Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:07/20
Data do Acordão:11/03/2020
Tribunal:CONFLITOS
Relator:TERESA DE SOUSA
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P26664
Nº do Documento:SAC2020110307
Data de Entrada:04/22/2020
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO - JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE CASTELO BRANCO - JUIZ 1 E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE CASTELO BRANCO.
AUTOR: A............, S.A.
RÉU: ICOVI - INFRA-ESTRUTURAS E CONCESSÕES DA COVILHÃ, E.M.M.
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Acordam no Tribunal dos Conflitos
1. Relatório
A………………, SA, identificada nos autos, intentou no Tribunal Judicial da Comarca de Castelo Branco - Juízo Central Cível de Castelo Branco - Juiz 1, acção declarativa sob a forma de processo comum, contra ICOVI - Infra-Estruturas e Concessões da Covilhã, EMM, formulando os seguintes pedidos:
- reconhecido e declarado qua a autora é proprietária de um terreno, que identifica;
- reconhecido e declarado que a ré ocupou ilicitamente e sem autorização parte desse terreno, com a execução de uma conduta de água subterrânea, numa extensão de 700m e numa largura de 7m;
- condenada a ré a repor e restituir o terreno no estado em que se encontrava no momento anterior ao início dos trabalhos de execução da conduta de água;
- condenar a ré a indemnizar a autora pelos prejuízos (a liquidar posteriormente), nomeadamente, para a unidade hoteleira decorrente da perda de clientela inerente à realização das obras de execução da conduta de água, acrescida de juros de mora.
Subsidiariamente, para a hipótese de não haver lugar à reposição do terreno:
- condenar a ré a indemnizar a autora no valor real e de mercado da parcela ocupada, no montante de € 256.920,00, acrescida de juros
Em síntese, alegou ser proprietária do prédio misto, identificado nos artigos 3º e 4º da petição inicial (p.i.). Mais alegou que a ré para proceder à instalação e execução de um aqueduto - subsolo, a um metro abaixo da superfície - e a levar a efeito um projecto de abastecimento de água em alta no Concelho da Covilhã, sem autorização e acordo da autora, e sem proceder a qualquer expropriação, entrou com trabalhadores, a seu mando, no terreno da autora e aí realizou os trabalhos descritos na p.i., no período de Outubro a Dezembro de 2015. Obras estas que prejudicaram a exploração da unidade hoteleira, privando a A. de tal terreno, sendo que não as impediu por estar convencida que a ré acabaria por pagar o preço do terreno ocupado, que tem o valor de € 356.920,00.

Em 28.11.2017, no Juízo Central Cível de Castelo Branco, foi proferida decisão (fls. 98 a 105) que julgou os tribunais judiciais incompetentes em razão da matéria para apreciação e julgamento da acção intentada

Remetidos os autos ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Castelo Branco (TAF de Castelo Branco), a pedido da autora, foi aí proferida decisão em 13.02.2020 (fls. 150 a 154) a declarar a incompetência em razão da matéria daquele TAF para conhecer do objecto dos autos.

Após trânsito em julgado, veio a autora solicitar ao Tribunal dos Conflitos a resolução do conflito (fls. 157). Conflito que foi suscitado pelo Sr. Juiz do TAF de Castelo Branco (fls. 158/159).
Os autos foram remetidos a este Tribunal dos Conflitos.
As partes, notificadas para efeitos do disposto no nº 3 do art. 11º, da Lei nº 91/2019, de 4 de Setembro, nada disseram.
A Exma. Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer a fls. 166 a 168, no sentido de que a competência para julgar a acção deverá ser atribuída ao Tribunal Judicial da Comarca de Castelo Branco, Juízo Central Cível de Castelo Branco.

2. Os Factos

Os factos relevantes para a decisão são os enunciados no Relatório.

3. O Direito
O presente Conflito Negativo de Jurisdição vem suscitado entre o Juízo Local Central Cível de Castelo Branco e o Tribunal Administrativo e Fiscal de Castelo Branco.
Entendeu o Juízo Cível de Castelo Branco que, no caso, não está em discussão o direito de propriedade da autora, mas antes que a actuação de facto da ré, entidade pública, e na actuação de funções públicas, terá ocupado ilicitamente um terreno da autora, pelo que deverá ser condenada a repor e restitui-lo no estado em que se encontrava, ressarcindo a A. dos danos causados, que identifica, e, conforme foi peticionado. Concluindo pela sua incompetência em razão da matéria uma vez que a relação material controvertida, tal como caracterizada pela autora, é uma relação jurídica administrativa a regular pelas regras de direito público e, por isso, se inscreve nas alíneas f) e h) do nº 1 do art. 4º do ETAF.
Remetido o processo ao TAF de Castelo Branco este, por sua vez, também se considerou incompetente em razão da matéria por, na presente acção, tipicamente real, estar em causa o reconhecimento do direito de propriedade sobre o terreno misto (art. 1311º do CC), formulando-se também um pedido de indemnização pelos prejuízos causados com a ocupação indevida, o que transcende a competência dos tribunais administrativos, por não se estar perante o exercício de quaisquer direitos e/ou deveres públicos, sendo por isso competentes para a sua apreciação os tribunais judiciais.

Vejamos.

Cabe aos tribunais judiciais a competência para julgar as causas "que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional” [cfr. arts. 211º, nº1, da CRP, 64º do CPC, e 40º, nº1, da Lei nº 62/2013, de 26/8 (LOSJ)], e aos tribunais administrativos e fiscais a competência para julgar as causas "emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais" (cfr. arts. 212º, nº3, da CRP e 1º, n.º1, do ETAF).
A competência dos tribunais administrativos e fiscais está contemplada no art. 4º do ETAF (Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro, na redacção do DL nº 214-G/2015, de 2 de Outubro, que atendendo à data da propositura da acção, é a que aqui releva) com delimitação do "âmbito da jurisdição" mediante uma enunciação positiva (nºs 1 e 2) e negativa (nºs 3 e 4).
Tem sido reafirmado por este Tribunal, e constitui entendimento jurisprudencial e doutrinário consensual, que a competência material do tribunal se afere em função do modo como o A. configura a acção e que a mesma se fixa no momento em que a acção é proposta.
Como se afirmou no Ac. deste Tribunal de 01.10.2015, Proc. 08/14, “A competência é questão que se resolve de acordo com os termos da pretensão do Autor, aí compreendidos os respectivos fundamentos e a identidade das partes, não importando averiguar quais deviam ser os termos dessa pretensão, considerando a realidade fáctica efectivamente existente ou o correcto entendimento do regime jurídico aplicável. O Tribunal dos Conflitos tem reafirmado constantemente que o que releva, para o efeito do estabelecimento da competência, é o modo como o Autor estrutura a causa e exprime a sua pretensão em juízo".

Ora, o que a autora pediu ao Tribunal na presente acção foi que seja reconhecida e declarada a sua propriedade sobre o terreno e que a ré o reponha e restitua no estado em que se encontrava no momento imediatamente anterior ao início dos trabalhos de execução da conduta de água, pedindo-se, igualmente, a condenação da ré em indemnização pelos prejuízos patrimoniais sofridos pela privação do uso da parcela de terreno e outros danos patrimoniais a liquidar em execução de sentença.
Como causa de pedir invocou o direito de propriedade sobre o prédio misto, alegando que a Ré tentou obter autorização da A. para proceder à instalação e execução no seu terreno de infra-estruturas de um aqueduto, o que pressupunha que a A. desse o direito de acesso ao referido terreno, o que não aconteceu Considera que a actuação da requerida violou o seu direito de propriedade.
Face a este pedido, concluiu o Juízo Cível de Castelo Branco que se estava perante uma relação jurídica administrativa por não estar em causa o direito de propriedade da autora mas antes saber se a ré actuou ilegalmente executando obras sem autorização e, nessa medida, estando em causa responsabilidade civil extracontratual, sendo que a competência para apreciar tal actuação cabe nas alíneas f) e h) do nº 1 do art 4º do ETAF.
Em nosso entender, o que está em causa, face à forma como a acção é configurada pela autora, é uma reivindicação da propriedade de (parte) do seu prédio, que a ré terá alegadamente ocupado sem qualquer título e sem o seu consentimento, invocando, como tal, a existência de uma limitação ao exercício pleno do seu direito de propriedade.
Estar-se-ia, portanto, e prima facie, perante a previsão da alínea i) do nº 1 do art. 4º do ETAF visando-se a remoção de situação constituída em via de facto, sem título que a legitime.
Sobre o alcance da alínea i) do nº 1 do art 4º do ETAF, em caso semelhante ao presente, decidiu este Tribunal dos Conflitos no Ac. de 23.05.2019, Proc. 48/18:
"Com a Reforma de 2015, a al. i), do nº 1, do art. 4º do ETAF passou a atribuir à jurisdição administrativa a competência para apreciar litígios que tenham por objeto questões relativas a "condenação à remoção de situações constituídas em via de facto, sem título que as legitime". No entanto, concluiu que "Se, porém, se discutir a titularidade do direito de propriedade sobre o imóvel em questão, a competência continua a caber à jurisdição comum".
Pode afirmar-se que a "via de facto" corresponde a uma actuação material da Administração que, sem base legal (designadamente por ausência de actos jurídicos anteriores que legitimem essas operações materiais ou em que esses actos jurídicos são juridicamente inexistentes), ofenda, de forma grave e manifesta, uma liberdade fundamental ou um direito de propriedade (cf. o Ac. do STJ de 05.02.2015, proferido no proc. nº 742/10.2TBSJM.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt).
Com o referido preceito do art. 4º, nº 1, alínea i) do ETAF procurou-se dar resposta às dúvidas que então se suscitavam quanto a saber se o julgamento das situações de «via de facto» competia aos tribunais administrativos ou aos tribunais judiciais, ficando com a revisão de 2015, assegurado que "o pedido de restabelecimento de direitos ou interesses violados a que se refere a al. i), do nº 1, do art. 37º, do CPTA pode ser deduzido, não apenas para obter a remoção de efeitos produzidos por atos administrativos ilegais, mas também para reconstituir a situação jurídica que deveria existir, na sequência de operações materiais praticadas pela Administração sem título que o legitime. Trata-se de situações em que a Administração intervém no mero plano dos factos, o que pode incluir, não apenas a execução material de atos nulos ou juridicamente inexistentes (artigo 161.º do CPA), mas também a execução coerciva de atos administrativos legalmente praticados, mas relativamente aos quais a Administração não disponha de poderes de execução forçada, seja por estar em causa um ato administrativo cuja execução a lei reserve aos tribunais ou, em todo o caso, uma execução ilegítima, nos termos do n.º 3 do artigo 182.º do CPA." (cfr. Mário Aroso de Almeida e Carlos Cadilha, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Almedina, 2017, pág. 259).
Atendendo à configuração da alínea i) do nº 1, do art. 4º podem colocar-se dúvidas sobre se a competência dos tribunais administrativos está apenas prevista para as situações em que a Administração exerce operações materiais sem que exista decisão administrativa prévia que a sustente, ou se são também situações de "via de facto" os casos em que esses actos jurídicos foram praticados e são juridicamente existentes mas que padecem de uma ilegalidade gravosa (v.g. indiscutível nulidade do acto de declaração de utilidade pública), bem como os casos em que a lei não outorga à entidade administrativa qualquer atribuição ou competência na matéria.
No presente conflito, que somos chamados a dirimir, está precisamente em causa saber se a nova alínea i), do art. 4º, nº 1, do ETAF abrange, ou não, as acções reais, como a dos autos, em que a controvérsia se centra no reconhecimento do direito de propriedade sobre o imóvel reivindicado, face à actuação de uma entidade administrativa alegadamente ofensiva do direito invocado pelo autor.
Importa, consequentemente, trazer à colação o disposto no art. 9º do CC, onde se prescreve que a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada (nº1), não podendo, no entanto, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso (nº2).
Atente-se ainda que, conforme se determina naquele dispositivo legal, "na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados" (nº3).
Nesta tarefa interpretativa, partindo da letra da lei e tendo em conta quer o elemento histórico, quer o elemento racional ou teleológico, nos termos acima mencionados, afigura-se-nos que a norma em causa deve ser interpretada no sentido de apenas atribuir a competência aos tribunais administrativos para as acções em que apenas está em causa a remoção de actuações ilegais da Administração.
Já nos casos em que esteja em discussão a titularidade do direito de propriedade sobre o imóvel em questão, a título principal (e não como questão incidental), a competência continua a caber à jurisdição comum.
É neste sentido a posição de Carla Amado Gomes, in "Temas e problemas de justiça administrativa", AAFDL, 2018, págs 39-56 e "'Via de facto e tutela jurisdicional contra ocupações administrativas sem título", in Revista do Ministério Público nº 15º Abril/Junho, 2016, págs. 89-109) ao defender que "a competência da jurisdição administrativa para o conhecimento das situações de ocupação, sem título, de imóveis pela Administração, em "via de facto" - que já se verificava antes de 2015 e que a alteração legislativa só veio reforçar (por se estar, ainda, perante actuações materialmente administrativas da Administração) - não prejudica a competência dos tribunais judiciais para os casos em que a questão da titularidade do bem for controvertida."
Afigura-se-nos ser esta a solução mais correcta, a qual é inteiramente transponível para o presente caso.
Como se referiu, a competência dos tribunais em razão da matéria afere-se em função da configuração da relação jurídica controvertida, isto é, em função dos termos em que é deduzida a pretensão do autor na petição inicial, incluindo os seus fundamentos pelo que se conclui que a relação material controvertida, tal como é caracterizada pela autora, não se inscreve em nenhuma das alíneas do n.º 1, do art. 4.º, do ETAF.
Tal como se apresenta, deparamo-nos com uma causa no âmbito dos direitos reais já que aquela alega factos que visam demonstrar a titularidade do seu direito de propriedade sobre o terreno em causa, excluindo o direito por parte da ré a realizar obras naquele sem sua autorização e, em consequência, pede, além do mais, a condenação na restituição da sua posse.
Ora, a jurisprudência deste Tribunal dos Conflitos tem, abundantemente, entendido que a competência para conhecer de acções em que se discutem direitos reais cabe apenas na esfera dos Tribunais Judiciais (cfr. Acs. de 30.11.2017, Proc. 011/17, de 13.12.2018, Proc.º 043/18, de 23.05.2019, Proc. 048/18 e de 23.01.2020, Proc. 041/19, consultáveis in www.dgsi.pt e o muito recente de 25.06.2020, Proc. 31/19 e jurisprudência nele indicada, no qual estava igualmente em causa um pedido indemnizatório).
Assim, a competência material para conhecer da presente acção cabe à jurisdição comum (cfr. art. 64º do CPC).

Pelo exposto, acordam em julgar competente para apreciar a presente acção o Tribunal Judicial da Comarca de Castelo Branco - Juízo Central Cível de Castelo Branco.
Sem custas (nº 2 do art, 5º da Lei nº 91/2019)

Lisboa, 03 de Novembro de 2020. - Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa (Relatora) - Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza

A presente decisão foi adoptada por unanimidade pela Conselheira Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa (Relatora) e pela Senhora Conselheira Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza e vai assinada apenas pela relatora, com o assentimento (voto de conformidade) da Senhora Conselheira Adjunta, de harmonia com o disposto no artigo 15º-A do DL nº 10-A/2020, de 13 de Março, aditado pelo DL nº 20/2020, de 1 de Maio.

Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa