Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:09/19
Data do Acordão:05/30/2019
Tribunal:CONFLITOS
Relator:RIBEIRO CARDOSO
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P24622
Nº do Documento:SAC2019053009
Data de Entrada:01/23/2019
Recorrente:A............, NO CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LISBOA - JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE LISBOA - JUIZ 10 E OS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS E FISCAIS.
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Conflito nº: 9/19

Acordam no Tribunal dos Conflitos (Acórdão redigido segundo a nova ortografia com exceção das transcrições em que se manteve a original.))

I - RELATÓRIO

A………… intentou ação declarativa com processo comum contra o BANCO ESPÍRITO SANTO, SA (BES), o BANCO DE PORTUGAL (BdP), o NOVO BANCO, SA (NB), o FUNDO DE RESOLUÇÃO (FdR), a CMVM - COMISSÃO DE MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS (CMVM) e B…………, pedindo a sua condenação solidária a pagarem-lhe a quantia de € 62.976,66, acrescida de € 10.510,11 a título de juros vencidos à taxa legal em vigor, e calculados desde a data de utilização ilícita das quantias monetárias do A. e os juros vincendos até integral pagamento. Caso assim não se entenda, pede que se declare a nulidade do contrato de intermediação financeira por inobservância de forma nos termos do disposto no artigo 321º do CVM e, em consequência, os RR. solidariamente condenados a restituir-lhe a quantia de € 62.976,66, acrescida de € 10.510,11 a título de juros vencidos à taxa legal em vigor, e calculados desde a data de utilização ilícita daquelas quantias monetárias e os juros vincendos até integral pagamento.
Pede ainda que os RR. sejam condenados solidariamente a ressarci-lo pelos danos não patrimoniais que lhe foram causados, em valor a ser calculado em sede de liquidação de sentença.
Para tanto alegou que era titular de conta bancária no BES de quem era cliente há cerca de 15 anos. Por determinação deste a conta passou a ser sediada no denominado Private Bank, sendo-lhe atribuída como gestora de conta a R. B…………, com quem manteve uma relação de grande confiança e proximidade e a quem sempre deu instruções no sentido de que queria aplicar o seu dinheiro em produtos sem qualquer risco associado, informando-o ela que o dinheiro era aplicado em produtos "como depósitos a prazo", totalmente garantidos.
Todavia, contra as suas instruções, a R. B…………, no âmbito das suas funções e sob subordinação do R. BES, aplicou o dinheiro do A., depositado no BES, no valor global de € 62.976,66, no produto ESFG INTL - XS0303426661, no montante de € 20.562,06, e ESFG INTL - XS0303426661, no montante de € 42.414,60.
Tendo ouvido rumores de alguma instabilidade procurou saber o que se passava junto da R. B…………, que o tranquilizou, afirmando que se tratava de produtos do BES, totalmente garantidos.
Em 3 de agosto de 2014 o R. BdP decidiu-se pela aplicação da medida de resolução ao BES, criando o 3° R., NB, cujo capital social é detido pelo R. FdR, determinando genericamente que todos os ativos de real valor e que poderiam responder perante os credores do BES fossem transferidos para o NB.
Após o colapso do BES os representantes do R. NB recusaram o reembolso daquele dinheiro dizendo que havia sido investido em produtos de alto risco.
Em 11-7-2014 o R. BdP afirmara que não existiam motivos que comprometessem a segurança dos fundos confiados ao BES, podendo os seus depositantes estar tranquilos e garantiu a solvência daquele R.
No «Relatório e Contas Intercalar e Individual - 1° Semestre 2014», o BES assumiu a obrigação de reembolso dos produtos que vendera e criou uma provisão do valor dos produtos vendidos.
O A. é um "investidor não qualificado" com quem os contratos de intermediação financeira deveriam ter sido celebrados por escrito. Como tal não sucedeu, é nula a relação comercial, devendo os 1° e 6ª RR. devolver-lhe os montantes depositados.
Sobre os RR. BES, BdP, NB, CMVM e B………… recaíam deveres de conduta de informação, diligência e lealdade.
Os RR. BdP e CMVM incumpriram os deveres de supervisão que legalmente lhes competem sendo corresponsáveis pela obrigação de devolução dos montantes investidos, recorrendo aos montantes sob tutela do R FdR.

Os RR. contestaram.

O R. BES - em Liquidação sustentou que, em relação a si, devia ser declarada a extinção da instância por inutilidade da lide, uma vez que o Banco Central Europeu revogou a autorização para o exercício da atividade do BES, deliberação que, nos termos do nº 2 do art. 8 do Decreto-Lei nº 199/2006, de 25-10, produz os efeitos da declaração de insolvência, sendo certo que, na sequência, veio o BdP a requerer a liquidação judicial do BES.
Caso assim se não entenda, requer a suspensão da instância até se tornar definitiva a referida decisão do Banco Central Europeu.
Invocou ainda, a prescrição da responsabilidade contratual do intermediário financeiro e impugnou a factualidade alegada pelo A.
O R. FdR defendeu-se por exceção, invocando a incompetência absoluta dos tribunais judiciais, em razão da matéria, referindo ser uma pessoa coletiva de direito público e que, se o A. o pretendia demandar, bem como ao Banco de Portugal, solidariamente com os demais RR., deveria ter proposto a ação nos tribunais administrativos, considerando o disposto no art. 4, nº 2, do ETAF.
Impugnou, ainda, factualidade alegada pelo A.

O R. BdP invocou igualmente a incompetência absoluta dos tribunais judiciais em razão da matéria, atento o disposto no art. 4, nº 1-f) e nº 2 do ETAF. Arguiu, ainda, a sua ilegitimidade em relação ao pedido da sua responsabilização contratual, impugnou os factos alegados pelo A. e apresentou a sua versão de direito, concluindo, nesta parte, pela sua absolvição do pedido.

A R. CMVM suscitou também a exceção da incompetência absoluta do tribunal em razão da matéria, cabendo aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal, nos termos dos arts 1.°, n.º 1, e 4.°, n.º 1, al. f), do ETAF, a competência exclusiva para a apreciação da responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas. Alegou ainda não estarem preenchidos os requisitos previstos para o litisconsórcio e para a coligação, invocou a sua ilegitimidade passiva e apresentou uma versão diversa dos factos.

Os RR. NV, SA e B………… alegaram que não foram transferidas para o Novo Banco as responsabilidades ou contingências perante os subscritores de instrumentos financeiros em causa, e que a responsabilidade (a existir) permaneceu na esfera jurídica do BES, sendo o R. parte ilegítima nos presentes autos. A R. B………… agiu sempre no âmbito das suas funções na qualidade de funcionária do BES e em sua representação, não permitindo os factos invocados pelo A. legitimar um pedido em simultâneo contra o BES e contra a sua ex-funcionária, sendo a R. B………… parte ilegítima.
Impugnaram, ainda, factos alegados.

O R. BES, SA - em Liquidação reiterou o seu pedido de declaração de extinção da instância por inutilidade superveniente da lide, dando conhecimento nos autos de não haver sido interposto nenhum recurso perante o Tribunal Geral contra a decisão do Banco Central Europeu de 13 de julho de 2016.

O A. foi convidado a pronunciar-se sobre a invocada inutilidade superveniente da lide e sobre as exceções invocadas, o que fez.

Foi, então, proferido despacho que decidiu nos seguintes termos: «... julgo procedente a exceção da incompetência em razão da matéria e, consequentemente, absolvo os RR. Banco de Portugal, Fundo de Resolução, CMVM, BES, Novo Banco e B………… da instância, nos termos dos arts. 99º nº 1 e 278º nº 1 al. a) do C.P.C.».

Inconformado, o A. apelou, tendo sido proferida a seguinte deliberação:
«Face ao exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.
Custas pelo apelante.»

De novo inconformado, o A. interpôs recurso de revista, que qualificou como excecional, para o Supremo Tribunal de Justiça, o qual, por despacho da relatora, foi convolado em recurso para o Tribunal dos Conflitos.

O Ex.mº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da confirmação do acórdão recorrido «... no que toca à competência dos tribunais administrativos para o conhecimento dos pedidos formulados na presente acção contra o "Banco de Portugal" e a "CMVM", mas revogado na parte restante, determinando-se a competência material dos tribunais judiciais para o conhecimento dos pedidos formulados contra os restantes demandados ("BES, em liquidação", "Novo Banco, SA ", "Fundo de Resolução" e gestora de conta Lina Maria S. P. Pires)».

II - FUNDAMENTAÇÃO
Dado que a Relação confirmou a decisão da 1ª instância que absolveu todos os RR da instância com fundamento na incompetência em razão da matéria dos tribunais judiciais, a questão que vem submetida à nossa apreciação é a de saber se cabe aos tribunais judiciais ou aos tribunais administrativos o conhecimento do litígio dos autos.

Estabelece o art. 64° do Código de Processo Civil, traduzindo em lei ordinária a norma do art. 211°, nº 1 da CRP (Artigo 211.º
(Competência e especialização dos tribunais judiciais)
1. Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais.), que "são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional".
Também o art. 40°, nº 1, da LOSJ estabelece que os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.
Temos assim que a competência dos tribunais judiciais é residual, ou seja, a eles cabe conhecer de todas as matérias que não forem especificamente atribuídas pela lei a outra jurisdição.
Impõe-se assim, para aferição do acerto desta decisão, e face ao estabelecido naquelas normas, averiguar se está legalmente atribuída aos tribunais administrativos a competência para conhecer da relação jurídica em causa nesta ação.
Nos termos do art. 212°, nº 3 da CRP, "compete aos tribunais administrativos ... o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas ... ".
"Esta qualificação transporta duas dimensões caracterizadoras: (1) as acções e recursos incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos, um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão do poder público (especialmente da administração), (2) as relações jurídicas controvertidas são reguladas, sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo ou fiscal. Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza «privada» ou «jurídico-civil». Em termos positivos, um litígio emergente de relações jurídico-administrativas e fiscais será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal" (Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada, em anotação ao anterior art. 214°, nº 3.).
Estabelece o art. 1º, nº 1 do ETAF (Aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19/02, com as alterações introduzidas pela Declaração de Rectificação n.º 14/2002, de 20/03, pela Declaração de Rectificação n.º 18/2002, de 12/04, pela Lei n.º 4-A/2003, de 19/02, pela Lei n.º 107-D/2003, de 31/12, pela Lei nº. 1/2008, de 14/01, pela Lei n.º 2/2008, de 14/01, pela Lei n.º 26/2008, de 27/06, pela Lei n.º 52/2008, de 28/08, pela Lei n.º 59/2008, de 11/09, pelo Decreto-Lei nº. 166/2009, de 31/07, e pela Lei n.º 55-A/2010, de 31/12, pela Lei n.º 20/2012, de 14/05 e pelo DL n.º 214-G/2015, de 02/10.) que "os tribunais da jurisdição administrativa (...) são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no artigo 4° deste Estatuto".
O art. 4° do mesmo diploma, sob a epígrafe "âmbito da jurisdição" determina, no seu nº 1, que "compete aos tribunais da jurisdição administrativa (...) a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objeto questões relativas a:
a) Tutela de direitos fundamentais e outros direitos e interesses legalmente protegidos, no âmbito de relações jurídicas administrativas (...);
b) Fiscalização da legalidade das normas e demais atos jurídicos emanados por órgãos da Administração Pública, ao abrigo de disposições de direito administrativo (...);
c) Fiscalização da legalidade de atos administrativos praticados por quaisquer órgãos do Estado ou das Regiões Autónomas não integrados na Administração Pública;
d) Fiscalização da legalidade das normas e demais atos jurídicos praticados por quaisquer entidades, independentemente da sua natureza, no exercício de poderes públicos;
e) Validade de atos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes;
f) Responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público, incluindo por danos resultantes do exercício das funções política, legislativa e jurisdicional, sem prejuízo do disposto na alínea a) do n.º 4 do presente artigo;
g) Responsabilidade civil extracontratual dos titulares de órgãos, funcionários, agentes, trabalhadores e demais servidores públicos, incluindo ações de regresso;
h) Responsabilidade civil extracontratual dos demais sujeitos aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas coletivas de direito público;
i) Condenação à remoção de situações constituídas em via de facto, sem título que as legitime;
j) Relações jurídicas entre pessoas coletivas de direito público ou entre órgãos públicos, reguladas por disposições de direito administrativo (...);
k) Prevenção, cessação e reparação de violações a valores e bens constitucionalmente protegidos, em matéria de saúde pública, habitação, educação, ambiente, ordenamento do território, urbanismo, qualidade de vida, património cultural e bens do Estado, quando cometidas por entidades públicas;
l) Impugnações judiciais de decisões da Administração Pública que apliquem coimas no âmbito do ilícito de mera ordenação social por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo;
m) Contencioso eleitoral relativo a órgãos de pessoas coletivas de direito público para que não seja competente outro tribunal;
n) Execução da satisfação de obrigações ou respeito por limitações decorrentes de atos administrativos que não possam ser impostos coercivamente pela Administração;
o) Relações jurídicas administrativas (...) que não digam respeito às matérias previstas nas alíneas anteriores.
2 - Pertence à jurisdição administrativa (...) a competência para dirimir os litígios nos quais devam ser conjuntamente demandadas entidades públicas e particulares entre si ligados por vínculos jurídicos de solidariedade, designadamente por terem concorrido em conjunto para a produção dos mesmos danos ou por terem celebrado entre si contrato de seguro de responsabilidade.
(...)
Para aferir a competência material do tribunal "... deve olhar-se aos termos em que foi posta a acção - seja quanto aos seus elementos objectivos (natureza da providência solicitada ou do direito para o qual se pretende a tutela judiciária, facto ou acto donde teria resultado esse direito, bens pleiteados, etc.), seja quanto aos seus elementos subjectivos (identidade das partes). A competência do tribunal - ensina Redenti - «afere-se pelo quid disputatum (quid decidendum, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum)»; é o que tradicionalmente se costuma exprimir dizendo que a competência se determina pelo pedido do Autor.
E o que está certo para os elementos objectivos da acção está certo ainda para a pessoa dos litigantes.
A competência do tribunal não depende, pois, da legitimidade das partes nem da procedência da acção. É ponto a resolver de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do Autor (compreendidos aí os respectivos fundamentos), não importando averiguar quais deviam ser as partes e os termos dessa pretensão" (Prof. Manuel de Andrade, in Noções Elementares de Processo Civil, 1993, reimpressão, págs. 90-91.).
No caso o A. deduziu:
1 - Pedido de condenação solidária na restituição dos montantes indevidamente aplicados no produto ESFG INTL - XS0303426661, e respetivos juros de mora:
- Contra o BES, Novo Banco e B…………, por violação de deveres contratuais e pré-contratuais;
- Conta o Fundo de Resolução, por ser o detentor do capital social do Novo Banco;
- Contra o Banco de Portugal, por violação dos deveres de supervisão e por ter assumido responsabilidades relativamente aos clientes do BES e do Novo Banco;
- Contra a CMVM por violação dos deveres de supervisão.
2 - Pedido de condenação solidária de todos os RR em indemnização por danos não patrimoniais a liquidar posteriormente.
Assim, relativamente aos RR. Banco de Portugal e CMVM, o A. fundamenta os pedidos na falta de cumprimento dos deveres legais de supervisão e não em qualquer relação contratual que estabelecera com eles, tratando-se, por conseguinte, de responsabilidade civil extracontratual.
Quanto ao R. Fundo de Resolução o A. funda-se na circunstância de este ser detentor da totalidade do capital social do Novo Banco.
E quanto aos demais RR. BES, Novo Banco e B…………, o A. fundamenta o seu pedido na relação contratual estabelecida com o primeiro, a quem "sucedeu" o segundo, e em ser a terceira "funcionária" daqueles.
A Relação considerou caber a competência aos tribunais administrativos, pelo facto do Banco de Portugal e a CMVM serem pessoas coletivas de direito público e os pedidos se fundarem em responsabilidade civil aquiliana.
Apesar dos pedidos relativamente aos demais RR se fundarem em responsabilidade civil contratual, e ser o Fundo de Resolução, também ele pessoa coletiva de direito público, a competência relativamente a todos os RR caberá à jurisdição administrativa, por força do disposto no transcrito nº 2 do art. 4° do ETAF, uma vez que vem pedida a condenação solidária de todos os RR.
Este Tribunal dos Conflitos teve já, por diversas vezes, oportunidade de se pronunciar sobre questão em tudo idêntica à ora em apreço, nomeadamente nos recentes acórdãos de 14.02.2019 proferidos nos processos 031/18 e 046/18, cuja jurisprudência cumpre manter.
Argumenta o A. que a jurisdição comum é a competente relativamente ao Banco de Portugal, nos termos do art. 62° da respetiva Lei Orgânica.
Sobre esta questão escreveu-se no acórdão proferido no processo 031/18, atrás referido:
«O Banco de Portugal "é uma pessoa coletiva de direito público, dotada de autonomia administrativa e financeira e de património próprio" (art. 1° da respectiva Lei Orgânica). Dispõe o art. 62° da mesma Lei Orgânica que, "Sem prejuízo do disposto no artigo 39.º, compete aos tribunais judiciais o julgamento de todos os litígios em que o Banco seja parte, incluindo as acções para efectivação da responsabilidade civil por actos dos seus órgãos, bem como a apreciação da responsabilidade civil dos titulares desses órgãos para com o Banco."
Afigurando-se que a ressalva do art. 39º não tem aplicação à presente lide, ocorre a dificuldade de saber se o regime do art. 62º da Lei Orgânica do Banco de Portugal se manteve em vigor após a entrada em vigor do ETAF e tendo em conta que, de acordo com o art. 7º, nº 3 do Código Civil, "A lei geral não revoga a lei especial, excepto se outra for a intenção inequívoca do legislador".
Tal questão foi objecto de apreciação deste Tribunal dos Conflitos em decisões relativas a outras pessoas colectivas de direito público, para as quais existia/existe também norma de competência especial. Concretamente, nos seguintes acórdãos relativos à REFER, E.P. (ou REFER, E.P.E.):
Acórdão de 23/01/2008 (proc. nº 017/07), consultável em www.dgsi.pt,em cuja fundamentação se pode ler:
"Consideramos, pois, que o legislador ordinário, desde que não descaracterize o modelo típico, segundo o qual a regra é que o âmbito da jurisdição administrativa corresponde à justiça administrativa em sentido material, pode sem ofensa à lei constitucional, alargar o perímetro da jurisdição dos tribunais administrativos a algumas relações jurídicas não administrativas.
2.2. Essa foi, igualmente, a leitura do legislador do actual ETAF que, na exposição de motivos da Proposta de Lei que lhe deu origem (publicada in "Reforma do Contencioso Administrativo" vol. III, p. 14) e que passamos a transcrever, na parte que interessa: " (...) Neste quadro se inscreve a definição do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal que, como a Constituição determina, se faz assentar num critério substantivo, centrado no conceito de "relações jurídicas administrativas e fiscais". Mas sem erigir esse critério num dogma, uma vez que a Constituição, como tem entendido o Tribunal Constitucional, não estabelece uma reserva material absoluta, impeditiva da atribuição aos tribunais comuns de competências em matéria administrativa ou fiscal ou da atribuição à jurisdição administrativa e fiscal de competências em matérias de direito comum. A existência de um modelo típico e de um núcleo próprio da jurisdição administrativa e fiscal não é incompatível com uma certa liberdade de conformação do legislador, justificada por razões de ordem prática, pelo menos quando estejam em causa domínios de fronteira, tantas vezes de complexa resolução, entre o direito público e o direito privado. Neste sentido, reservou-se, naturalmente, para a jurisdição administrativa e fiscal a apreciação dos litígios respeitantes ao núcleo essencial do exercício da função administrativa, com especial destaque para a atribuição à jurisdição administrativa dos processos de expropriação por utilidade pública (...).
Estando ainda em causa a aplicação de um regime de direito público, respeitante a questões relacionadas com o exercício de poderes públicos, pareceu, entretanto, adequado atribuir à jurisdição administrativa a competência para apreciar as questões de responsabilidade emergentes do exercício da função político-legislativa e da função jurisdicional.
Ao mesmo tempo, e dando resposta a reivindicações antigas, optou-se por ampliar o âmbito da jurisdição dos tribunais administrativos em domínios nos quais, tradicionalmente, se colocavam maiores dificuldades no traçar da fronteira com o âmbito da jurisdição dos tribunais comuns.
A jurisdição administrativa passa, assim, a ser competente para a apreciação de todas as questões de responsabilidade civil que envolvam pessoas colectivas de direito público, independentemente da questão de saber se tais questões se regem por um regime de direito público ou por um regime de direito privado. (...)".
É pois, com este alcance que, em sintonia com a intenção do legislador, deve interpretar-se a norma do art. 4°/1/g) do ETAF que atribui ao juiz administrativo competência para conhecer das "questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e da função legislativa".
Temos, assim, que, com a entrada em vigor do actual ETAF, de acordo com a regra geral do art. 4º/1/g) e salvo as excepções subtractivas contidas no nº 3 do mesmo preceito legal, passou a ser da competência do juiz administrativo apreciar todas as questões de responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, quer relativas a relações jurídicas administrativas, quer referentes a relações extra-administrativas, independentemente de serem regidas por um regime de direito público ou por um regime de direito privado. Ou dito de outro modo, nas palavras de Sérvulo Correia, Direito do Contencioso Administrativo, p. 714 o ETAF "privilegiou um factor de incidência subjectiva. Independentemente da natureza jurídica pública ou privada da situação de responsabilidade, esta cabe no âmbito da jurisdição exercida pelos tribunais administrativos só porque é pública a personalidade da entidade alegadamente responsável ou da entidade em que se integram os titulares de órgãos ou servidores públicos".
Significa isto que a qualificação entre actos de gestão pública e actos de gestão privada que, à luz do art. 51°/1/h) do anterior ETAF, aprovado pelo DL nº 129/84, de 27 de Abril, era critério operativo da repartição de competências entre os tribunais da ordem administrativa e os tribunais da ordem comum, nas "acções sobre responsabilidade civil do Estado, dos demais entes públicos" passou a ser irrelevante para este efeito. O interesse nessa distinção passou a estar confinado, apenas, ao direito material. O juiz administrativo não fica dispensado de proceder à qualificação da relação controvertida, visto que da natureza da origem da responsabilidade - acto de gestão pública ou acto de gestão privada - dependerá a determinação do regime substantivo aplicável.
A interpretação ora defendida coincide com o entendimento da Doutrina Freitas do Amaral e Aroso de Almeida, in "Grandes Linhas da Reforma do Contencioso Administrativo", p. 32; Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira, "Código de Processo Nos Tribunais Administrativos e Fiscais", p. 59; Sérvulo Correia, in "Direito do Contencioso Administrativo", p. 714" (...)"
[...]
[A] Exposição de Motivos parcialmente transcrita supra em 2.2. dá nota de que o legislador quis alargar o âmbito da jurisdição administrativa, no domínio da responsabilidade civil extracontratual, com a intenção inequívoca de eliminar conflitos de jurisdição e que foi com essa motivação confessada que determinou que passava a caber à jurisdição administrativa a apreciação de todas as questões de responsabilidade civil das pessoas colectivas de direito público, independentemente de saber se tais questões se regem por um regime de direito público ou por um regime de direito privado.
Deste modo, é de concluir que, (i) neste específico domínio, a lei nova veio regular toda a matéria da lei anterior, (ii) tendo o propósito claro de suprimir os regimes especiais desconformes, eliminando potenciais fontes de conflitos e que (iii) por consequência, por força do disposto no art. 7°, nºs 2 (parte final) e nº 3 (2ª parte) do C. Civil, deve considerar-se revogada a norma do art. 32º/1 do DL nº 104/97, de 29 de Abril, atributiva de competência aos tribunais da jurisdição comum. (Norma relativa à REFER que era parte no processo em que foi proferido o aresto parcialmente reproduzido e que dispunha de forma idêntica ao art. 62° da Lei Orgânica do Banco de Portugal, em causa nos presentes autos.)
[...]»
Este entendimento foi mantido no acórdão de 12/05/2016 (proc. nº 049/15), consultável em www.dgsi.pt, em que também era parte a REFER.
E concluiu-se no acórdão de 14.02.2019, proc. 031/18, que vimos transcrevendo:
«Aqui chegados, considera-se que esta orientação - pela qual se entende que a norma especial sobre a competência material, contida nos Estatutos da REFER, foi tacitamente revogada pelo Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro - é válida para a situação sub judice. E, assim, considera-se que a norma do art. 62° da Lei Orgânica do Banco de Portugal (atribuindo aos tribunais judiciais a competência para julgar todos os litígios em que aquele seja parte, incluindo as acções de responsabilidade civil) foi tacitamente revogada pelo ETAF, pelo qual foi atribuída à jurisdição administrativa e fiscal competência para conhecer das acções de responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público (nos termos do art. 4°, nº 1, alínea g), correspondente ao actual art. 4°, nº 1, alínea f), após alteração introduzida pelo Decreto-Lei nº 214-G/2015).»
Subscrevemos inteiramente este entendimento, concluindo-se assim que relativamente ao Banco de Portugal a competência para conhecer da ação cabe à jurisdição administrativa, como decidido no acórdão recorrido.
Relativamente aos demais RR pode ler-se no acórdão de 14.02.2019, proferido no processo 046/18 a que atrás também aludimos:
«Considerando o pedido do A, em si mesmo, e os respectivos fundamentos, a sua pretensão em obter a condenação de todos os RR a pagar-lhe, solidariamente, uma indemnização estrutura-se, por um lado, quanto às 1ª (BES) e 2ª RR (Gestor de conta.), na obrigação decorrente da violação de deveres contratuais e da prática de factos tidos por ilícitos, enquanto em relação à 3ª R (Novo Banco SA), apenas na alegada transferência para a mesma da responsabilidade (originária) da BES SA e, por sua vez, o fundamento da responsabilidade do Fundo de Resolução (4º R) pela satisfação de tal obrigação repousaria, simplesmente, no facto de, por força da supra aludida medida de resolução adoptada pelo Banco de Portugal, ser ele o único detentor do capital do Novo Banco.
Por outro lado, o alargamento dessa suposta responsabilidade solidária ao Banco de Portugal e à CMVM (5° e 6ª RR) já se estribaria, muito diferentemente, no incumprimento dos deveres de supervisão bancária, na prestação de informações erróneas ao mercado e nos actos cometidos no contexto da resolução do BES, nomeadamente, nas deliberações adoptadas, logo em 3-08-2014 (medida de resolução) e subsequentemente.
Portanto, no caso em apreço, da análise do pedido formulado na acção e das respectivas causas de pedir resulta que o A acciona a responsabilidade civil contratual e extracontratual das 1ª (BES) a [2ª] RR (2° R. - Gestor de conta e não 3° R. - Novo Banco, como por lapso evidente se escreveu no acórdão que estamos a reproduzir.), pelo que o conhecimento do pedido contra estas dirigido, incidindo sobre relações inequivocamente privatísticas, compete à jurisdição comum, por não dever nem poder ser deduzido na jurisdição administrativa. Conclusão que se estendeu à 3ª R (Novo Banco SA) porque o A, embora sem a envolver na prática de qualquer dos factos ilícitos em que fundamenta a constituição da obrigação de indemnizar das duas primeiras RR, estrutura a respectiva responsabilidade na sua alegada qualidade de sucessora nos direitos e obrigações da 1ª R (BES SA).
Quanto aos demais RR, Banco de Portugal, Comissão do Mercado de Valores Mobiliários e Fundo de Resolução, são todos pessoas colectivas de direito público, como resulta do art. 1° da Lei Orgânica do primeiro (Lei 5/98, de 31/1), do art. 1° dos Estatutos da segunda (DL 5/2015, de 8/1) e, quanto ao último, do art. 153°-B do RGICSF (DL 298/92, de 31/12, com a actualização da Lei 23-A/2015, de 26/03).
Ora, relativamente às entidades públicas BdP e CMVM, dada a configuração da acção feita pelo A, suscita-se, claramente, a responsabilidade civil extracontratual de pessoas colectivas de direito público, radicando os danos que, alegadamente, o mesmo sofreu e que fundam os direitos que pretende exercer - consistentes no ressarcimento de tais danos - em actos cometidos no exercício de funções públicas ou na prossecução de um interesse público, uma vez que, sem a invocação de qualquer relação contratual com eles estabelecida, se fundamentam na falta de cumprimento dos deveres - essencialmente de supervisão - que sobre eles impendiam, tendo em conta as funções determinadas pela lei.
Especificamente quanto ao Fundo de Resolução, que vem demandado, apenas, com base na titularidade do capital do «Novo Banco» - e, igualmente, sem que lhe seja imputado qualquer concreto facto ilícito -, não só essa titularidade tem origem na aludida medida de resolução bancária decretada pelo Banco de Portugal, como a sua responsabilidade apenas se poderia estribar na sua qualidade de instrumento (dependente) da entidade pública junto da qual funciona para lhe prestar apoio financeiro à aplicação de medidas de resolução pela mesma adotadas (cf. art. 153°-C do citado RGICSF), ou seja, no caso em apreço, para a execução das deliberações do Banco de Portugal concernentes à medida de resolução tomada em relação ao BES no exercício de funções públicas e na prossecução de um interesse público.
Todavia, no que concerne a este R, considerando o estritamente alegado quanto à fundamentação da sua demanda - ser ele o único detentor do capital do Novo Banco - e o uniformemente decidido nos precedentes arestos deste Tribunal, deve concluir-se que também cabe aos tribunais judiciais a competência para conhecer a pretensão deduzida contra o mesmo.
É certo que, como supra foi relatado, o A formulou um pedido de condenação solidária de todos os RR a pagarem-lhe determinada quantia em dinheiro e respectivos juros, bem como o valor dos danos não patrimoniais. Contudo, não enfermou os fundamentos dessa sua pretensão com qualquer espécie de intervenção das entidades públicas nos factos ilícitos imputados às 1ªs RR, pelo que não ressuma da PI o fundamento previsto no citado nº 2 do art. 4º do ETAF para deverem ser demandados conjuntamente todos os RR, porquanto não se vê em que medida aqueles entes poderiam estar ligados por vínculos jurídicos de solidariedade com as demais RR (particulares), designadamente por terem concorrido em conjunto com estas para a produção dos mesmos danos (Mário Aroso de Almeida [Em "Manual de Processo Administrativo", Almedina, 3ª ed., pp. 253-254] refere que aquela regra procurou obviar a dificuldades que se vinham suscitando «quanto à competência dos tribunais administrativos para conhecer de ações de responsabilidade civil quando se verifique o chamamento ao processo de sujeitos privados que se encontrem envolvidos com a Administração ou com outros particulares numa relação jurídica administrativa ou no âmbito de uma relação conexa com a relação principal que constitui objeto do litígio».).
Como uniformemente foi ponderado nos arestos deste Tribunal precedentemente referenciados, a solidariedade nas obrigações, tal como decorre do artigo 513º do CC, só existe quando resulta da lei ou da vontade das partes. Não basta, deste modo, pedir ao Tribunal que condene solidariamente, sendo necessário alegar os factos - para os poder vir a demonstrar - «de que deriva a obrigação de indemnizar e, em caso de pluralidade de responsáveis, que as obrigações tenham entre si uma relação de solidariedade, que, em caso de procedência, fundamente a condenação solidária» [cit. acórdão de 22-03-2018 (p. 56/17)].
Em suma, no caso concreto, apenas em parte concordamos com o ajuizado pela Relação de Lisboa, pois a configuração da acção feita pelo A mostra que, enquanto relativamente aos 1ª a 4° RR(1° BES, 2° gestor de conta, 3° Novo Banco e 4° Fundo de Resolução.) a questão em que se funda a obrigação de indemnizar solicitada é, essencialmente e apenas, de direito privado, já quanto aos 5° e 6ª RR(5° Banco de Portugal e 6° CMVM.) está em apreço uma questão emergente de uma relação jurídica administrativa, regulada por normas de direito administrativo, atributivas de prerrogativas de autoridade»

Concordamos com estas considerações que inteiramente subscrevemos.
Em conclusão e na esteira da jurisprudência mais recente deste Tribunal dos Conflitos, cabe à jurisdição administrativa a competência para conhecer da ação relativamente ao Banco de Portugal e à CMVM e à jurisdição comum a competência relativamente aos demais RR.

III - DECISÃO
Pelo exposto delibera-se:
1 - Julgar o recurso parcialmente procedente;
2 - Revogar a decisão recorrida na parte em que absolveu da instância os RR. Banco Espírito Santo, SA., o Novo Banco, SA., o Fundo de Resolução e B…………;
3 - Atribuir a competência para a ação relativamente aos RR. Banco Espírito Santo, SA., Novo Banco, SA., Fundo de Resolução e B…………, à jurisdição comum;
4 - Confirmar o acórdão recorrido na parte em absolveu da instância os RR Banco de Portugal e a CMVM - Comissão de Mercado de Valores Mobiliários e atribuir a competência à jurisdição administrativa.
5 - Sem custas.

Lisboa, 30 de maio de 2019. – António Manuel Ribeiro Cardoso (relator) – Ana Paula Soares Leite Martins Portela – Olindo dos Santos Geraldes – Maria do Céu Dias Rosa das Neves – Maria da Graça Machado Trigo Franco Frazão – Maria Benedita Malaquias Pires Urbano.