dos Conflitos que «Face à natureza do contrato celebrado entre o autor e a sua entidade empregadora, conclui-se que o mesmo consubstancia um contrato de trabalho, nos termos gerais e não instituiu um vínculo de emprego público.
A natureza pública da entidade empregadora ou mesmo a circunstância de os destinatários do programa serem beneficiários do subsídio de inserção social não retira a natureza de direito privado ao contrato de trabalho.
Não tendo o autor, enquanto trabalhador, um vínculo para o exercício de funções públicas, seja através de nomeação ou de contrato de trabalho em funções públicas, o acidente em causa nos autos não pode ser qualificado como acidente em serviço, nos termos admitidos no decreto-lei n.º 503/99, de 20.11 e, em consequência, a competência para apreciação do litígio está excluída da competência dos tribunais administrativos, nos termos previstos no artigo 4.º, n.º 4, al. d), do ETAF».

Assim, a questão suscitada nos autos é a de saber qual a jurisdição competente quando está em causa um acidente sofrido por um trabalhador no âmbito de execução de um “contrato emprego-inserção+”.
Questão que já foi apreciada pelo Tribunal dos Conflitos, por diversas vezes, sendo uniforme a posição assumida (cfr. Acórdãos do Tribunal dos Conflitos nº 15/17, de 19.10.2017, nº 53/17, de 25.01.2018, nº 40/18, de 31.01.2019, nº 42/18, de 28.02.2019, nº 15/19, de 30.01.2019 e nº 37/19, de 6.02.2019, 50/2029, 51/2019, 52/2019 de 25.06.2020, nº 44/19, de 03.11.2020, n.º 8/20, de 27.04.2021 e n.º 31/20, de 08.07.2021).
O âmbito da jurisdição dos tribunais judiciais é constitucionalmente definida por exclusão, sendo-lhe atribuída em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais (art. 211º, nº 1, da CRP).
Por seu turno, a jurisdição dos tribunais administrativos e fiscais é genericamente definida pelo n.º 3 do art. 212.º da C.R.P., em que se estabelece que «compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.
A competência dos tribunais administrativos e fiscais é concretizada no art. 4.º do ETAF, com delimitação do “âmbito da jurisdição” mediante uma enunciação positiva (n.ºs 1 e 2) e negativa (n.ºs 3 e 4). Deste último preceito importa reter o disposto na alínea b) do nº 4 que excluí do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal os litígios “decorrentes de contratos de trabalho, ainda que uma das partes seja uma pessoa coletiva de direito público, com exceção dos litígios emergentes do vínculo de emprego público”.
O “contrato emprego-inserção+” insere-se no regime jurídico do Rendimento Social de Inserção criado pela Lei n.º 13/2003, de 21/5, fazendo parte do programa de inserção previsto naquele regime. A Portaria n.º 128/2009, de 20/1 “regulamenta as medidas 'Contrato emprego-inserção' e 'Contrato emprego-inserção+', através das quais é desenvolvido trabalho socialmente necessário” (cfr. art. 1.º).
Da celebração do contrato emprego-inserção+ não decorre o estabelecimento de qualquer vínculo de trabalho em funções públicas nos termos da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas (LTFP).
Efectivamente, o art. 6.º da LTFP (Lei n.º 35/2014, de 20.06), prevê as modalidades de prestação de trabalho em funções públicas que se traduzem no vínculo de emprego público e no contrato de prestação de serviço. E, conforme o nº 3 deste preceito, as modalidades do vínculo de emprego público são o contrato de trabalho em funções públicas, a nomeação e a comissão de serviço. Por sua vez, o art. 10.º dispõe que “O contrato de prestação de serviço para o exercício de funções públicas é celebrado para a prestação de trabalho em órgão ou serviço sem sujeição à respetiva disciplina e direção, nem horário de trabalho” e o n.º 2 que as suas modalidades são o contrato de tarefa e o contrato de avença.
Ora, o DL n.º 503/99, de 20/11 (regime jurídico dos acidentes em serviço e das doenças profissionais no âmbito da Administração Pública) determina no seu artigo 2.º que “O disposto no presente decreto-lei é aplicável a todos os trabalhadores que exercem funções públicas, nas modalidades de nomeação ou de contrato de trabalho em funções públicas, nos serviços da administração directa e indirecta do Estado” (n.º 1) e que “O disposto no presente decreto-lei é também aplicável aos trabalhadores que exercem funções públicas nos serviços das administrações regionais e autárquicas e nos órgãos e serviços de apoio do Presidente da República, da Assembleia da República, dos tribunais e do Ministério Público e respectivos órgãos de gestão e de outros órgãos independentes” (n.º 2). Ao que acresce que “O disposto no presente decreto-lei é ainda aplicável aos membros dos gabinetes de apoio quer dos membros do Governo quer dos titulares dos órgãos referidos no número anterior” (n.º 3).
Por outro lado, nos termos do nº 4, “Aos trabalhadores que exerçam funções em entidades públicas empresariais ou noutras entidades não abrangidas pelo disposto nos números anteriores é aplicável o regime de acidentes de trabalho previsto no Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto, devendo as respectivas entidades empregadoras transferir a responsabilidade pela reparação dos danos emergentes de acidentes de trabalho nos termos previstos naquele Código”.
Por sua vez, de acordo com o n.º 5, “O disposto nos números anteriores não prejudica a aplicação do regime de protecção social na eventualidade de doença profissional aos trabalhadores inscritos nas instituições de segurança social”. Por último, dispõe o n.º 6 que “As referências legais feitas a acidentes em serviço consideram-se feitas a acidentes de trabalho”.
Assim, não pode o acidente em apreço considerar-se abrangido pelo regime jurídico dos acidentes em serviço e das doenças profissionais no âmbito da Administração Pública.
Já a Lei n.º 98/2009, de 4/9, que regulamenta o regime de reparação de acidentes de trabalho e de doenças profissionais, prevê de forma ampla o seu âmbito de aplicação no que respeita a acidentes de trabalho e é parte integrante do regime do contrato de trabalho consagrado no Código do Trabalho. O art. 284.º deste Código remete a regulamentação da prevenção e reparação de acidentes de trabalho e doenças profissionais para “legislação específica”, que é justamente a Lei n.º 98/2009.
Na situação em apreço, a relação estabelecida entre a União das Freguesias de Santarém e o trabalhador cabe na previsão normativa do art. 3.º, de acordo com a qual “O regime previsto na presente lei abrange o trabalhador por conta de outrem de qualquer actividade, seja ou não explorada com fins lucrativos” (nº 1) e “Quando a presente lei não impuser entendimento diferente, presume-se que o trabalhador está na dependência económica da pessoa em proveito da qual presta serviços” (nº 2).
E que de acordo com o n.º 3 do referido preceito: “Para além da situação do praticante, aprendiz e estagiário, considera-se situação de formação profissional a que tem por finalidade a preparação, promoção e actualização profissional do trabalhador, necessária ao desempenho de funções inerentes à actividade do empregador”.
A entidade por conta de quem o trabalho é prestado é obrigada a transferir a responsabilidade pela reparação prevista na Lei n.º 98/2009 para “entidades legalmente autorizadas a realizar este seguro”, conforme o art. 79.º, n.º 1.
O acidente em causa nos autos é susceptível de ser considerado como um acidente de trabalho, nos termos dos arts. 3.º, 8.º e 9.º, da Lei n.º 98/2009, de 4/9, já que é subsumível ao conceito de acidente de trabalho previsto no art. 8.º, n.º 1, segundo o qual “é acidente de trabalho aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza direta ou indiretamente, lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução da capacidade de ganho ou a morte”.
Assim, e atento o disposto no art. 4.º, n.º 4, al. b), do ETAF, é de concluir, tal com tem vindo a ser decidido por este Tribunal dos Conflitos em casos idênticos, que o acidente em causa nos autos não pode considerar-se abrangido pelo Regime Jurídico dos Acidentes em Serviço e das Doenças Profissionais no âmbito da Administração Pública. Antes devendo ser considerado um acidente de trabalho, nos termos da Lei n.º 98/2009, razão pela qual a competência para conhecer do presente processo deve ser atribuída aos tribunais judiciais.
Pelo exposto, acordam em atribuir a competência aos tribunais judiciais para conhecer da presente acção [Tribunal Judicial da Comarca de Santarém – Juízo do Trabalho de Santarém – Juiz 2].
Sem custas.

Lisboa, 18 de Outubro de 2021. – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa (relatora) – Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza.