Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:018/22
Data do Acordão:11/08/2022
Tribunal:CONFLITOS
Relator:ARAGÃO SEIA
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P30169
Nº do Documento:SAC20221108018
Data de Entrada:05/30/2022
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LISBOA OESTE - JUÍZO LOCAL CÍVEL DE CASCAIS – JUIZ 2 E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE SINTRA.
REQUERENTE: ADC – ÁGUAS DE CASCAIS, SA
REQUERIDO: A.......................
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Conflito n.º 18/22

Acordam no Tribunal dos Conflitos

Relatório
AdC – Águas de Cascais, SA requereu em 03.11.2020 uma injunção contra A……………, Cascais, pedindo o pagamento da quantia de 439,35 € referente a dívida, juros e taxas de justiça de factura não paga respeitante ao fornecimento de água e drenagem de águas residuais, ao abrigo de contrato entre ambos celebrado.
O requerido deduziu oposição e o processo foi remetido para distribuição no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, Juízo Local Cível de Cascais [Proc.n.º 98301/20.6YIPRT] que, por decisão de 14.06.2021, veio a declarar-se materialmente incompetente para conhecer do litígio por considerar que “Tal contador não tem como função medir o consumo de água (e não o mede), medindo apenas a quantidade global de água que entra no prédio, sendo a cobrança de água, nestas circunstâncias, imposta pela fornecedora de água ao consumidor final, sendo que os conflitos a dirimir resultantes da instalação de um contador destas características devem ser dirimidos pela jurisdição especializada dos tribunais administrativos e fiscais, nos termos do disposto no artº 4º nº1 do ETAF, nas suas diversas alíneas, mas em especial na sua alínea e), quer na versão em vigor à data da celebração do contrato dos autos, quer na redação da Lei 118/2019 (…) como se refere no Acórdão do Tribunal de Conflitos de 25-06-2013 (Processo nº 033/13, relatado por Rosendo José, integralmente disponível em www.dgsi.pt), “Compete aos tribunais tributários o conhecimento de acção em que uma empresa concessionária do serviço público municipal de abastecimento de água pretende cobrar o «preço fixo» e consumos por um contador «totalizador» que precede os contadores das fracções e das partes comuns de um condomínio, por estarem em causa tarifas, taxas e encargos com exigências impostas autoritariamente em contrapartida do serviço público prestado, relação jurídica que é regulada por normas de direito público tributário" - no mesmo sentido se decidiu, ainda, nos Acórdãos do Tribunal de Conflitos nº038/13 de 18.02.2013, relatado pelo Sr. Cons. Paulo Sá; n.º 039/13 de 05.11.2013, relatado pelo Sr. Cons. Rui Botelho e n.º 045/13 de 29.01.2014, relatado pelo Sr. Cons. Costa Reis. Entende-se, pois, que a ordem administrativa e fiscal é a competente para conhecer da presente acção, o que importa a exclusão da competência (residual) deste Tribunal.”.
Remetidos os autos ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra, também este Tribunal, por decisão proferida em 08.02.2022, se considerou incompetente em razão da matéria por entender que “No caso dos autos, estamos perante um conflito - relativo ao pagamento de faturas respeitantes a serviços de fornecimento de água e de drenagem de águas residuais, registados por contador totalizador ou padrão, no A…………….. - que emerge de uma relação de consumo relativa à prestação de serviços públicos essenciais.
O artigo 1.º da Lei n.º 23/96, de 26/07, define os serviços abrangidos pelo conceito de «serviços públicos essenciais», neste se incluindo o serviço de fornecimento de água e os serviços de recolha e tratamento de águas residuais, cf. alíneas a) e f) da referida norma.
(…) chama-se também à colação o artigo 4.º, n.º 4, do ETAF, na redação conferida pela Lei n.º 114/2019, de 12/09, nos termos do qual se determina: «Estão igualmente excluídas do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal:
e) A apreciação de litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respetiva cobrança coerciva.» (…)
Acresce referir que a alteração introduzida à alínea e), do n.º 4, do artigo 4.º, do ETAF, entrou em vigor no dia 11/11/2019, cf. artigo 6.º, da Lei n.º 114/2019, de 12/09. (…)
Com efeito, tanto no momento da apresentação do requerimento de injunção, quanto na data da remessa dos autos ao Tribunal Tributário de Sintra, já vigoravam na ordem jurídica as alterações introduzidas ao ETAF pela Lei n.º 114/2019, de 12/09.”.
Suscitada a resolução do conflito de jurisdição e remetido o processo ao Tribunal dos Conflitos, foi dado cumprimento ao disposto no n.º 3 do artigo 11.º da Lei n.º 91/2019, de 4 de Setembro.
A Exma. Magistrada do MP emitiu parecer no sentido de dever ser atribuída a competência material para apreciar a presente acção aos tribunais comuns.

Apreciação da questão
Cabe aos tribunais judiciais a competência para julgar as causas «que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional» [artigos 211.º, n.º 1, da CRP; 64.º do CPC; e 40.º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013, de 26/08 (LOSJ)], e aos tribunais administrativos e fiscais a competência para julgar as causas «emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais» [artigos 212.º, n.º 3, da CRP, 1.º, n.º 1, do ETAF].
A competência dos tribunais administrativos e fiscais é concretizada no artigo 4.º do ETAF (Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro) com delimitação do “âmbito da jurisdição” mediante uma enunciação positiva (n.ºs 1 e 2) e negativa (nºs 3 e 4). Deste preceito importa reter o disposto na alínea e) do n.º 4 que excluí do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal os litígios «emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respetiva cobrança coerciva» (redacção introduzida pela Lei n. º 114/2019, de 12 de Setembro).
Na Exposição de Motivos que acompanhou a Proposta de Lei nº 167/XIII, que deu origem à referida Lei nº 114/2019, consta o seguinte:
«A necessidade de clarificar determinados regimes, que originam inusitadas dificuldades interpretativas e conflitos de competência, aumentando a entropia e a morosidade, determinaram as alterações introduzidas no âmbito da jurisdição. Esclarece-se que fica excluída da jurisdição a competência para a apreciação de litígios decorrentes da prestação e fornecimento de serviços públicos essenciais. Da Lei dos Serviços Públicos (Lei n.º 23/96, de 26 de julho) resulta claramente que a matéria atinente à prestação e fornecimento dos serviços públicos aí elencados constitui uma relação de consumo típica, não se justificando que fossem submetidos à jurisdição administrativa e tributária; concomitantemente, fica agora clara a competência dos tribunais judiciais para a apreciação destes litígios de consumo.» (disponível em https://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalheIniciativa.aspx?BID=43155).
A Autora AdC – Águas de Cascais, SA é uma sociedade comercial concessionária da exploração e gestão do Sistema de Abastecimento de Água (Captação, Tratamento, Elevação, Armazenamento e Distribuição) e do Sistema de Drenagem e Tratamento das Águas Residuais Urbanas do Concelho de Cascais.


A Lei n.º 23/96, de 26 de Julho, consagra as regras a que deve obedecer a prestação de serviços públicos essenciais em ordem à protecção do utente. De acordo com o artigo 1.º, n.º 2, alínea a) da referida Lei, de entre os serviços públicos abrangidos encontra-se o serviço de fornecimento de água.
Tem sido reafirmado por este Tribunal, e constitui entendimento jurisprudencial e doutrinário pacífico, que a competência material do tribunal se afere em função do modo como o autor configura a acção e que a mesma se fixa no momento em que a mesma é proposta. No presente caso a Autora reclama o pagamento de uma factura respeitante ao fornecimento de água e drenagem de águas residuais ao Condomínio Réu, conforme contrato celebrado. Deparamo-nos, portanto, com um litígio de consumo relativo à prestação de um serviço público essencial.
No dia em que a Autora apresentou o requerimento de injunção – 03.11.2020 – já se encontrava em vigor a mais recente versão do artigo 4.º do ETAF (introduzida pela Lei n.º 114/2019 e que entrou em vigor em 11.11.2019) com o expresso afastamento, na al. e) do seu n.º 4, da competência dos tribunais administrativos e fiscais para apreciar “litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respetiva cobrança coerciva” (cfr. no mesmo sentido os acórdãos deste Tribunal dos Conflitos de 18.01.2022, Proc. 02941/21.2T8ALM.S1 e de 23.03.2022, Proc. 031/21).
Pelo exposto, e atento o disposto na alínea e) do n.º 4 do artigo 4.º do ETAF, na redacção da Lei n.º 114/2019, de 12 de Setembro, acordam em julgar competentes para apreciar a presente acção os Tribunais Judiciais [Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, Juízo Local Cível de Cascais, Juiz 2].
Sem custas.
D.n.

Lisboa, 8 de Novembro de 2022. - Jorge Miguel Barroso de Aragão Seia (relator) – Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza.