Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:017/16
Data do Acordão:11/17/2016
Tribunal:CONFLITOS
Relator:JOSÉ VELOSO
Descritores:CONFLITO DE JURISDIÇÃO
CONTRATO DE TRABALHO
DESPEDIMENTO
Sumário:Os tribunais da jurisdição comum, concretamente os tribunais de trabalho, são os competentes para conhecer de um pedido de reconhecimento da existência de um «contrato de trabalho» entre a autora e um instituto público, da sua cessação, por «despedimento ilícito», e da «condenação do réu a pagar certas quantias que têm por fonte aquele contrato e este despedimento».
Nº Convencional:JSTA00069922
Nº do Documento:SAC20161117017
Data de Entrada:05/20/2016
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO ENTRE A INSTÂNCIA CENTRAL DE MATOSINHOS, SECÇÃO DO TRABALHO E O TAF DO PORTO
AUTOR: A......
RÉ: C......, S.A. E OUTROS
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:CONFLITO
Objecto:DESP TAF PORTO
DESP T TRABALHO PORTO
Decisão:DECL COMPETENTE JURISDIÇÃO COMUM
Área Temática 1:DIR ADM CONT - CONFLITO JURISDIÇÃO.
Legislação Nacional:CPC ART109 ART581 ART64.
CONST ART202 ART212 N3 ART211 N1.
ETAF ART1 ART4.
L 62/2013 ART40.
Jurisprudência Nacional:AC TCF PROC028/15 DE 2016/02/18.; AC TC 508/94 DE 1994/07/14.; AC TC 347/97 DE 1997/04/29.; AC STA PROC047633 DE 2001/09/27.; AC STA PROC01674/02 DE 2002/11/28.; AC STA PROC047636 DE 2003/02/19.; AC TCF PROC0375/04 DE 2004/03/09.; AC TCF PROC05/05 DE 2004/09/23.; AC TCF PROC03/06 DE 2006/10/04.; AC TCF PROC05/07 DE 2007/05/17.; AC TCF PROC014/10 DE 2011/03/03.; AC TCF PROC025/10 DE 2011/03/29.; AC TCF PROC029/10 DE 2011/05/05.; AC TCF PROC02/12 DE 2012/09/20.; AC TCF PROC055/13 DE 2014/02/27.; AC TCF PROC020/15 DE 2015/09/17.; AC TCF PROC08/14 DE 2015/10/01.; AC TCF PROC0217 DE 1991/01/31.; AC TCF PROC0230 DE 1991/05/06.; AC TCF PROC0267 DE 1996/09/26.; AC TCF PROC06/02 DE 2003/02/05.
Aditamento:
Texto Integral: Conflito nº17/16
I. Relatório

1. A……….. - identificada nos autos - intentou no Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto [TAF/P] acção administrativa comum [AAC] contra a ADMINISTRAÇÃO CENTRAL DO SISTEMA DE SAÚDE, I.P., a B……….., Lda., a C…………, SA, e a D……….., Lda., pedindo o seguinte [folhas 3 a 31 do volume I dos autos]:

1) Ser declarada a existência de «relação laboral» e contrato de trabalho entre a autora e a 1ª ré, reconhecendo-se a existência de um «contrato de trabalho»;

2) Ser declarada a «ilicitude do despedimento» da autora com efeitos a partir de 31.12.2010;

3) Serem as rés condenadas, solidariamente, a pagar à autora, por força do regime fraudatório supra alegado, a quantia total de 84.052,64€, assim discriminada:

- 29.340,00€ [2.934€ por cada ano de antiguidade] de indemnização por antiguidade devido ao despedimento ilícito;

- 5.868,00€ relativos a proporcionais de férias e subsídio de férias ao tempo de serviço prestado no ano da cessação;

- 5.000,00€ relativos a retribuição dos meses de Novembro e Dezembro de 2010 acrescidos de 2.100€ de IVA;

- 36.095,84€ relativos aos subsídios de férias e de Natal desde 2003 a 2010;

- 1.703,41€ relativos a juros de mora vencidos, calculados à taxa legal de 4%;

- 4.147,09€ a título de formação profissional não proporcionada;

- 5.208,00€ a título de diferenças salariais devidas pela ilegal diminuição da retribuição;

- 2.000,00€ por danos não patrimoniais, pela ilicitude do despedimento.

