Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:0114/23.9Y4LSB-A.S1
Data do Acordão:07/05/2023
Tribunal:CONFLITOS
Relator:MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Descritores:CONFLITO DE JURISDIÇÃO
Sumário:Compete aos Tribunais Administrativos e Fiscais a apreciação da impugnação de uma decisão proferida pela Comissão Nacional de Protecção de Dados de aplicação de coima pela prática de uma contraordenação p.e.p. pelos artigos 13.º-A, n.º 1, e 14.º, n.º 1, al. f), da Lei n.º 41/2004, de 18 de Agosto, alterada pela Lei n.º 46/2012, de 29 de Agosto (Lei da Privacidade nas Comunicações Eletrónicas) e pela Lei n.º 16/2022, de 16 de Agosto.
Nº Convencional:JSTA000P31233
Nº do Documento:SAC202307050114
Recorrente:SAUDÁVEL REPETIÇÃO – GESTÃO E SERVIÇOS, LDA
Recorrido 1:MINISTÉRIO PÚBLICO
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral:
Acordam, no Tribunal dos Conflitos:


1. Por deliberação de 6 de setembro de 2022 (Deliberação/2022/896), a Comissão Nacional de Proteção de Dados aplicou à ora recorrente Saudável Repetição – Gestão e Serviços, Unipessoal, Lda, no âmbito do processo de contra-ordenação n.º ...02, uma coima de € 5000, pela prática de uma contra-ordenação p. e p. pelos artigos 13.º-A, n.º 1, e 14.º, n.º 1, al. f), da Lei n.º 41/2004, de 18 de Agosto, alterada pela Lei n.º 46/2012, de 29 de Agosto (Lei da Privacidade nas Comunicações Eletrónicas).
Notificada, a ora recorrente Saudável Repetição, Lda., impugnou judicialmente a deliberação.
Os autos foram remetidos ao Ministério Público junto do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa – Juízo Administrativo Comum, que os fez presentes a esse Tribunal, nos termos do n.º 1 do artigo 62.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro.
Por sentença de 10 de Dezembro de 2022, o Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa – Juízo Administrativo Comum declarou-se incompetente em razão da matéria para conhecer da causa e indeferiu a petição, por considerar que o ilícito de mera ordenação social não encontra previsão no artigo 4.º, n.º 1, al. l), do ETAF, na redação introduzida pelo DL 214-G/2015, na medida em que não está em causa uma contra-ordenação urbanística.
Remetidos os autos, o Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa – Juízo Local Criminal de Lisboa – Juiz ..., por despacho de 28 de Fevereiro de 2023, declarou-se materialmente incompetente para a sua tramitação, por estar “em causa a violação de normas de direito administrativo [artºs 4.º, 6.º e 34.º, n.º 2, da (…) Lei n.º 58/2019]”.
Por despacho de 20 de Março de 2023, foi suscita a resolução do conflito negativo de jurisdição.
Enviados os autos ao Tribunal dos Conflitos, o Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça determinou que se seguisse a tramitação prevista na Lei n.º 91/2019, de 4 de Setembro (Tribunal dos Conflitos).
Nos termos do disposto no n.º 4 do artigo 11.º da Lei n.º 91/2019, o Ministério Público emitiu parecer no sentido de sere “os tribunais da jurisdição administrativa os competentes para conhecer da impugnação judicial em causa, concretamente, o Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa – Juízo Administrativo comum”.
Notificadas as partes para se pronunciarem, querendo, Saudável Repetição – Gestão e Serviços, Unipessoal, Lda, pronunciou-se no sentido de ser competente o Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa.


2. Os factos relevantes para a decisão do conflito constam do relatório.
Está apenas em causa determinar quais são os tribunais competentes, se os tribunais judiciais – que, no conjunto do sistema judiciário, têm competência residual (n.º 1 do artigo 211º da Constituição e n.º 1 do artigo 40º da Lei da Organização do Sistema Judiciário, a Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto) – , se os tribunais administrativos e fiscais, cuja jurisdição é delimitada pelo n.º 3 do artigo 212º da Constituição e pelos artigos 1.º e 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais. Esta forma de delimitação recíproca obriga a começar por verificar se o presente litígio tem por objecto um litígio “emergente” de “relações jurídicas administrativas e fiscais” (nº 2 do artigo 212º da Constituição, nº 1 do artigo 1º e artigo 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais).
Como uniformemente se tem observado, nomeadamente na jurisprudência do Tribunal dos Conflitos, a competência determina-se tendo em conta os “termos da acção, tal como definidos pelo autor — objectivos, pedido e da causa de pedir, e subjectivos, respeitantes à identidade das partes (cfr., por todos, os acórdãos de 28 de Setembro de 2010, www.dgsi.pt, proc. nº 023/09 e de 20 de Setembro de 2011, www.dgsi.pt, proc. n.º 03/11” – acórdão de 10 de Julho de 2012, www.dgsi.pt, proc. nº 3/12 ou, mais recentemente, o acórdão de 18 de Fevereiro de 2019, www.dgsi.pt, proc. n.º 12/19, quanto aos elementos objectivos de identificação da acção).
Significa esta forma de aferição da competência, como por exemplo se observou no acórdão do Tribunal dos Conflitos de 8 de Novembro de 2018, www.dgsi.pt, proc. n.º 20/18, que “A competência em razão da matéria é, assim, questão que se resolve em razão do modo como o autor estrutura a causa, e exprime a sua pretensão em juízo, não importando para o efeito averiguar quais deveriam ser os correctos termos dessa pretensão considerando a realidade fáctica efectivamente existente, nem o correcto entendimento sobre o regime jurídico aplicável – ver, por elucidativo sobre esta metodologia jurídica, o AC do Tribunal de Conflitos de 01.10.2015, 08/14, onde se diz, além do mais, que «o tribunal é livre na indagação do direito e na qualificação jurídica dos factos. Mas não pode antecipar esse juízo para o momento de apreciação do pressuposto da competência…».”.
A mesma orientação se retira do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de Fevereiro de 2015, ww.dgsi.pt, processo n.º 1998/12.1TBMGR.C1.S1: “Como é sabido, a competência do Tribunal em razão da matéria é determinada pela natureza da relação jurídica tal como apresentada pelo autor na petição inicial, confrontando-se o respetivo pedido com a causa de pedir e sendo tal questão, da competência ou incompetência em razão da matéria do Tribunal para o conhecimento de determinado litígio, independente, quer de outras exceções eventualmente existentes, quer do mérito ou demérito da pretensão deduzida pelas partes”.

3. No caso presente, está em causa a impugnação de uma decisão proferida pela CNPD de aplicação de coima, pela prática de uma contra-ordenação p. e p. pelos artigos 13.º-A, n.º 1, e 14.º, n.º 1, al. f), da Lei n.º 41/2004, de 18 de Agosto, alterada pela Lei n.º 46/2012, de 29 de agosto (Lei da Privacidade nas Comunicações Eletrónicas) e pela Lei n.º 16/2022, de 16 de Agosto (que não alterou os preceitos citados).
Nos termos do disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 34.º da Lei n.º 58/2019, de 8 de agosto (Lei da Proteção de Dados Pessoais),
1 - Qualquer pessoa, de acordo com as regras gerais de legitimidade processual, pode propor ações contra as decisões, nomeadamente de natureza contraordenacional, e omissões da CNPD, bem como ações de responsabilidade civil pelos danos que tais atos ou omissões possam ter causado.
2 - As ações propostas contra a CNPD são da competência dos tribunais administrativos.”.
Por sua vez, de acordo com a al. l) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF (na redação resultante da Lei n.º 114/2019, de 12 de Setembro), compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a “Impugnações judiciais de decisões da Administração Pública que apliquem coimas no âmbito do ilícito de mera ordenação social por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo e do ilícito de mera ordenação social por violação de normas tributárias”.
Perfilha-se a orientação definida nesta matéria pelo acórdão do Tribunal dos Conflitos, de 14 de Julho de 2022, www.dgsi.pt, proc. n.º 013/22:
A competência para apreciar os recursos em matéria contra-ordenacional foi-se alterando, pertencendo sempre essa competência à jurisdição comum [Lei nº 67/98, de 26/10, que previu que a competência era do tribunal da concorrência, regulação e supervisão – art. 112º, nº 1, al. g) da LOSJ; depois a Lei nº 23/2018, de 5/6, que incluiu no art. 112º, nº 1 da LOSJ a ERC mas não a CNDP, pelo que, após 04.08.2018 (data da sua entrada em vigor), passaram a ser materialmente competentes os juízos locais criminais para o conhecimento dos recursos de contra-ordenação de decisões da CNPD].
Porém, com a Lei nº 58/2019, no seu art. 34º, este paradigma de atribuir a competência para a apreciação dos recursos contra-ordenacionais como o aqui em causa aos tribunais da jurisdição comum terá sofrido uma alteração.
É o que se afigura resultar do disposto no nº 1 do art. 34º que abrange na qualificação como “ações” o recurso de impugnação judicial das decisões de natureza contra-ordenacional da CNDP, regulado nos termos dos artigos 59º e seguintes do DL nº 433/82, apesar de, verdadeiramente, tal recurso não ser instaurado “contra” a CNDP, que nele não é uma verdadeira parte.
Tal como bem salienta a EMMP, esta terminologia resultará do disposto nos artigos 78º e 79º do Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27.04.2016, onde, indistintamente, se faz referência ao “direito à ação judicial” e ao “recurso”, como formas processuais similares admissíveis – referindo-se que “todas as pessoas singulares ou coletivas têm direito à ação judicial contra as decisões juridicamente vinculativas das autoridades de controlo que lhes digam respeito.”; e que “os recursos contra as autoridades de controlo são interpostos nos tribunais do Estado-Membro em cujo território se encontrem estabelecidas."
Assim, tal terminologia não constitui impedimento a que deva concluir-se que o legislador pretendeu inequivocamente, atribuir aos tribunais administrativos a competência material quer para as acções interpostas contra a CNPD, quer para os recursos de impugnação das respectivas decisões contra-ordenacionais. Aliás, se essa intenção não foi declarada expressamente na exposição de motivos da Proposta de Lei nº 120/XIII/3ª, que conduziu à aprovação da Lei nº 58/2019, revela-se da consulta dos trabalhos parlamentares (indicados no Parecer do MP), verificando-se que, nomeadamente, a CNDP propôs que se excepcionasse do nº 2 do art. 34º as “ações de impugnação das deliberações sancionatórias, cuja competência jurisdicional se afere nos termos da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto”.
Ora, o legislador manteve a redacção do art. 34º que constava da proposta de lei.
Assim, tendo em atenção o disposto no art. 9º do Código Civil, sendo de reconstituir o pensamento legislativo a partir dos textos parlamentares, tendo em conta as circunstâncias em que a lei foi elaborada, e que o legislador não desconhecia as consequências da redacção que contemplou naquele artigo 34º – a de atribuir aos tribunais administrativos a competência em matéria de recursos contra-ordenacionais das deliberações sancionatórias da CNPD -, sendo de presumir que consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados, é de concluir que pretendeu, efectivamente, atribuir aos tribunais administrativos a competência material não só para as acções interpostas contra a CNPD, como igualmente para a apreciação de recursos de impugnação de decisões de aplicação de coimas proferidas pela mesma.
É certo que tal competência não resulta expressamente prevista no art. 4º, nº 1 do ETAF, nas suas diversas alíneas (estando essa competência contra-ordenacional já contemplada quanto a impugnações em contra-ordenações respeitantes a matéria de urbanismo – 1ª parte da alínea l), daquele nº 1, do art. 4º).
No entanto, como referem Mário Aroso de Almeida e C.A. Fernandes Cadilha, in Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Almedina, 2017, 4ª ed., «O âmbito da jurisdição administrativa e fiscal é identificado, no artigo 212.º, n.º 3 da CRP, por referência aos meios processuais que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes de relação jurídicas administrativas e fiscais.» (pág. 17). E que «A matéria da delimitação do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal é regulada pelo ETAF no seu artigo 4.º. Na ausência de determinação expressa em sentido diferente, contida em lei avulsa, valem pois, nessa matéria, os critérios estabelecidos no artigo 4.º do ETAF. A verdade, porém, é que o regime decorrente deste artigo é objeto de múltiplas derrogações resultantes de legislação especial.» [estando os Autores a referir-se a desvios ao regime do artigo 4º que devendo pertencer à jurisdição administrativa e fiscal dela foram afastadas, nomeadamente, a impugnação judicial de decisões de aplicação de coimas no âmbito do ilícito de mera ordenação social (sendo que com a alteração introduzida pelo DL nº 214-G/2015, a alínea l) do art. 4º, nº 1, introduziu no âmbito da jurisdição administrativa o ilícito de mera ordenação social “por violação de normas de direito administrativo em direito de urbanismo”)] – cfr. págs. 19 e 20.
Referindo-se às autoridades reguladoras independentes admitem os Autores que «… a determinação da competência contenciosa para conhecer dos litígios que a sua atividade possa gerar suscita outro tipo de dificuldades». «Dentro deste enquadramento geral, a determinação da competência contenciosa em relação a atos administrativos praticados por essas entidades carece de ser analisada casuisticamente em função do estabelecido no respetivo estatuto orgânico, quer por via do regime jurídico que se estiver definido para o seu funcionamento, quer por efeito de regras de competência que se encontrem expressamente previstas.» - págs. 25 e 26.
Ora, encontrando-se expressamente prevista no art. 34º, nºs 1 e 2 da Lei nº 58/2019 a competência material dos tribunais administrativos para impugnação de todas as decisões da CNPD, incluindo as de natureza contra-ordenacional, há que ter em conta essa atribuição expressa de competência, independentemente de a mesma não ter sido contemplada na enumeração constante do art. 4º, nº 1 do ETAF.”.
É, pois, esta jurisprudência que aqui se reitera.

4. Assim, é da competência dos Tribunais Administrativos e Fiscais a apreciação da presente impugnação; concretamente, do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa – Juízo Administrativo Comum (artigos 34.º, n.º 1 e 2 da Lei n.º 58/2019, 16.º, n.º 1, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 2.º, n.º 2, a) do Decreto-Lei n.º 174/2019, de 13 de Dezembro e 1.º, n.º 1, da Portaria n.º 121/2020, de 22 de Maio).
Sem custas (art. 5.º nº 2, da Lei n.º 91/2019, de 4 de setembro).

Lisboa, 5 de Julho de 2023. - Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza (relatora) - Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa.