Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:032/20
Data do Acordão:09/29/2021
Tribunal:CONFLITOS
Relator:TERESA DE SOUSA
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
GARANTIA BANCÁRIA
EMPREITADA DE OBRAS PÚBLICAS
Sumário:Compete à jurisdição administrativa e fiscal o conhecimento de um litígio no qual se pretende ver discutida a execução do contrato de empreitada de obras públicas, que é o contrato base da garantia bancária, e daí retirar a consequência da eventual ilegalidade do accionamento de tal garantia e ressarcimento dos danos que o seu pagamento causou.
Nº Convencional:JSTA000P28204
Nº do Documento:SAC20210929032
Data de Entrada:11/27/2020
Recorrente:A................., LDA NO CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE BRAGA - JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE GUIMARÃES – JUIZ 2 E OS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS E FISCAIS
Recorrido 1:ENGENHO - ASSOCIAÇÃO DE DESENVOLVIMENTO LOCAL DO VALE DO ESTE
B...............
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Conflito n.º 32/20

Acordam no Tribunal dos Conflitos

1. Relatório
A……………, LDA. intentou no Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo Central Cível de Guimarães acção declarativa de condenação contra ENGENHO – ASSOCIAÇÃO DE DESENVOLVIMENTO LOCAL DO VALE DO ESTE e B…………………., LDA.
A Autora alega, em síntese, que celebrou em 29/10/2011 com a 1ª Ré um contrato de empreitada de construção de lar de idosos e serviço de apoio domiciliário e que, para garantia do cumprimento das suas obrigações no âmbito deste contrato de empreitada, foi emitida pela Caixa Geral de Depósitos, a pedido da A. e a favor da 1ª R., uma garantia bancária autónoma e à primeira solicitação, pelo valor de €132.750,00. A obra foi finalizada e entregue à 1.ª Ré em 05.03.2014.
Alega, ainda, que no dia 22.03.2019 a 1ª R accionou a garantia bancária junto da CGD, pelo valor de €57.400,00, e que tal se deveu, segundo informação da mesma, para ser ressarcida dos custos que se viu obrigada a suportar para substituição e reparação de materiais e equipamentos instalados/integrados no sistema AVAC da obra. A Autora alega que a garantia bancária foi abusivamente accionada na medida em que nenhum dos alegados defeitos detectados pela 1ª Ré foi resultado de uma deficiente execução da obra de instalação do sistema de AVAC e não foi comunicado à A qual o valor das reparações efectuadas.
Termina pedindo que a 1ª Ré seja condenada a pagar-lhe uma indemnização no valor de €57.400,00, correspondente ao valor que teve de pagar à CGD por força do accionamento (indevido) da garantia bancária e juros e, se assim se não atender, pede subsidiariamente que seja a 2ª Ré condenada a pagar-lhe aquele valor, por força do direito de regresso.
As RR. contestaram e, além do mais, excepcionaram a incompetência material do Tribunal.
Em 04.02.2020, no Juízo Central Cível de Guimarães, foi proferida decisão (fls. 278 a 281) considerando que «o litígio emergente do contrato celebrado entre a A. e a 1.ª R. foi antecedido de um procedimento pré-contratual aberto para o efeito e tramitado nos termos do Decreto-Lei n.º 197/99, de 8 de junho (que regula o Regime Jurídico da Realização de Despesas Públicas e da Contratação Pública), inquestionável se torna que o mesmo se insere no âmbito de aplicação do art. 4º, n.º 1, al. e), do ETAF» e, por isso, declarou a incompetência em razão da matéria do Tribunal.
Inconformada, a A. interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Guimarães.
Por acórdão de 24.09.2020 decidiu o Tribunal da Relação de Guimarães julgar totalmente improcedente o recurso de apelação interposto. Entendeu aquele Tribunal, que «saber se a garantia foi mal executada por parte da 1.ª R, o outro contraente no contrato de obra pública, no âmbito da relação jurídica que abarca A. e 1ª R., envolve a apreciação da (boa ou má) execução do contrato de empreitada, e seu incumprimento. Essa será não apenas uma questão incidental do litígio (…) mas antes integra a causa de pedir. Por outras palavras, a execução da garantia pela 1ª R é, neste caso, uma questão/relação intrínseca ao próprio contrato de empreitada de obra pública, envolvendo a apreciação deste e das normas que impõe a prestação de caução (sua finalidade e âmbito)». E, no seguimento de jurisprudência que cita, conclui «ser sempre de ter em consideração nas concretas acções, as causas de pedir de tal modo que, quando apenas se invoca o ilegal accionamento da garantia à primeira solicitação, a competência é dos tribunais judiciais, e quando o litígio não se reconduza à simples apreciação da legalidade do acionamento da garantia autónoma junto ao banco devedor, mas nele se pretenda ver discutida a execução do contrato de empreitada (ou outro) que lhe estava subjacente e, por via disso, da legalidade daquele acionamento e do eventual ressarcimento dos danos decorrentes do pagamento da garantia, a competência já pertence aos tribunais administrativos”.
De novo inconformada, a A. veio interpor recurso para este Tribunal dos Conflitos, formulando as seguintes conclusões:
“1. O presente litígio resultou do incumprimento de um contrato de garantia bancária, cuja celebração e execução estão sujeitas a regras de direito civil, privado e bancário.
2. Consequentemente, o pedido principal formulado pela Apelante é de condenação da 1.ª Ré "a pagar” (...) "uma indemnização no valor de € 57.400,00, correspondente ao valor pago pela Apelante à CGD por força do acionamento abusivo da Garantia Bancária".
Assim,
3. A relação jurídica que aqui releva, para determinação da competência material dos tribunais, é a relação resultante do contrato de garantia bancária, contrato atípico e inominado de onde emerge uma relação jurídica entre a Apelante, a 1ª Ré e a CGD, sujeita a regras próprias, de natureza civil e bancária.
4. O Tribunal de Conflitos decidiu já no sentido da legitimidade material dos Tribunais Comuns para julgar um litígio emergente de um contrato de garantia bancária celebrado em consequência e em cumprimento de um contrato de empreitada de obra pública, em Acórdão proferido no processo n.º 029/12, de 05.11.2013, disponível em www.dgsi.pt.
5. O litígio dos autos implica a análise da eventual violação do contrato de empreitada, mas tal análise tem carácter incidental.
6. Isto porque a eventual violação do contrato de empreitada, para além de não ser a questão relativamente à qual se pretende que o Tribunal decida, é apenas um ponto, entre outros invocados pela Recorrente nesta ação, com relevância para determinar se terá, ou não, ocorrido a violação do contrato de garantia bancária.
7. O carácter incidental deste ponto resulta também do facto de a Recorrente invocar, ao longo da ação, outros argumentos de direito que, estando totalmente desligados da questão do cumprimento ou incumprimento do contrato de empreitada, por si só, também são fundamento da ilicitude do acionamento da garantia bancária.
8. Assim, os Tribunais Comuns têm legitimidade para apreciar a ação, ao abrigo do disposto no artigo 91.º do CPC.
Acresce que,
9. Nunca foram comunicados à Recorrente os valores de reparação dos alegados defeitos, o que, por si só, consubstancia uma violação do contrato de garantia bancária.
10. O relatório remetido à Recorrente pela 1.ª Ré, elaborado pela entidade C………….., Lda. - documento 7 da petição inicial - não faz referência a qualquer valor de reparação, nem nunca a 1.ª Ré especificou esses valores.
11. A não comunicação à Recorrente dos valores que seriam alocados a cada uma das reparações impossibilita à Recorrente perceber se, e em que medida, o valor pelo qual a garantia foi acionada tem, ou não, fundamento.
12. Trata-se, por isso, de uma situação de incumprimento do contrato de garantia bancária, por não cumprimento das regras legais para o seu acionamento (artigo 762/2 CC - violação dever de informação, lealdade e transparência), pelo que são aqui aplicáveis regras de direito civil e bancário.
13. O mesmo entendimento se tem relativamente ao pedido subsidiário da presente ação.
14. O pedido subsidiário dirigido à 2.ª Ré funda-se na existência de um direito de regresso da Recorrente, legalmente consagrado no artigo 1226.º do CC, que se constituiu na sua esfera por força da Lei e em consequência da celebração com a 2.ª Ré de um contrato de subempreitada.
15. Também quanto a esta questão, a jurisprudência do Tribunal de Conflitos vai no sentido de considerar competentes para julgar os Tribunais Comuns/Judiciais (cfr. douto Acórdão do Tribunal de Conflitos proferido no processo 067/17, de 07.06.2018, disponível em www.dgsi.pt).
16. Não enquadrando nenhuma das questões em qualquer uma das alíneas do artigo 4.º do ETAF.
17. Assim, e salvo o devido respeito, discordamos do douto Tribunal da Relação de Guimarães ao decidir pela incompetência material do Juízo Central Cível de Guimarães para apreciar o litígio, tendo com tal decisão violado o artigo 64º do CPC,
Termos em que se requer ao Tribunal de Conflitos que fixe definitivamente o tribunal competente para julgar a questão.”
Neste Tribunal dos Conflitos foram recebidos os autos e as partes notificadas para efeitos do disposto no nº 3 do art. 11º da Lei nº 91/2019.
A Ré B……………….. veio defender a competência dos tribunais administrativos e fiscais para a resolução do litígio em discussão.
A Exma. Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da atribuição da competência aos tribunais da jurisdição administrativa.

2. Os Factos
Os factos provados com interesse para a decisão do conflito são os constantes do relatório.

3. O Direito
Cabe aos tribunais judiciais a competência para julgar as causas “que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional” [artigos 211º, nº 1, da CRP, 64º do CPC e 40º, n.º1 da Lei nº 62/2013, de 26/8 (LOSJ)], e aos tribunais administrativos e fiscais a competência para julgar as causas “emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais” [artigos 212º, nº 3, da CRP, 1º, nº1 do ETAF].
A competência dos tribunais administrativos e fiscais é concretizada no art. 4º do ETAF com delimitação do “âmbito da jurisdição” mediante uma enunciação positiva (nºs 1 e 2) e negativa (nºs 3 e 4).
Tem sido reafirmado por este Tribunal, e constitui entendimento jurisprudencial e doutrinário consensual, que a competência material do tribunal se afere em função do modo como o autor configura a acção e que a mesma se fixa no momento em que a mesma é proposta. Como se afirmou no Ac. deste Tribunal de 01.10.2015, Proc. nº 08/14: “A competência é questão que se resolve de acordo com os termos da pretensão do Autor, aí compreendidos os respectivos fundamentos e a identidade das partes, não importando averiguar quais deviam ser os termos dessa pretensão, considerando a realidade fáctica efectivamente existente ou o correcto entendimento do regime jurídico aplicável. O Tribunal dos Conflitos tem reafirmado constantemente que o que releva, para o efeito do estabelecimento da competência, é o modo como o Autor estrutura a causa e exprime a sua pretensão em juízo”.
É, pois, a partir da análise da forma como a causa se mostra estruturada que iremos encontrar a resposta à questão de saber qual é a jurisdição competente para o conhecimento da presente acção.
Não vem questionado, e as partes concordam, que o contrato de empreitada foi celebrado entre a A. e a 1ª Ré com sujeição às regras da contratação pública e que a apreciação dos litígios dele decorrentes são da competência dos tribunais administrativos.
O que está aqui controvertido é a competência para apreciar o pedido de indemnização em valor correspondente ao valor pago pela A. à CGD por força do acionamento alegadamente abusivo ou ilícito da garantia bancária.
Como se diz no acórdão do STJ de 23.06.2016, Proc. 414/14.9TVLSB.L1.S1, «a garantia autónoma (Garantievertrag), cuja teorização remonta ao final do século XIX, com a paternidade atribuída a Rudolf Stammler, tendo como antecedente remoto a figura romana da promissio indemnitatis, é uma forma contratual típica quanto à sua existência, atípica quanto à sua regulamentação, âmbito em que vigora o princípio da liberdade contratual (artº 405º do Código Civil) e que assenta, em regra, num triângulo cujas faces correspondem a três relações contratuais distintas: uma primeira referente ao contrato-base, também chamado principal, ou seja o celebrado entre o credor garantido e o devedor (ordenante ou ordenador), do qual decorrem as obrigações garantidas; uma segunda relativa ao contrato concluído entre o devedor desse primeiro contrato e um garante, normalmente, um banco, pelo qual este se vincula, mediante uma retribuição (a comissão) a prestar uma garantia ao credor (o beneficiário); e finalmente uma terceira respeitante ao contrato de garantia autónoma, propriamente dito, estabelecido entre o garante (o banco) e o credor (o beneficiário) em que o primeiro se obriga a pagar ao segundo uma soma pecuniária determinada, uma vez comprovado o incumprimento do contrato principal ou base (no caso de garantia autónoma simples) ou de imediato, quando este simplesmente o interpele a realizar essa prestação (no caso de garantia automática à primeira solicitação), mas renunciando, desde logo, o garante, em qualquer caso, a opor ao beneficiário (credor no contrato-base) quaisquer excepções relativas ao contrato fundamental».
Alega a A. que “a 1.ª R acionou de forma abusiva a garantia bancária na medida em que i) nenhum dos alegados defeitos detectados pela 1.ª Ré foi resultado de uma deficiente execução da obra de instalação do sistema AVAC e ii) não foi comunicado à Autora qual o valor das reparações efectuadas”.
O que evidencia não se reconduzir o presente litígio apenas à apreciação da legalidade do accionamento da garantia autónoma junto do banco devedor mas pretender-se ver discutida a (boa) execução do contrato de empreitada, que é o contrato base da garantia bancária, e daí retirar a consequência da eventual ilegalidade do accionamento da garantia e ressarcimento dos danos que o seu pagamento causou. Isto é, não se mostra possível analisar isoladamente a licitude do accionamento da garantia sem atender aos motivos concretamente invocados pelo contraente para o efeito e apreciar a sua validade. Estamos, pois, no âmbito da relação contratual referente ao contrato-base.
Por isso, estando em causa o cumprimento de um contrato administrativo ou celebrado nos termos da legislação sobre contratação pública, a presente acção deve ser apreciada pelos tribunais administrativos nos termos da alínea e) do nº 1 do art. 4º do ETAF (cfr., em situação não inteiramente coincidente, o acórdão do Tribunal dos Conflitos de 31.10.2013, Proc. nº 034/13, disponível em www.dgsi.pt).
A A. invoca a favor da sua tese o acórdão deste Tribunal de 05.11.2013, no Proc. nº 026/12, em que se decidiu pela competência dos tribunais judiciais, mas na situação aí apreciada não estava em causa a interpretação ou o cumprimento do contrato de empreitada.
Quanto ao pedido subsidiário formulado contra a 2ª R., cuja admissibilidade processual poderá ser questionada, de acordo com a jurisprudência deste Tribunal dos Conflitos, a competência deve ser aferida em função do pedido principal, não relevando para o efeito o pedido deduzido subsidiariamente (cfr. acórdão de 14.09.2017, Proc. nº 09/17 e demais jurisprudência nele citada, disponível em www.dgsi.pt).
Pelo exposto, acordam em negar provimento ao recurso e atribuir a competência para o conhecimento da presente acção à Jurisdição Administrativa e Fiscal.
Sem custas.

Nos termos e para os efeitos do art. 15º-A do DL nº 10-A/2020, de 13/3, a relatora atesta que a adjunta, Senhora Vice-Presidente do STJ, Conselheira Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza tem voto de conformidade.

Lisboa, 29 de Setembro de 2021

Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa