Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:026/14
Data do Acordão:01/29/2015
Tribunal:CONFLITOS
Relator:TÁVORA VICTOR
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA
Sumário:*
Nº Convencional:JSTA000P18534
Nº do Documento:SAC20150129026
Data de Entrada:04/24/2014
Recorrente:A... SA NO CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA, ENTRE O 2 JUÍZO CÍVEL DO TRIBUNAL JUDICIAL DE PAREDES E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE PENAFIEL
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: 1. RELATÓRIO.

Acordam no Tribunal de Conflitos.
A…………… SA com sede em Paredes é uma sociedade comercial anónima que se dedica, entre outras, ao serviço público de fornecimento de água e drenagem de águas residuais.
No exercício da sua actividade comercial, a requerente foi contactada pelo requerido B……………. para a prestação dos serviços de fornecimento de água e/ou drenagem de águas residuais, conforme se pode comprovar nas facturas ns° 30096038, 30100914 e 20105741, de 10/10/2012, 9/11.2012 e 11.12.2012, nos valores de 19,29 €, 19,28 € e 19,29 €, respectivamente e oportunamente enviadas e que se dão por integralmente reproduzidas.

Neste sentido, a requerente prestou-lhe os referidos serviços, remontando a quantia de 57,86 € (cinquenta e sete euros e oitenta e seis cêntimos).

Além do capital titulado pelas facturas, o requerido encontra-se também em dívida com os respectivos juros de mora à taxa legal, sobre a quantia em dívida, de 1,23 €, até à data da propositura.

O valor de € 42,00 discriminado em outras quantias refere-se a encargos extra-judiciais da requerente.

Instado por diversas vezes, para proceder ao pagamento, o requerido, até hoje nunca o efectuou, apesar de reconhecer a dívida.

Assim sendo, à data da propositura da acção, a dívida do requerido para com a requerente, ascende ao montante global de 177,59 €, acrescida de Juros vincendos até efectivo e integral pagamento.

A fls. 22 o Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel, julgou o TAF de Penafiel materialmente incompetente para conhecer da acção, absolvendo o Réu da instância, nos termos dos artigos 101.º, 102.º, n.º 1, 105.º, 106.º, 288.º, n.° 1, alínea a), 493.º, n.º 2, 494.º, alínea a), e 495.º, todos do CPC, aplicáveis ex vi art.º 1.º do CPTA.

Por seu turno o 2º Juízo do Tribunal Judicial de Paredes ao qual foi devolvida a competência, considerou-se incompetente para conhecer do pedido absolvendo o Réu da instância - artigo 101º, 102º nº 2 105º nº 1 288º nº 1 alínea a) e 494º nº 1 alínea a) todos do Código de Processo Civil.

Perante o conflito negativo de Jurisprudência então gerado veio a requerente A……………. SA suscitar a resolução do mesmo nos termos do artigo 112º nº 1 do Código de Processo Civil.

No termo do seu articulado apresentou as seguintes,

Conclusões.

1) A relação contratual em causa nestes autos é uma relação jurídica de direito privado, no âmbito de um contrato de prestação de serviços (abastecimento de água e saneamento), com obrigações emergentes desse mesmo contrato para ambas as partes.

2) A Autora não actua revestida de um poder público, não tendo as partes submetido expressamente a execução do contrato em causa a um regime substantivo de direito público (cfr. artigo 4º, nº 1, alínea f, a contrario, do ETAF).

3) A Autora não impõe taxas, nem tarifas, antes presta serviços, por força de um contrato celebrado com o Réu, cuja contrapartida se intitula de preço, nos termos dos Regulamento do Serviço de Abastecimento de Água ao Concelho de Paredes e do Contrato de Concessão celebrado entre a Autora e o Município de Paredes, regulamento esse que impõe as referidas taxas e tarifas, bem como outras regras de conduta, seja à Autora, seja ao Réu.

4) Nos casos em apreço não está em questão a competência para conhecer das questões relativas à validade de regulamentos administrativos ou de contratos administrativos, mas sim da competência para conhecer das questões relativas à validade do contrato celebrado entre a ora Autora e ora Réu e da execução e do seu cumprimento pelos outorgantes, o qual é uma manifestação de uma relação jurídica de direito privado.

5) Nesta parte, em que a Autora se limita a fornecer serviços ao Réu, tendo este como obrigação pagar o preço correspondente e os acréscimos legais e regulamentares, não está em causa qualquer relação jurídico administrativa, nem o contrato celebrado entre as partes tem natureza de contrato administrativo, logo à partida porque a relação em causa se destina a prover as necessidades do Réu e não quaisquer fins de “interesse público”.

6) Apesar da Autora se tratar de uma empresa concessionária de um serviço público essencial, para determinar a natureza pública ou privada das relações jurídicas que esta estabelece, será necessário determinar em concreto se o fim visado é de interesse público ou geral, sendo este corolário exibido de forma plana pela doutrina existente.

7) O regime previsto na Lei n.º 23/96 de 26 de Julho, que regula o fornecimento e prestação de “serviços públicos essenciais” é substantivo de direito privado, enformando não só a relação entre Autora e Réu, mas igualmente as distribuidoras de gás, electricidade, operadoras de serviços de transmissão de dados ou serviços postais.

8) A expressão “serviços públicos essenciais”, prevista na Lei n.º 23/96, de 26 de Julho não tem correspondência com a definição de interesse público.

9) Ao invés, ao relacionar a actividade da Autora e os serviços que presta ao Réu na supra identificada lei, o legislador pretendeu submeter todos os contratos dessas categorias a um regime idêntico, que é de direito civil.

10) A Autora pretende unicamente obter a cobrança da contraprestação que lhe é devida pelo Réu pelo fornecimento de água e saneamento e respectivos acréscimos regulamentares e legalmente impostos.

13) As decisões proferidas nos Acórdãos da Relação de Guimarães no âmbito dos processos nºs, 45692/12.3YIPRT.G1 e 353418/10.0YIPRT, e Acórdãos recentes da Relação do Porto proferidas nos processos n.ºs 50349/12.2YIPRT de 26-09-2013, 92606/12.7YIPRT de 15-10-2013 e 2338/12.5TBPRD-A ladeadas pelo acórdão prolatado pelo Supremo Tribunal de Justiça, em 19 de Janeiro de 1994 (todos in www.dgsi.pt), analisaram cuidadosa e cabalmente a questão, sendo as únicas a distinguir convenientemente as várias dimensões da relação complexa estabelecida entre as partes, conformando-a devidamente com o Direito e a Lei.

14) Estando em causa o cumprimento das obrigações sinalagmáticas decorrentes do contrato e da sua execução e a cobrança dos acréscimos legais (e claro, o cumprimento pela Autora dos aludidos normativos na concretização do que pede ao Réu), o tribunal competente é o Tribunal Judicial de Paredes, por força do disposto no artigo 66º do CPC, fazendo uma errada interpretação das disposições conjugadas dos artigos 1º n.º 1 e 4º n.º 1 do ETAF, violando assim o disposto no artigo 66º do CPC e o artigo 24º e 26º da LOFTJ, pelo que não pode manter-se.

15) Finalmente, em resolução definitiva do conflito de competência, deve o Tribunal dos Conflitos fixar, com força de caso julgado material que compete aos tribunais judiciais a preparação e julgamento das acções especiais para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de fornecimento de água canalizada para consumo público e saneamento, celebrados entre um ente privado, concessionário do respectivo serviço público, e outro particular.

O Magistrado do Ministério Público aderiu à tese da Requerente.

Por outro lado, o Sr. Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal de Conflitos sustenta que a competência para o conhecimento da matéria da presente acção cabe ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel.

Deu-se entretanto a entrada em vigor do Regulamento de Organização do Sistema Judiciário e Organização e funcionamento dos Tribunais Judiciais que determinou a vigência da Lei nº 62/2013, de 26 Agosto.

Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
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Nos termos do preceituado no artigo 211º nº 1 da Constituição da República, os Tribunais Judiciais são os Tribunais comuns em matéria civil e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais.

Por uma questão de orgânica e eficiência judiciais, a competência é repartida entre os Tribunais de acordo com determinados critérios, designadamente os da natureza e qualidade das causas. Nesta sequência, o artigo 18º nº 1 da Lei 3/99 de 3 de Janeiro Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais estatuía que são da competência dos Tribunais Judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional. Norma de igual teor contém a LOSJ no artigo 40º nº 1.

Entretanto o artigo 80º da LOSJ continua a admitir a competência de Tribunais especializada aliás na sequência do estatuído no artigo 212º da Constituição da República, segundo a qual os Tribunais Administrativos e Fiscais são competentes para julgar as acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes de relações jurídicas administrativas (Como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira in “Constituição da República Anotada II, pags. 566 s. “esta qualificação comporta duas dimensões caracterizadoras: (1) as acções e recursos que incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos, um dos sujeitos é titular funcionário ou agente de um órgão público (especialmente da administração; (2) as relações jurídicas controvertidas são reguladas sob o ponto de vista material pelo direito administrativo e/ou fiscal. Em termos positivos um litígio emergente de relações jurídico-administrativas fiscais, será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direitos administrativo ou fiscal; em termos negativos isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza privada ou jurídico-civil.). Nomeadamente e no que toca à questão que nos ocupa, sabemos que o Acórdão do Pleno da Secção do Contencioso Tributário datado de 10-IV-2013 (Proc. 15/2012) foi colocado perante a seguinte questão:
“No domínio da vigência da Lei das Finanças Locais de 2007 (Lei 2/2007 de 15 de Janeiro e do DL 194/2009 de 20 de Agosto), “... cabe na competência dos tribunais tributários a apreciação de litígios emergentes da cobrança coerciva de dívidas a uma empresa municipal provenientes de abastecimento público de águas, de saneamento de águas residuais urbanas e de gestão de resíduos urbanos”?

A esta questão respondeu o aresto em causa que “cabe na competência dos tribunais tributários a apreciação de litígios emergentes da cobrança coerciva de dívidas a uma empresa municipal provenientes de abastecimento público de águas, de saneamento de águas residuais urbanas e de gestão de resíduos urbanos, uma vez que, o termo “preços” utilizado naquela Lei equivale ao conceito de “tarifas” usado nas anteriores Leis de Finanças Locais e a que a doutrina e jurisprudência reconheciam a natureza de taxas, pelo que podem tais dívidas ser coercivamente cobradas em processo de execução fiscal”. Trata-se de um aresto relevante desde logo porque influenciou a orientação posterior deste Tribunal em casos semelhantes.

O caso em análise subjacente ao presente conflito resulta de fornecimento de água feito por uma empresa concessionária resultando a acção decidenda da falta de pagamento de uma das partes num contrato de fornecimento de água destinado a satisfazer as necessidades do devedor que é um consumidor final. Os interesses em presença não imporiam necessariamente tal solução. Não está em causa um interesse público relevante mas antes a protecção de um consumidor, sendo certo que a Lei 23/96 procurou nivelar quanto a direitos e deveres o consumidor ao fornecedor recusando os resquícios de poderes autoritários desde sobre os primeiros. Tal como entendeu o Exmo. Senhor Procurador Geral, citando o Acórdão deste Tribunal de 21-1-2014, “O contrato de fornecimento de água ao domicílio que liga o prestador de serviços e o consumidor utilizador final, “não é atingido por uma regulação de direito público valendo esta asserção quer o serviço seja fornecido directamente pelo município através de um serviço municipal ou municipalizado quer seja fornecido indirectamente através da criação de uma empresa municipal ou da celebração de um contrato de concessão de serviço público com um particular pelo que a apreciação desses litígios sobre o incumprimento desses contratos não cabe aos Tribunais da Jurisdição administrativa.

Contudo a segurança jurídica é um valor a ter em conta, devendo evitar-se, tanto quanto possível, clivagens e fricções sempre perturbadoras da previsibilidade das partes e funcionamento dos tribunais. A orientação deste Tribunal de Conflitos vai maioritariamente no sentido da competência do Tribunal Tributário (Cfr. a título de exemplo, Acs. do STA Ac. do S.T.A (P.061/13) de 29-1-2014; 18-12-2013 (P.053/13); 5-11-2013 (039/13); 26-6-2013; 25-6-2013 (P.033/13), todos nos sites da DGSI. Numa perspectiva não coincidente Cfr. Carlos Ferreira de Almeida “Serviços Públicos Contratos Privados in “Estudos em Homenagem à Professora Doutora Isabel de Magalhães Colaço II Almedina, Coimbra pags. 117 ss; Pedro Gonçalves “A Concessão de Serviços Públicos” Almedina, Coimbra 1999, pags. 314 ss.). É que na verdade está aqui em causa mais do que um contrato de fornecimento de água regulado pelas normas de direito privado antes aquele se apresenta funcionalmente moldado por normas de direito público e sujeitas a preços que fogem ao controlo do mercado, já que em princípio não visam a obtenção de um lucro mas a satisfação de necessidades básicas, sendo à partida autoritariamente fixados por entidades públicas.
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DECISÃO.

Nesta conformidade e decidindo acorda-se em julgar competente para o julgamento da presente da acção nº 360/13. 3BEPNF, o Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel.

Sem custas.
Lisboa, 29 de Janeiro de 2015. – Paulo Távora Victor (relator) – Alberto Augusto Andrade de OliveiraMário Belo MorgadoAlberto Acácio de Sá Costa ReisAntónio da Silva GonçalvesAntónio Bento São Pedro.