Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:01/18
Data do Acordão:04/12/2018
Tribunal:CONFLITOS
Relator:FONSECA DA PAZ
Descritores:CONFLITO NEGATIVO
PROCEDIMENTO CAUTELAR
ARRENDAEMNTO APOIADO
Sumário:I - Nos procedimentos cautelares a competência do tribunal em razão da matéria afere-se em função da causa principal de que eles são dependentes.
II - Destinando-se a acção a obrigar os RR. a cumprirem um contrato de arrendamento apoiado celebrado com empresa municipal que tem por objecto a gestão das habitações sociais do Município, está-se no âmbito de um litígio relativo a contrato que o art.º 17.º, n.º 2, da Lei n.º 81/2014, de 19/12, define como administrativo.
III - A competência para conhecer da acção e, em consequência, do procedimento cautelar cabe aos tribunais administrativos [art.º 4.º, n.º 1, al. e), do ETAF, na redacção resultante do DL n.º 214-G/2015, de 2/10].
Nº Convencional:JSTA000P23146
Nº do Documento:SAC2018041201
Data de Entrada:01/09/2018
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE BRAGA, 1ª SECÇÃO CÍVEL E OS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS E FISCAIS
AUTOR: CASFIG-COORDENAÇÃO DE ÂMBITO SOCIAL DAS HABITAÇÕES DO MUNICÍPIO DE GUIMARÃES, E.M. UNIPESSOAL, LDA
RÉU: A..... E OUTRO
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DOS CONFLITOS:


1. “CASFIG – Coordenação de Âmbito Social das Habitações do Município de Guimarães, E.M. Unipessoal, Lda.”, com sede na Rua Capitão Alfredo Guimarães, n.º 354, em Guimarães, propôs procedimento cautelar comum, contra A……… e B……….., alegando, em síntese, o seguinte:
É uma empresa municipal cujo capital social é integralmente titulado pelo Município de Guimarães e tem por objecto “a promoção e gestão do património imobiliário, em especial e primordialmente, as habitações sociais do Município de Guimarães”.
No âmbito do seu objecto estatutário, tem vindo a celebrar com o Município de Guimarães sucessivos instrumentos jurídicos, pelos quais este delega nela os poderes de gestão dos bens imóveis que integram o seu parque habitacional.
No uso desses poderes delegados, em 11/10/2011, celebrou com o R. um contrato de arrendamento, pelo qual lhe cedeu uma habitação situada no Empreendimento de Creixomil, que faz parte do conjunto de habitações sociais do Município de Guimarães, tendo a respectiva renda sido submetida ao regime de renda apoiada, conforme o DL n.º 166/93, de 7/5 e, posteriormente, a Lei n.º 81/2014, de 19/12, revista e republicada pela Lei n.º 32/2016, de 24/8.
Os RR. não procedem a qualquer limpeza da sua habitação, utilizando-a para nela depositarem e acumularem quantidades enormes e indiscriminadas de entulho, objectos e lixo em geral que ora recolhem das actividades próprias do dia a dia da sua vida familiar, ora recolhem na via pública ou noutros locais e transportam para casa.
A forma de utilização e falta de limpeza do arrendado são totalmente inadequados ao fim a que ele se destina, infringe os deveres de arrendatário, desrespeita as regras de boa vizinhança e constitui perigo para a saúde pública.
Conclui, pedindo que lhe seja deferida autorização para, se necessário com recurso à força pública, entrar coercivamente no arrendado e aí proceder à retirada de entulho, lixo e animais, removendo aqueles para o aterro sanitário ou reciclagem e os animais para o canil/gatil municipal.
Por decisão do Juízo Local Cível de Guimarães do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, foi julgada verificada a excepção da incompetência do tribunal em razão da matéria, absolvendo-se os requeridos da instância, por se entender que a competência para conhecer do litígio cabia aos tribunais administrativos, dado que, subjacente ao litígio, estavam relações jurídico-administrativas e não questões de direito privado.
A requerente interpôs recurso desta decisão, ao qual foi negado provimento por acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães.
Deste acórdão, foi interposto recurso, pela requerente, para o Tribunal dos Conflitos, tendo, na respectiva alegação, formulado as seguintes conclusões:
“1) O procedimento cautelar instaurado pela recorrente é preliminar de uma acção tendente à conservação de um contrato de arrendamento em regime apoiado, regulado pela Lei n.º 81/2014, 19 Dez., republicada pela Lei n.º 32/2016, 24 Ago.
2) Na verdade, é inequívoco nos autos que, embora os factos imputados aos Réus pudessem ser fundamento para resolução do contrato e despejo do arrendado, a Autora não tem a pretensão de acionar esse meio, mas sim pretende obter sentença que obrigue os Réus ao cumprimento das suas obrigações contratuais.
3) O contrato de arrendamento em causa, diz a lei que tem natureza administrativa (art.º 17.º-2 da Lei n.º 81/2014, 19 Dez).
4) Mas é certo que tem um regime jurídico misto, porquanto (art.º 17.º-1 da mesma Lei n.º 81/2014) se rege “pelo disposto na presente lei, pelos regulamentos nela previstos e pelo Código Civil”.
5) No tocante à jurisdição a que fica sujeito o contencioso destes contratos, dispõe em especial o n.º 3 do mesmo art.º 17.º:
“Compete aos tribunais administrativos conhecer das matérias relativas à invalidade ou cessação do contrato de arrendamento apoiado”.
6) Havendo lei especial nesta matéria específica, não há que aplicar outra, designadamente, o art.º 4.º-1, als. a), e) e n) do ETAF (como se fez na sentença recorrida), pelo que a competência para o caso concreto será dos tribunais judiciais, de acordo com a lei geral (artºs. 40.º-1 da Lei n.º 62/2013, 26 Ago. – Lei da Organização do Sistema Judiciário – e 64.º do CPC).
7) Se assim não fosse, a norma do referido art.º 17.º-3 estaria já contida no ETAF e seria, portanto, “inútil”, o que, face ao exposto no art.º 9.º-3 do C. Civil, não pode admitir-se,
8) ou então, sendo o art.º 4.º do ETAF, como é, mais abrangente, teria de entender-se que “revogaria” aquela norma, o que também a lei proíbe (art.º 7.º-3 do C. Civil).
9) Em qualquer caso, a prevalência do art.º 17.º-3 da Lei n.º 81/2014 sempre teria de ser considerada visto se tratar de lei posterior, neste caso derrogatória do art.º 4.º do ETAF, no que aos contratos de arrendamento apoiado diz respeito (art.º 7.º-1 e 2 do C. Civil).
10) Assim, a competência para apreciação do conflito em causa nestes autos não é dos tribunais administrativos e fiscais devendo antes fixar-se para o efeito a competência dos tribunais judiciais, como é de Justiça!”.
Não houve contra-alegações.
Pelo Exmo. Sr. Procurador-Geral- Adjunto junto deste tribunal, foi emitido parecer, onde concluiu que a competência deveria ser atribuída aos tribunais administrativos.
2. O acórdão recorrido, após considerar que na vigência do DL n.º 166/93, de 7/5, o entendimento da jurisprudência e da doutrina era no sentido da competência dos tribunais administrativos para dirimir os litígios relacionados com arrendamentos de renda apoiada, atento à sua índole pública, à natureza jurídico-administrativa das relações estabelecidas e ao disposto nos artºs. 212.º, da CRP e 4.º, n.º 1, al. e), do ETAF, referiu o seguinte:
“(...).
O contrato está actualmente sujeito ao regime introduzido pela Lei n.º 81/2014, de 19/12 (cfr. art.º 39.º, n.º 2/a), e a recorrente sustenta que a circunstância de o n.º 3 do art.º 17.º prever a competência dos tribunais administrativos para as “matérias relativas à invalidade ou cessação dos contratos” permite concluir que é dos tribunais judiciais a competência para a resolução dos litígios de outras matérias, e esta providência visa a execução de diligências tendo em vista a manutenção do contrato, mais concretamente a adequação do estado do arrendado aos seus fins, e até a salvaguarda da segurança e saúde pública – e não obstante os factos poderem justificar a resolução do contrato de arrendamento, a recorrente anuncia que a acção principal não extravasará esse pedido, isto para contornar o argumento aduzido na decisão recorrida de que não é admissível que sejam materialmente competentes tribunais diferentes para a lide principal e para a lide instrumental.
Não nos parece que essa seja a interpretação mais correcta.
A Lei n.º 81/2014 acaba com as anteriores dúvidas colocadas nos tribunais sobre a jurisdição competente para dirimir as questões relacionadas com a invalidade e/ou cessação dos contratos de arrendamentos de renda apoiada, sem alterar a filosofia do regime revogado e a prerrogativa do “ius imperium” das entidades locadoras (no caso a requerente CASFIG, empresa municipal que nos termos do n.º 1 do art.º 3.º do seu estatuto tem como objecto principal a promoção e gestão do património imobiliário, em especial e primordialmente, as habitações sociais do Município de Guimarães).
A índole jurídico-administrativa das relações locatícias de renda apoiada é ademais reforçada em toda a sua plenitude pelo n.º 2 do art.º 17.º da Lei n.º 81/14 ao estabelecer que “o contrato de arrendamento apoiado tem a natureza de contrato administrativo, estando sujeito, no que seja aplicável, ao respectivo regime jurídico”.
Nestes termos, como bem decidiu o tribunal recorrido, a competência para o julgamento deste procedimento cautelar é dos tribunais administrativos”.
Contra este entendimento, o recorrente alega que a acção principal de que depende o procedimento cautelar destina-se a obter sentença que obrigue os RR. ao cumprimento das suas obrigações contratuais e que, embora o contrato de arrendamento em causa revista natureza administrativa, tem, como resulta do art.º 17.º, n.º 1, da Lei n.º 81/14, um regime jurídico misto, cabendo aos tribunais judiciais a competência para a sua apreciação, nos termos do art.º 40.º, n.º 1, da Lei de Organização do Sistema Judiciário (Lei n.º 62/2013, de 26/8), por a situação não se enquadrar no disposto no n.º 3 daquele art.º 17.º.
Vejamos.
A competência em razão da matéria é apreciada em função dos termos em que a acção é proposta e determina-se pela forma como o A. estrutura o pedido e os respectivos fundamentos.
É, assim, perante os termos em que é estruturada a petição inicial que se afere se, atentos os contornos objectivos (pedido e seus fundamentos) e subjectivos (identidade das partes) da acção, a sua apreciação se enquadra na ordem jurisdicional comum ou na ordem jurisdicional administrativa e fiscal (cf. Ac. deste TC de 27/10/2004 – Conflito n.º 02/04).
Em relação aos procedimentos cautelares, a competência do tribunal em razão da matéria afere-se em função da causa principal de que eles são dependentes.
Resulta dos artºs. 211.º, n.º 1 e 212.º, n.º 3, ambos da CRP, que os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outras ordens jurisdicionais, enquanto que aos tribunais administrativos cabe julgar as causas “emergentes de relações jurídicas administrativas”.
Como escrevem Mário Aroso de Almeida e Carlos Fernandes Cadilha (in “Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos”, 2017-4.ª edição, pág. 19), “salvo derrogação pontualmente introduzida por lei, que atribua a competência para dirimir litígios dessa natureza a outros tribunais, os tribunais administrativos são, pois, os tribunais competentes para dirimir todos os litígios emergentes de relações jurídico-administrativas”.
O art.º 4.º, do ETAF, concretizou a competência dos tribunais administrativos e fiscais, elencando, no seu n.º 1, a título exemplificativo, várias matérias cujo objecto se insere na esfera de competência da justiça administrativa, entre as quais as respeitantes à interpretação, validade e execução de contratos administrativos [cf. al. e) desse preceito, na redacção resultante do DL n.º 214-G/2015, de 2/10].
No caso em apreço, o procedimento cautelar intentado pela ora recorrente é dependente de uma acção que, segundo alega, se destinará a obrigar os RR. a cumprir o contrato de arrendamento apoiado que com ela celebraram e que tinha por objecto uma habitação situada no Empreendimento de Creixomil.
Está-se, pois, no âmbito de um litígio em matéria contratual, decorrente do incumprimento pelos RR. de cláusulas de um contrato de arrendamento apoiado a que se encontravam vinculados.
E esse contrato, nos termos do art.º 17.º, n.º 2, da Lei n.º 81/2014, de 19/12, revista e republicada pela Lei n.º 32/2016, de 24/8, “tem a natureza de contrato administrativo, estando sujeito, no que seja aplicável, ao respetivo regime jurídico”.
Ora, a jurisdição administrativa é sempre competente para conhecer os litígios relativos a todos os contratos que a lei substantiva define como administrativos.
Assim, não havendo dúvidas que, considerando a alegação da recorrente, o litígio emerge de uma relação jurídico-administrativa e uma vez que a referida Lei n.º 81/2014 não contém qualquer norma atributiva de competência aos tribunais judiciais, não pode deixar de se concluir pela improcedência do recurso, por a competência para conhecer da acção e, em consequência, do procedimento cautelar caber àqueles que são os “tribunais comuns em matéria administrativa”.

3. Pelo exposto, acordam em negar provimento ao recurso, confirmando o acórdão recorrido e atribuindo, assim, a competência aos tribunais da jurisdição administrativa.
Sem custas.

Lisboa, 12 de Abril de 2018. – José Francisco Fonseca da Paz (relator) – Fernanda Isabel de Sousa Pereira – Carlos Luís Medeiros de Carvalho – Manuel Tomé Soares Gomes – José Augusto Araújo Veloso – Nuno de Melo Gomes da Silva.