Subsidiariamente, caso não se entenda conforme pedido em 1), deverá:

4) Ser declarada a existência de «relação laboral» entre a autora e as 2ª, 3ª e 4ª rés, por força de transmissão de posição contratual de empregador, que a 1ª ré detinha;

5) Ser declarada a «ilicitude do despedimento» da autora com efeitos a partir de 31.12.2010;

6) Subsidiariamente, e caso não se entenda procedente o pedido indicado em 1), mas antes o indicado em 4), sempre deverão as 2ª, 3ª e 4ª rés pagar à autora a quantia supra mencionada e discriminada, de 84.052,64€, por força da transmissão de posição contratual sucessivamente para a 2ª, 3ª e 4ª rés;

7) Subsidiariamente ao pedido 6), ainda que não resultasse demonstrada a cessão da posição contratual entre as rés, deverá ser reconhecida a existência de «contrato de trabalho» entre a autora e a 4ª ré, desde 01.05.2009, e «ilícito o despedimento» que o fez cessar em 31.12.2010 e, consequentemente, ser a 4ª ré e a 3ª ré condenadas a pagar [por força do artigo 334º do Código de Trabalho e 486º do Código das Sociedades Comerciais] as seguintes quantias:

- 2.000,00€ por danos não patrimoniais pela «ilicitude do despedimento»;

- 8.802,00€ de indemnização por antiguidade em virtude do «despedimento ilícito»;

- 2.934,00€ relativos aos proporcionais de subsídios de férias e de Natal ao tempo de serviço prestado no ano da contratação [2009];

- 5.868,00€ relativos aos proporcionais de férias e subsidio de férias ao tempo de serviço prestado no ano da cessação [2010];

- 5.000,00€ relativos à retribuição dos meses de Novembro e Dezembro de 2010, acrescidos de 2.100,00€ de IVA;

- 2.934,00€ relativos ao subsídio de Natal de 2010;

- 592,44€ a título de formação profissional não proporcionada;

- Juros de mora vencidos, calculados à taxa legal de 4%.

2. A autora, segundo decorre da petição inicial, celebrou com o INSTITUTO DE GESTÃO INFORMÁTICA E FINANCEIRA DA SAÚDE, IP, em 04.12.2000, «contrato de trabalho a termo certo», com a duração de 6 meses, eventualmente renovável, com o limite máximo de dois anos [documento de folhas 76 a 78 do volume I dos autos], para «exercer funções de especialista de informática».

No dia 15.01.2003, ela e esse instituto celebraram um «contrato de avença», o qual foi objecto de aditamento em 03.01.2005 [documentos de folhas 80 e 81 do volume I dos autos].

Este contrato durou até Outubro de 2008 - ocasião em que o dito Instituto já havia sido extinto e fundido na actual 1ª ré [artigo 26º, nº2 alínea b), da Lei nº212/2006, de 27.10] - altura em que Ministério da Saúde deixou de permitir a celebração e a manutenção de «contratos de avença».

E o Departamento de Recursos Humanos da 1ª ré informou-a de que, a partir de Novembro de 2008, devia emitir o recibo à ordem da B……….., ora 2ª ré.

Em Maio de 2009, informou-a de que teria de fornecer os seus dados pessoais à C……….., ora 3ª ré, pois seria esta, desde tal data, a processar o pagamento do seu vencimento.

Não obstante, solicitou-lhe que emitisse os recibos em nome da D……….., ora 4ª ré.

Assim permaneceu até 31.12.2010, tendo a partir de então cessado o contrato, ficando em dívida o pagamento dos meses de Novembro e Dezembro de 2010, no montante de 5.000,00€, acrescido do respectivo IVA, que ela já liquidou.

A autora considera a relação descrita entre ela e a 1ª ré como relação laboral, tal como definida na lei, e que, nos termos do Código do Trabalho, mesmo que o contrato seja nulo ou anulado produz efeitos como se fosse válido em relação ao tempo durante o qual esteve em execução.

3. As duas primeiras rés contestaram o pedido deduzido pela autora, pugnando pelo julgamento de total improcedência da AAC [folhas 509 a 541 e 569 a 573 do volume II dos autos].

4. O TAF/P, aquando do despacho-saneador, julgou a jurisdição administrativa incompetente em razão da matéria, para apreciar e decidir o litígio, fazendo-o com a seguinte fundamentação [folhas 633 a 637 do volume II dos autos]:

[…]

A autora entende que, apesar da avença e dos recibos verdes, não se tratou de uma situação de prestação de serviços mas sim de uma relação de trabalho subordinado, sujeita que esteve às ordens, instruções e disciplina da 1ª ré, que a considera como entidade patronal e sujeita ao Código do Trabalho, mais dizendo que no seu caso ocorreu um despedimento ilícito.

A final, a autora pretende ser ressarcida com uma indemnização pelo despedimento, que considera ilícito, e calculada segundo a sua antiguidade, em vez da reintegração no posto de trabalho, mais pedindo o pagamento dos créditos laborais aos quais entende ter direito [subsídios de férias e Natal, desde 2003 a 2010, bem ainda como os proporcionais de férias e subsídios de férias e por formação profissional não ministrada, incluindo também uma indemnização por danos não patrimoniais], tudo no montante global de 89.952,64€.

[…]

Convém ainda esclarecer que a impetrante começou por dizer na petição inicial que foi no Tribunal do Trabalho de Matosinhos que inicialmente deduziu as presentes pretensões contra as aqui rés, que, todavia, acabou por se declarar materialmente incompetente para apreciar a demanda, pese embora a autora seja de opinião que é competente o Tribunal do Trabalho.

Como se vê, a discussão sobre a matéria da competência material do tribunal não é um tema estranho às partes aqui em presença, indo-se, também nesta jurisdição, suscitar oficiosamente a questão da competência material dos tribunais administrativos para apreciar e julgar a presente causa, não se dando sequer a oportunidade para as partes se pronunciarem sobre tal excepção dilatória, porquanto, cada uma delas já teve o ensejo para se inteirar e exprimir a sua posição sobre tal temática, designadamente, aquando do processo que correu termos no Tribunal do Trabalho de Matosinhos [ver o artigo 97º, nº1, do CPC, aplicável ex vi artigo 1º do CPTA - ver folhas 156 a 162 dos autos].

Ainda que assim não se entenda, considera-se ser manifestamente desnecessária a pronúncia sobre a mesma nestes autos, atenta a evidência da solução que sobre a mesma se adoptará, conforme permite o artigo 3º, nº3, do CPC.

Além do mais, o artigo 13º do CPTA prescreve o seguinte: «O âmbito da jurisdição administrativa e a competência dos tribunais administrativos, em qualquer das suas espécies, é de ordem pública e o seu conhecimento precede o de qualquer outra matéria».

Pois bem, é a partir da causa de pedir e do pedido, tal como a autora expôs na petição inicial a relação material controvertida, que nos permite aferir a competência material do tribunal.

Relembra-se que a impetrante aludiu às formas de vinculação que foi estabelecendo ao longo do tempo com as rés, indicando o contrato de trabalho a termo certo, passando, depois, para o regime de contrato de avença, conhecido vulgarmente por recibos verdes [ver documentos patentes nas folhas 163 a 165, 174, 175, e 581 a 586 dos autos].

Nenhum dos contratos acima elencados atribuiu à autora a qualidade de funcionária ou agente administrativo, tanto mais que a impetrante foi construindo a petição inicial sempre na óptica do direito do trabalho privatístico, não sendo por acaso as referências que amiudamente foi fazendo sobre tal ramo do Direito: «entidade patronal», «relação de trabalho», «Código do Trabalho», e, sobretudo, ao «despedimento ilícito» e consequente pedido de indemnização por «antiguidade» em vez da «reintegração».

E veja-se bem que, nos pedidos finais, a autora envereda sempre por pedir contra as rés o reconhecimento de uma «relação laboral» e a «ilicitude do despedimento», discriminando os «créditos laborais» aos quais entende ter direito, sem nunca, registe-se bem, encarrilhar pelo pedido da sua «integração» no quadro de pessoal da 1ª ré, segundo o regime do vínculo de emprego público [contrato de trabalho em funções públicas], que não é pela mesma citado.

Quer isto dizer, então, que o presente litígio está afastado da jurisdição administrativa e deve ser apreciado pelos Tribunais Comuns, designadamente, pelo Tribunal do Trabalho, atento o plasmado no artigo 4º, nº3, alínea d), do ETAF, que preceitua o seguinte: «3- Ficam igualmente excluídas do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal: […] d) A apreciação de litígios emergentes de contratos individuais de trabalho, ainda que uma das partes seja uma pessoa colectiva de direito público, com excepção dos litígios emergentes de contratos de trabalho em funções públicas».

Neste sentido, vejam-se os doutos acórdãos do Tribunal dos Conflitos, de 29.03.2011, proferido no processo nº025/10, e de 01.10.2015, pronunciado no processo nº08/14 […].

Em suma, há que julgar verificada a suscitada excepção dilatória e declarar o TAF do Porto materialmente incompetente para apreciar a presente acção, considerando-se competente o respectivo Tribunal do Trabalho.

Decisão final.

Ante o exposto, julgo verificada a excepção dilatória de incompetência material dos tribunais administrativos para julgar a presente acção e considero competente para a sua apreciação o respectivo Tribunal do Trabalho, pelo que, em consequência, absolvo as rés da presente instância, nos termos dos artigos 278º, nº1, alínea a), 576º, nº2, e 577º, alínea a), todos do CPC.

[…]

5. Face ao assim decidido, a autora da AAC veio prescindir do direito de recurso e requerer [ao abrigo do artigo 99º, nº2, do CPC aplicável ex vi 1º do CPTA] a remessa dos autos à «Instância Central de Matosinhos - Secção de Trabalho», por se tratar, atenta a sua morada, do tribunal competente em razão da matéria e do território [folha 650 do volume II dos autos].

6. A ré B………….«opôs-se» à requerida remessa, por entender que ela violaria o caso julgado formado sobre a decisão do Tribunal de Trabalho de Matosinhos, que se tinha declarado materialmente incompetente para conhecer da questão [folha 657 do volume II dos autos].

7. Tendo a autora reiterado o requerimento de remessa dos autos ao Tribunal de Trabalho de Matosinhos, foi proferido no TAF/P o seguinte despacho [folhas 674 do volume II dos autos]:

[…]

Ditada e transitada a sentença que nos autos julgou a jurisdição administrativa materialmente incompetente para conhecer a causa, eis que a autora vem requerer a remessa dos autos para a Instância Central de Matosinhos - Secção do Trabalho.

A ré B………. opõe-se a tal pedido.

Cumpre apreciar e decidir.

O que nesta demanda se passa é que para a mesma questão existem duas decisões judiciais de duas ordens jurisdicionais diferentes que declinam o conhecimento. O Tribunal do Trabalho e o TAF do Porto.

Ainda que as causas sejam formalmente distintas [dois processos em dois tribunais diversos], de um ponto de vista substancial estamos em presença da mesma questão, isto é, a mesma relação ou situação jurídica substancial, conforme doutamente consta do AC do Tribunal dos Conflitos, de 18.02.2016, proferido no processo nº028/15.

A ser assim, encontramo-nos diante de um conflito negativo de jurisdição, atento o preconizado no artigo 109º nº1 CPC, aplicável ex vi artigo 1º do CPTA, de que este TAF agora se apercebe.

Ante o exposto, oficiosamente, suscita-se ante o Senhor Presidente do Tribunal dos Conflitos a resolução do presente conflito, nos termos do artigo 111º, nº1, do CPC, cujo processo corre nos próprios autos, conforme o nº3 do invocado comando legal.

[…]

8. Enviados os autos ao Tribunal de Conflitos, o Ministério Público pronunciou-se nos termos seguintes [folhas 688 a 690 do volume III dos autos]:

[…]

O Tribunal do Trabalho de Matosinhos onde a acção foi inicialmente proposta, e o TAF do Porto declinaram a competência para conhecer do litígio em que a autora pretende a condenação das rés a pagarem-lhe diversas quantias por créditos decorrentes de alegada relação laboral fundada em contrato de trabalho, iniciada em Dezembro de 2000 e cuja existência também pretende seja declarada, bem como a ilicitude da sua cessação, por despedimento, em Dezembro de 2010.

Tendo presente que são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional [ver artigos 211º nº1 da CRP e 64º do CPC 2013 e 40º nº1 da LOSJ, aprovada pela Lei 62/2013, de 26.08], importa verificar se, por aplicação de algum critério jurídico ela cabe no caso concreto à ordem dos tribunais administrativos e fiscais, pois sendo negativa a resposta, caberá residualmente aos tribunais judiciais.

O critério fundamental para o efeito é o que resulta do artigo 212º nº1 da CRP - «compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir litígios emergentes de relações administrativas e fiscais».

[…]

A autora alicerça os pedidos formulados na sua prestação de trabalho subordinado ao abrigo de contrato de trabalho e na cessação ilícita deste. Se dúvidas houvesse a esse propósito, a autora deixou-as esclarecidas na resposta dada à excepção da incompetência do tribunal do trabalho, invocada na contestação, afirmando que não fundou a sua pretensão em contrato de trabalho em funções públicas, sendo causa de pedir, pelo contrário, o contrato de trabalho subordinado de direito privado.

Por conseguinte, o regime legal convocado na petição inicial, para enquadrar a questão e ancorar os direitos de crédito que o autora pretende ver afirmados pelo tribunal, é o que regulava em geral o contrato individual de trabalho, não obstante o 1º réu ser um instituto público e terem ocorrido modificações objectivas, em certas situações, por força das Leis 12-A/2008, de 27.02, e 59/2008, de 11.09, que o TTM entendeu chamar à colação para determinar a jurisdição competente.

Como lapidarmente se exprime o AC STA de 01.10.2015, processo 08/14, «[…] o tribunal é livre na indagação do direito e na qualificação jurídica dos factos. Mas não pode antecipar esse juízo para o momento de apreciação do pressuposto da competência, pelo menos numa situação como a presente em que a causa de pedir e o pedido vão dirigidos ao reconhecimento dos efeitos resultantes de uma relação laboral de direito privado. Para a apreciação desta questão o que releva é a alegação do autor de que está ligado à ré através do regime contrato individual de trabalho e de que é esse contrato de direito privado o fundamento da pretensão de ver reconhecidos direitos que a lei estabelece para os trabalhadores vinculados por contratos desse tipo e que não seriam, porventura, suportados pelo regime do contrato de trabalho em funções públicas. Isto é, o autor tem direito a que seja apreciado se tem ou não o direito que se arroga, emergente do contrato individual de direito privado que defende vinculá-lo à ré. E para tanto os órgãos jurisdicionais competentes são os tribunais do trabalho, não os tribunais administrativos, independentemente da natureza pública ou privada da entidade empregadora, como resultava da alínea b) do artigo 85º da LOFTJ [Lei nº3/99, de 13.01], na redacção vigente à data da propositura da acção [02.10.2012]. Com efeito, nos termos da alínea d) do nº3 do artigo o 4º, do ETAF, é excluída da jurisdição administrativa «a apreciação de litígios emergentes de contratos individuais de trabalho, ainda que uma das partes seja pessoa colectiva de direito público, com excepção dos litígios emergentes de contratos de trabalho em funções públicas».

Assim, também no caso presente será de seguir a orientação jurisprudencial que emana, entre outros, dos acórdãos do STJ, de 12.09.2013, processo 204/11.0TTVRL.P1.S1, e de 30.03.2011, processo 492/09.2TTPRT.P1.S1, bem como dos acórdãos deste Tribunal dos Conflitos, de 17.09.2015, conflito 020/15, de 27.02.2014, conflito 055/13, de 03.03.2011, conflito 014/10, de 29.03.2011, conflito 025/10, e de 05.05.2011, conflito 029/10.

Consequentemente, deve ser declarado competente para conhecer do litígio o Tribunal de Trabalho, segundo nos parece.

[…]

9. Colhidos que foram os «vistos» legais, importa apreciar, e decidir, o conflito negativo de jurisdição.

II. Apreciação

1. Nos termos do nº1 do artigo 109º do CPC «Há conflito de jurisdição quando duas ou mais autoridades, pertencentes a diversas actividades do Estado, ou dois ou mais tribunais, integrados em ordens jurisdicionais diferentes, se arrogam ou declinam o poder de conhecer da mesma questão: o conflito diz-se positivo no primeiro caso e negativo no segundo».

No presente caso, é certo, a identidade da questão não brota da circunstância das decisões proferidas pelo tribunal de trabalho e pelo tribunal administrativo terem surgido no mesmo processo. Não há pois identidade de processo, já que, formalmente, as causas são diferentes.

A montante do processo administrativo, que levou à decisão do TAF/P citada no ponto 4 do «Relatório», tinha sido proposto um outro processo no Tribunal de Trabalho de Matosinhos, que terminou, também, por decisão de incompetência em razão da matéria, a qual transitou em julgado [folhas 157 a 162 e 399 a 404 dos autos].

Porém, apesar de não haver identidade de processo, não resta dúvida de que a «questão» em ambos litigada é a «mesma». E essa conclusão não só é pacífica nos autos como pode ser constatada por este Tribunal de Conflitos mediante a análise da petição inicial da «acção administrativa» e da petição inicial da acção intentada no tribunal de trabalho [esta última a folhas 39 a 70 dos autos].

Como já decidiu este Tribunal de Conflitos, há bem pouco tempo, não obstante as causas serem formalmente diferentes, e, portanto, terem tido início através de petições iniciais formalmente diversas, o que importará, para se «configurar um conflito», é que «substancialmente esteja em causa a mesma questão, isto é, a mesma relação ou situação jurídica substancial. E, para sabermos se estamos perante a mesma relação ou situação jurídica substancial, há que verificar se existe identidade em três aspectos: sujeitos, pedido e causa de pedir. Nos termos do disposto no artigo 581º do CPC há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica, há identidade do pedido quando numa e noutra causa se pretenda obter o mesmo efeito jurídico, e há identidade da causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico» [AC do Tribunal de Conflitos de 18.02.2016, proferido no processo nº028/15].

Sendo certo, e pacífico, que estamos perante a «mesma questão», sobre cuja apreciação e decisão ambos os tribunais, de diferentes jurisdições, declinaram competência material, tendo tais decisões transitado em julgado, resta concluir que nos encontramos, verdadeiramente, perante conflito negativo de jurisdição que a este Tribunal se impõe decidir.

A solução do conflito reconduz-se apenas a definir se a «competência em razão da matéria» para conhecer do litígio em causa caberá ao «tribunal da jurisdição administrativa» ou ao tribunal da jurisdição dita «comum».

2. Os tribunais são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo [artigo 202º da CRP], sendo que cabe aos tribunais judiciais a competência para julgar as causas «que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional» [artigos 211º, nº1, da CRP; 64º do CPC; e actual 40º, nº1, da Lei nº62/2013, de 26.08], e aos tribunais administrativos a competência para julgar as causas «emergentes de relações jurídicas administrativas» [artigos 212, nº3, da CRP, 1º, nº1, do ETAF 2004, aqui aplicável].

Assim, na sequência das normas constitucionais e legais, e tal como vem sendo entendido, aos tribunais judiciais ou da chamada jurisdição comum assiste uma competência genérica e residual, pois são competentes para «todas as causas» que «não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional».

Os tribunais administrativos, por seu turno, não obstante terem a competência limitada aos litígios que emerjam de «relações jurídicas administrativas», são os tribunais comuns em matéria administrativa, tendo «reserva de jurisdição nessa matéria, excepto nos casos em que, pontualmente, a lei atribua competência a outra jurisdição» [ver AC TC nº508/94, de 14.07.94, in Processo nº777/92, e AC TC nº347/97, de 29.04.97, in Processo nº139/95].

A cada uma destas duas jurisdições, comum e administrativa, caberá, portanto, um determinado «quinhão» do poder jurisdicional que, em bloco, pertence aos «tribunais», sendo que o mesmo é determinado essencialmente em função das matérias versadas nos diferentes litígios carentes de tutela jurisdicional.

E, como tem sido sólida e uniformemente entendido pela jurisprudência deste Tribunal de Conflitos, a competência dos tribunais em razão da matéria afere-se em função da configuração da relação jurídica controvertida, isto é, em função dos termos em que é deduzida a pretensão do autor na petição inicial, incluindo os seus fundamentos [por todos, AC STA de 27.09.2001, Rº47633; AC STA de 28.11.2002, Rº1674/02; AC STA de 19.02.2003, Rº47636; AC Tribunal de Conflitos de 02.07.2002, 01/02; AC Tribunal de Conflitos de 05.02.2003, 06/02; AC Tribunal de Conflitos de 09.03.2004, 0375/04; AC Tribunal de Conflitos de 23.09.04, 05/05; AC Tribunal de Conflitos 04.10.2006, 03/06; AC Tribunal de Conflitos de 17.05.2007, 05/07; AC Tribunal de Conflitos de 03.03.2011, 014/10; AC Tribunal de Conflitos de 29.03.2011, 025/10; AC Tribunal de Conflitos de 05.05.2011, 029/10; AC Tribunal de Conflitos de 20.09.2012, 02/12; AC Tribunal de Conflitos de 27.02.2014, 055/13; AC do Tribunal de Conflitos de 17.09.2015, 020/15; AC do Tribunal de Conflitos de 01.10.2015, 08/14].

A competência em razão da matéria é, assim, questão que se resolve em razão do modo como o autor estrutura a causa, e exprime a sua pretensão em juízo, não importando para o efeito averiguar quais deveriam ser os correctos termos dessa pretensão considerando a realidade fáctica efectivamente existente, nem o correcto entendimento sobre o regime jurídico aplicável.

Como se escreveu no último dos acórdãos referidos, o de 01.10.2015, também citado pelo Ministério Público no seu parecer [ponto 8 do Relatório], «[…] o tribunal é livre na indagação do direito e na qualificação jurídica dos factos. Mas não pode antecipar esse juízo para o momento de apreciação do pressuposto da competência, pelo menos numa situação como a presente em que a causa de pedir e o pedido vão dirigidos ao reconhecimento dos efeitos resultantes de uma relação laboral de direito privado. Para a apreciação desta questão o que releva é a alegação do autor de que está ligado à ré através do regime contrato individual de trabalho e de que é esse contrato de direito privado o fundamento da pretensão de ver reconhecidos direitos que a lei estabelece para os trabalhadores vinculados por contratos desse tipo e que não seriam, porventura, suportados pelo regime do contrato de trabalho em funções públicas. Isto é, o autor tem direito a que seja apreciado se tem ou não o direito que se arroga, emergente do contrato individual de direito privado que defende vinculá-lo à ré. E para tanto os órgãos jurisdicionais competentes são os tribunais do trabalho, não os tribunais administrativos, independentemente da natureza pública ou privada da entidade empregadora, como resultava da alínea b) do artigo 85º da LOFTJ [Lei 3/99, de 13.01], na redacção vigente à data da propositura da acção [02.10.2012]. […]».

3. No artigo 4º do ETAF aqui aplicável [em vigor desde 01.01.2004, e antes da alteração efectuada pelo DL nº214-G/2015, de 02.20] é feita uma enumeração exemplificativa de matérias cujo conhecimento pertence [alíneas do nº1] ou não pertence [alíneas do nºs 2 e 3] aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal.

Na alínea d) do nº3 desse artigo prescreve-se que está «excluída» da jurisdição administrativa «A apreciação de litígios emergentes de contratos individuais de trabalho, ainda que uma das partes seja uma pessoa colectiva de direito público, com excepção dos litígios emergentes de contratos de trabalho em funções públicas».

Ora, o que se verifica é que a autora, apesar de pôr à cabeça dos seus quatro demandados um «instituto público», pretende que se reconheça que entre eles não existiu uma relação jurídica de prestação de serviços, mas sim um contrato de trabalho de direito privado, como claramente se depreende da forma como estrutura a sua petição inicial, em termos de facto e de direito. Na verdade, e como muito pertinentemente salienta o TAF/P, «Relembra-se que a impetrante aludiu às formas de vinculação que foi estabelecendo ao longo do tempo com as rés, indicando o contrato de trabalho a termo certo, passando, depois, para o regime de contrato de avença, conhecido vulgarmente por recibos verdes […].

Nenhum dos contratos acima elencados atribuiu à autora a qualidade de funcionária ou agente administrativo, tanto mais que a impetrante foi construindo a petição inicial sempre na óptica do direito do trabalho privatístico, não sendo por acaso as referências que amiudamente foi fazendo sobre tal ramo do Direito: entidade patronal, relação de trabalho, Código do Trabalho e, sobretudo, ao despedimento ilícito e consequente pedido de indemnização por antiguidade em vez da reintegração.

E veja-se bem que, nos pedidos finais, a autora envereda sempre por pedir contra as rés o reconhecimento de uma relação laboral e a ilicitude do despedimento, discriminando os créditos laborais aos quais entende ter direito, sem nunca, registe-se bem, encarrilhar pelo pedido da sua integração no quadro de pessoal da 1ª ré, segundo o regime do vínculo de emprego público [contrato de trabalho em funções públicas], que não é pela mesma citado. […]».

E é com base nesse contrato de trabalho de direito privado, cuja existência ela quer ver reconhecida, e no despedimento ilícito a que foi sujeita, que pretende também ver declarado, que estrutura a sua pretensão quer de «indemnização» quer de «créditos laborais» perante as rés, relativamente a alegadas dívidas de vencimentos, de subsídios, e de juros. Aliás, se dúvidas houvesse a tal respeito, a autora desfê-las na resposta dada à excepção de incompetência deduzida na contestação da acção do Tribunal de Trabalho, onde esclareceu que não fundou a sua pretensão em contrato de trabalho em funções públicas, sendo causa de pedir, pelo contrário, o contrato de trabalho subordinado de direito privado.

Assim, não podem subsistir dúvidas de que a autora, A……….., caracteriza o vínculo jurídico entre si e as rés, durante a sua vigência e no momento da sua cessação, como relação laboral de direito privado, o que quer ver reconhecido, sendo que é nesta caracterização que repousam as pretensões que ela deduz.

Saber se essa «relação jurídica», ao abrigo da qual foi prestado o trabalho da autora, assumiu efectivamente tal natureza privatística e teve as consequências que dela pretende retirar é questão que pertence já ao mérito da causa.

4. Consequentemente, teremos de concluir que, atendendo aos termos em que a autora formulou a sua pretensão, são os tribunais judiciais, e, concretamente, os «tribunais do trabalho», os competentes para conhecer da presente acção, e não os tribunais da jurisdição administrativa.

Esta é, aliás, a jurisprudência que tem vindo a ser produzida por este Tribunal de Conflitos em casos semelhantes, e da qual referimos, a título de exemplo, os acórdãos de 31.01.1991 [conflito nº217, in Apêndice ao DR de 30.10.93, página 4], de 07.05.1991 [conflito nº231, in Apêndice do DR de 30.10.93, página 24], de 06.05.1991 [conflito nº230, in Apêndice do DR de 30.10.93, página 34], de 26.09.1996 [conflito nº267, in Apêndice do DR de 28.11.97, na página 59], de 05.02.2003 [conflito nº06/02, in Apêndice do DR de 05.05.2004, página 6], de 05.05.2011 [conflito nº029/10], e de 27.02.2014 [conflito nº055/13].

5. Restará, por conseguinte, e em resultado da «apreciação» acabada de fazer, proferir decisão a resolver o presente conflito negativo de jurisdição no sentido da atribuição da «competência material» para conhecer do litígio vertido nestes autos à «jurisdição comum», e, concretamente, in casu, à «Instância Central de Matosinhos - Secção do Trabalho».

III. Decisão

Nestes termos, decidimos o presente «conflito de jurisdição», atribuindo aos tribunais da jurisdição comum a competência, em razão da matéria, para conhecer do objecto desta acção declarativa interposta por A………… contra a ADMINISTRAÇÃO CENTRAL DO SISTEMA DE SAÚDE, I.P., a B…………., Lda., a C…………., SA, e D……….., Lda.

Sem custas.

Lisboa, 17 de Novembro de 2016. – José Augusto Araújo Veloso (relator) – Fernanda Isabel de Sousa Pereira – José Francisco Fonseca da Paz – Manuel Pereira Augusto de Matos – Carlos Luís Medeiros de Carvalho – Raúl Eduardo do Vale Raposo Borges.