Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:037/15
Data do Acordão:01/11/2017
Tribunal:CONFLITOS
Relator:JOSÉ VELOSO
Descritores:CONFLITO DE JURISDIÇÃO. ACIDENTE RODOVIÁRIO. CONCESSIONÁRIA.
Sumário:Os tribunais da jurisdição administrativa são os competentes, ratione materiae, para conhecer de acção em que uma SEGURADORA responsabiliza a A….. pela ocorrência de um acidente em auto-estrada que lhe está concessionada, provocado por um pneu existente na via, e que provocou danos que ela pagou ao seu segurado.
Nº Convencional:JSTA000P21294
Nº do Documento:SAC20170111037
Data de Entrada:09/10/2015
Recorrente:B......., S.A., NO CONLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO ENTRE A COMARCA DE LISBOA NORTE, ALENQUER,INSTÂNCIA LOCAL - SECÇÃO CÍVEL - J1 E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO DE CIRCULO DE LISBOA, UNIDADE ORGÂNICA 1.
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: I. Relatório
1. B……, SA - com sede ………………… - demandou no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte - Instância Local de Alenquer, Secção Cível, a A………, S.A. - com sede ……………… - mediante acção declarativa de condenação, e sob a forma de processo comum, pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia total 3.180,08€ acrescida de juros de mora, à taxa legal, vencidos a partir da citação até integral pagamento [folhas 9 e 10 dos autos].

A quanto líquida é peticionada a título de ressarcimento de danos patrimoniais que alega ter pago ao seu segurado – C……….. - em virtude do contrato de seguro entre eles vigente, e cuja produção se deve a um acidente rodoviário ocorrido no dia 20.08.2012 na A1 - …………. - que consistiu no embate do veículo por ele conduzido - Alfa Romeo ……… - num pneu de grandes dimensões que obstruía por completo a faixa de rodagem por onde seguia [folhas 4 a 10].

A demandada A…….. «impugnou» a versão do acidente rodoviário apresentada pela autora, e requereu a intervenção acessória da D………., SA [folhas 32 a 41].

Por despacho de 27.02.2015, após ter suscitado a questão e ter cumprido, a tal respeito, o princípio do contraditório, o Tribunal Judicial de Alenquer considerou a jurisdição comum incompetente em razão da matéria, para apreciar e decidir o litígio, por entender que a mesma pertencia à jurisdição administrativa [folhas 104 a 107].

2. Enviados os autos ao Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa [TAC/L], por solicitação da autora, este, por decisão de 05.05.2015, considerou a jurisdição administrativa materialmente incompetente, por entender, por seu lado, que tal competência cabia aos tribunais da jurisdição comum [folhas 120 a 122].

3. A solicitação da autora, foram os autos enviados a este Tribunal de Conflitos, onde o Ministério Público se pronunciou no sentido do conflito ser resolvido, na linha do que tem vindo a entender maioritariamente a jurisprudência, mediante a atribuição de competência, em razão da matéria, para apreciar e decidir este litígio, aos tribunais da jurisdição administrativa, nos termos do artigo 4º, nº1, alínea i), do ETAF.

4. Colhidos que foram os «vistos» legais, importa apreciar, e decidir, o conflito negativo de jurisdição.

II. Apreciação

1. A questão colocada a este Tribunal de Conflitos reconduz-se apenas a definir se a «competência em razão da matéria» para a apreciação do litígio vertido na acção declarativa de condenação aqui em causa cabe aos tribunais da jurisdição comum ou aos tribunais da jurisdição administrativa.

O tribunal da jurisdição comum que sobre a questão se pronunciou, o Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte - Instância Local de Alenquer, arredou de si tal competência por entender, fundamentalmente, que a pretensão formulada pela autora nos presentes autos se insere no domínio da responsabilidade civil extracontratual das concessionárias de auto-estradas por actividade decorrente da exploração das mesmas, sendo que, em face do disposto nos artigos 1º nº5 da Lei nº67/2007, de 31.12, e 4º nº1 alínea i), do ETAF, a competência material para conhecer do litígio pertence aos tribunais da jurisdição administrativa.

O tribunal da jurisdição administrativa entendeu, e por sua vez, que estamos no quadro do direito privado, porque a «omissão de vigilância e manutenção da via em condições de segurança» que é imputada à A….. não integra uma omissão de conduta que tenha a ver com o exercício de poderes de autoridade, portanto «não enquadrável no artigo 1º, nº5, da Lei nº67/2007, de 31.12, nem no artigo 4º, nº1 alínea i), do ETAF». Daí que o conhecimento do litígio caia no âmbito da competência material dos tribunais da jurisdição comum.

2. Os tribunais são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo [artigo 202º da CRP], sendo que cabe aos tribunais judiciais a competência para julgar as causas «que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional» [artigos 211º, nº1, da CRP; 64º do CPC; e actual 40º, nº1, da Lei nº62/2013, de 26.08], e aos tribunais administrativos a competência para julgar as causas «emergentes de relações jurídicas administrativas» [artigos 212, nº3, da CRP, 1º, nº1, do ETAF 2004, aqui aplicável].

Assim, na sequência das normas constitucionais e legais, e tal como vem sendo entendido, aos tribunais judiciais, ou da chamada jurisdição comum assiste uma competência genérica e residual, pois são competentes para «todas as causas» que «não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional».

Os tribunais administrativos, por seu turno, não obstante terem a competência limitada aos litígios que emerjam de «relações jurídicas administrativas», são os tribunais comuns em matéria administrativa, tendo «reserva de jurisdição nessa matéria, excepto nos casos em que, pontualmente, a lei atribua competência a outra jurisdição» [ver AC TC nº508/94, de 14.07.94, in Processo nº777/92, e AC TC nº347/97, de 29.04.97, in Processo nº139/95].

A cada uma destas duas jurisdições, comum e administrativa, caberá, portanto, um determinado «quinhão» do poder jurisdicional que, em bloco, pertence aos «tribunais», sendo que o mesmo é determinado essencialmente em função das matérias versadas nos diferentes litígios carentes de tutela jurisdicional, isto é, em função do «objecto» de cada processo instaurado em tribunal.

E, como é pacífico na doutrina e na jurisprudência, a competência material do tribunal «afere-se pelo pedido e pela causa de pedir», ou seja, pela natureza da relação jurídica «tal como ela é configurada pelo respectivo autor» [por todos, AC STA de 27.09.2001, Rº47633; AC STA de 28.11.2002, Rº1674/02; AC STA de 19.02.2003, Rº47636; AC Tribunal de Conflitos de 02.07.2002, 01/02; AC Tribunal de Conflitos de 05.02.2003, 06/02; AC Tribunal de Conflitos de 23.09.04, 05/05; AC Tribunal de Conflitos 04.10.2006, 03/06; AC Tribunal de Conflitos de 17.05.2007, 05/07; AC Tribunal de Conflitos de 29.03.2011, 025/10].

3. Ora, de acordo com a relação jurídica configurada pela autora, depare-se-nos o exercício, por ela, numa situação de sub-rogada nos direitos do seu segurado, da «responsabilização extracontratual da ré» por danos decorrentes de acidente de viação, ocorrido em 20.08.2012 na A1, e que consistiu no embate do veículo automóvel ligeiro segurado num pneu, de grandes dimensões, que obstruía por completo a faixa de rodagem por onde circulava.

Este Tribunal de Conflitos tem produzido, ultimamente, jurisprudência unânime no sentido de que, em casos como o presente, a competência material pertence «aos tribunais da jurisdição administrativa» [ver, a título de exemplo, AC Tribunal de Conflitos de 27.02.2014, Conflito nº048/13; AC Tribunal de Conflitos de 27.03.2014, Conflito nº046/13; AC Tribunal de Conflitos de 12.03.2015, Conflito nº049/14; AC Tribunal de Conflitos de 23.03.2015, Conflito nº053/14; AC Tribunal de Conflitos de 22.04.2015, Conflito nº011/15; AC Tribunal de Conflitos de 09.07.2015, Conflito nº021/15; AC Tribunal de Conflitos de 22.10.2015, Conflito nº016/15; AC Tribunal de Conflitos de 12.11.2015, Conflito nº024/15; AC Tribunal de Conflitos de 04.02.2016, Conflito nº017/15; AC Tribunal de Conflitos de 04.02.2016, Conflito nº025/15; AC Tribunal de Conflitos de 21.04.2016, Conflito nº06/16; e AC Tribunal de Conflitos de 20.10.2016, Conflito nº21/16].

E é esta via jurisprudencial que aqui adoptamos, convictos de que a mesma é a que corresponde à melhor interpretação [artigo 9º do CC] e aplicação das pertinentes normas legais.

4. No artigo 4º do ETAF aqui aplicável [em vigor desde 01.01.2004, e antes da alteração que lhe foi efectuada em 2015] é feita uma enumeração exemplificativa de matérias litigadas cujo conhecimento pertence [alíneas do nº1] ou não pertence [alíneas do nºs 2 e 3] aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal.

Entre elas se destaca, por pertinente ao presente caso, a alínea i), do nº1, na qual se reserva à jurisdição administrativa a apreciação de litígios que tenham por objecto «i) Responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados, aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público».

Na altura dos factos destes autos - 2012 - vigorava, há muito, a Lei nº67/2007, de 31.12, que aprovou o «Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas», e que estipula, no nº5 do seu artigo 1º, que «As disposições que, na presente lei, regulam a responsabilidade das pessoas colectivas de direito público, bem como dos titulares dos seus órgãos, funcionários e agentes, por danos decorrentes do exercício da função administrativa, são também aplicáveis à responsabilidade civil de pessoas colectivas de direito privado e respectivos trabalhadores, titulares de órgãos sociais, representantes legais e auxiliares, por acções e omissões que adoptem no exercício de prerrogativas de poder público ou que sejam reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo».

Como escreve Carlos Cadilha «A submissão de entidades privadas ao regime de responsabilidade civil da Administração [com a consequente sujeição ao contencioso administrativo] terá, portanto, de ser definida casuisticamente em função da natureza jurídica dos poderes que tais entidades tenham exercitado em dada situação concreta. Por outro lado, tal como de resto sucede em relação a órgãos e serviços que integram a Administração Pública, o regime de responsabilidade administrativa é apenas aplicado no que se refere às acções ou omissões em que essas entidades tenham intervindo investidas de poderes de autoridade ou segundo um regime de direito administrativo, ficando excluídos os actos de gestão privada e, assim, todas as situações em que tenham agido no âmbito do seu estrito estatuto de pessoas colectivas de direito privado…» - in «Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas Anotado», 2ª edição, página 55.

Ora, como considerou este Tribunal de Conflitos, «A construção de uma auto-estrada, a sua exploração, manutenção, vigilância e segurança, nomeadamente do tráfego, são tarefas próprias da administração do Estado, não significando que a respectiva concessão a uma entidade privada determine a perda da sua natureza pública administrativa, pois que a mesma se mantém regulada e fiscalizada à luz de normas jurídicas administrativas inscritas no próprio contrato» - AC Tribunal de Conflitos de 22.10.2015, Conflito nº016/15.

No presente caso, o DL nº294/97, de 24.10, aprovou o contrato de concessão de construção, conservação e exploração de auto-estradas, outorgado à A….., o qual, pelo menos a partir da vigência do DL nº247-C/2008, de 30.12, integra as «Bases» XXXIII - sobre a «conservação das auto-estradas» - e XXXVI - sobre a «manutenção e disciplina do tráfego» - que estipulam assim:

«XXXIII - 1- A concessionária deverá manter as auto-estradas que constituem o objecto da concessão em bom estado de conservação e perfeitas condições de utilização, realizando, nas devidas oportunidades, todos os trabalhos necessários para que as mesmas satisfaçam cabal e permanentemente o fim a que se destinam, em obediência a padrões de qualidade que melhor atendam os direitos do utente […]».

«XXXVI – […] 2 - A concessionária será obrigada, salvo caso de força maior devidamente verificado, a assegurar permanentemente, em boas condições de segurança e comodidade, a circulação nas auto-estradas, quer tenham sido por si construídas quer lhe tenham sido entregues para conservação e exploração, sujeitas ou não ao regime de portagem […]».

5. Constituindo fundamento do pedido de indemnização formulado pela autora, na situação de sub-rogada, «na medida do montante pago, nos direitos do seu segurado contra terceiro responsável pelo sinistro» [artigo 136º, nº1, do DL nº72/2008, de 16.04], o incumprimento destes deveres que oneram a A…..., enquanto entidade concessionária da A1, e que se integram na actividade de garantir a segurança do tráfego nessa auto-estrada, deve concluir-se que tal incumprimento ocorreu «no exercício de prerrogativas de poder público e é regulado por disposições de direito administrativo».

Destarte, inserindo-se a responsabilização da A…. no âmbito de aplicação do citado artigo 1º, nº5, da Lei nº67/2007, de 31.12, resulta serem os tribunais da jurisdição administrativa os materialmente competentes para conhecerem deste litígio ao abrigo do artigo 4º, nº1, alínea i), do ETAF.

III. Decisão

Nestes termos, decidimos o presente «conflito de jurisdição», atribuindo aos tribunais da jurisdição administrativa a competência, em razão da matéria, para conhecer do objecto desta acção declarativa de condenação.

Sem custas

Lisboa, 11 de Janeiro de 2017. – José Augusto Araújo Veloso (relator) – António Leones Dantas – José Francisco Fonseca da Paz – António Alexandre dos Reis – Maria Benedita Malaquias Pires Urbano – Ana Paula Lopes Martins Boularot.