Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:022/19
Data do Acordão:02/06/2020
Tribunal:CONFLITOS
Relator:JOSÉ RAINHO
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P25567
Nº do Documento:SAC20200206022
Data de Entrada:04/08/2019
Recorrente:A………., NO CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LISBOA, JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE LISBOA - JUIZ 3 E OS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS E FISCAIS.
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Processo n.º 22/19.
Recurso (art. 101º, nº 2 do CPCivil)
Tribunal recorrido: Tribunal da Relação de Lisboa
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Acordam em conferência no Tribunal dos Conflitos:

I - RELATÓRIO

A……….. demandou, pela então Instância Central Cível da Comarca de Lisboa e em autos de ação declarativa com processo na forma comum, B………, S.A., Banco de Portugal, C………., S.A., Fundo de Resolução, CMVM - Comissão de Mercado de Valores Mobiliários e D………, pedindo a condenação solidária dos Réus no pagamento da quantia de €362.590,58, acrescida de juros vencidos (€88.776,56) e vincendos. Subsidiariamente, pediu a declaração de nulidade do contrato de intermediação financeira a que alude por inobservância de forma, com a consequente condenação solidária dos Réus na restituição da quantia de €362.590,58, acrescida de juros vencidos (€88.776,56) e vincendos. Mais pedia a condenação solidária dos Réus no ressarcimento dos danos não patrimoniais que lhe causaram, em montante a ser calculado em sede de liquidação de sentença.

Alegou para o efeito, em síntese, que:

- É cliente do 1º Réu desde há mais de 30 anos, perante quem abriu uma conta bancária, sediada em país estrangeiro, e onde foram aplicados recursos pecuniários do Autor.

- O Autor deu sempre instruções à 6ª Ré, que era a gestora da conta, no sentido de não pretender que a aplicação do seu dinheiro fosse feita em produtos com qualquer risco associado, querendo ter a certeza de que tinha o capital garantido e disponível para qualquer eventualidade.

- A gestora de conta sempre lhe respondeu que a aplicação era “como depósitos a prazo”, pois que se tratava de produtos da titularidade do 1.º Réu e por isso eram totalmente garantidos.

- Foi assim que, no âmbito das suas funções e sob a subordinação ao 1º Réu, a 6ª Ré aplicou a quantia de €362.590,58 do Autor na compra de produtos estruturados que constam atualmente da sua “Carteira de Títulos Custódia”, não obstante o 1.º Réu e a 6ª Ré saberem que o Autor apenas queria confiar o seu dinheiro em produtos seguros e com disponibilidade imediata de capital em caso de pedido de reembolso.

- Em 3 de agosto de 2014, o Banco de Portugal decidiu-se pela aplicação da medida de resolução ao 1.º R., criando o C……….., S.A. (o 3º Réu) e determinou que os ativos de real valor fossem transferidos para este.

- O 1.º Réu criou uma provisão do valor de produtos vendidos, assumindo assim o seu reembolso, sendo que em momento algum a rubrica contabilística “provisão” constituída pelo 1.º Réu anteriormente à medida de resolução consta dos itens excluídos e elencados no Anexo 2 à deliberação do 2.º Réu de 3 de agosto de 2014, donde se conclui que aquela obrigação de reembolso terá sido transferida para o 3º Réu, havendo assim uma assunção de obrigação de reembolso conjunta do 2.º Réu (Banco de Portugal) e do 3.º Réu (C………..).

- Neste quadro de atuação ilegal do 1.º Réu junto dos seus clientes, não se podem esquecer os deveres de supervisão que legalmente competem ao 2.º Réu e à 5.ª Ré, cujo incumprimento deverá resultar na sua corresponsabilidade na obrigação de devolução dos montantes investidos, recorrendo-se aos montantes sob tutela do 4.º Réu.

- Sobre os 1.º, 2.º, 3.º, 5.° e 6.ª Réus recaíam deveres de conduta de informação, diligência e lealdade, mas que não foram observados.


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O Réu B………, S.A. (em liquidação) contestou, pugnando pela extinção da instância no que lhe respeita, nos termos do art. 277.º, alínea e) do CPCivil, em consequência da deliberação tomada no dia 13 de julho de 2016 pelo Banco Central Europeu, que revogou a autorização para o exercício da respetiva atividade.

O Réu C………, S.A. e a Ré D………. contestaram, defendendo a respetiva ilegitimidade e a improcedência da ação.

Os Réus Banco de Portugal, Fundo de Resolução e Comissão do Mercado de Valores Mobiliários contestaram, concluindo pela improcedência da ação. Mais suscitaram a exceção da incompetência material do tribunal, sustentado que a competência para apreciar o feito em questão pertence aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal.


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Foi proferida decisão que julgou materialmente incompetente o tribunal, sendo os Réus absolvidos da instância.

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Inconformado com o assim decidido, apelou o Autor.

Fê-lo sem êxito, pois que a Relação de Lisboa julgou improcedente o recurso e confirmou a decisão recorrida.


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Mantendo-se inconformado, interpôs o Autor recurso de revista excecional para o Supremo Tribunal de Justiça.

A formação de juízes a que alude o n.º 3 do art. 672.º do CPCivil decidiu que não havia lugar a qualquer recurso de revista, mas sim a recurso para o Tribunal dos Conflitos, nos termos do n.º 2 do art. 101.º do CPCivil. Por essa razão, determinou a remessa dos autos a este último Tribunal.


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Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

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Questão prévia

Não suscita dúvidas que o recurso foi mal interposto para o Supremo Tribunal de Justiça.

Efetivamente, visto o disposto no n.º 2 do art. 101.º do CPCivil, é ao Tribunal dos Conflitos, e não ao Supremo Tribunal de Justiça, que cabe decidir sobre a competência em discussão.

Dentro do princípio estabelecido no art. 6.º do CPCivil, importa, porém, fazer seguir o recurso neste Tribunal dos Conflitos.


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Da respetiva alegação extrai o Autor as seguintes conclusões:

A) Vêm as presentes alegações de recurso do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa no passado dia 24/05/2018, que julgou improcedente a apelação e, em consequência, manteve a decisão da Primeira Instância, vertendo a presente revista excecional sobre a parte decisória que a seguir se transcreve:

“A solução da 1ª instância que aqui se acolhe é a que tem vindo a ser adoptada quase unanimemente pela jurisprudência em acções em tudo semelhantes à dos presentes autos (com a demanda dos mesmos sujeitos que aqui estão em causa)

V-Decisão

Pelo exposto, acorda este tribunal em julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.

- Custas pelo apelante.”

B) Assim, não se conforma, o ora Recorrente, com a decisão de incompetência material do Tribunal Judicial Cível para julgar a presente ação, porquanto constitui doutrina e jurisprudência pacíficas que a competência material do tribunal é aferida em função dos termos em que a ação é proposta pelo Autor, atendendo-se à estruturação dada pelo Autor, ao pedido e à causa de pedir, relevando, assim, para fixação da competência do tribunal o “quid disputatum” e não o “quid decisum”.

C) Ora, na presente ação, o Autor, ora Recorrente, peticiona pela responsabilização civil dos RR. por violação das regras de intermediação financeira, mormente por via do consagrado nos artigos 304º A e 321º do Código dos Valores Mobiliários, isto é, está em causa a apreciação da violação dos deveres de informação, diligência e lealdade que impendem sobre os intermediários financeiros, bem assim como a nulidade daquela relação jurídica por inobservância de forma, encontrando-nos perante o Direito dos Valores Mobiliários que representa uma área do Direito Comercial e/ou Financeiro - que não se confunde com Finanças Públicas - , constituindo um ramo do direito privado (in Paulo Câmara, Manual do Direito dos Valores Mobiliários, Almedina, 2009).

D) Invoca-se, neste sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 16/06/2015 (acórdão fundamento) que apreciou a mesma questão e julgou em sentido contrário ao Acórdão em recurso.

E) Assim, entende o ora Recorrente que o fundamento da presente Revista radica em erro de interpretação e aplicação da lei processual, concretamente, dos artigos 64º, 96º al a), 99º n.º 1, 278° n.º 1 do C.P.C., 80º n.º 1 da L.O.S.J. e artigo 4º n.º 1 al. f) e n.º 2 do E.T.A.F.

F) Pelo que, subjaz à correta interpretação e aplicação dos referidos normativos legais, concluir pela competência material do Tribunal Judicial (Civil) para apreciar e julgar o presente litígio, ou seja, para dirimir litígios nos quais entidades com natureza pública atuam como privados, à luz do direito privado e, nessa qualidade, devem ser responsabilizadas.

G) O Autor, ora Recorrente, peticionou contra os RR: “Nestes termos e nos mais de Direito que V/Exa. doutamente suprirá deverá a presente acção ser julgada totalmente procedente por provada que ficou:

a) A responsabilidade civil dos RR., enquanto intermediários financeiros, por violação dos deveres de informação, diligência e lealdade, nos termos do disposto no artigo 304º-A do CVM, devendo em consequência os RR. serem solidariamente condenados a pagar ao A. a quantia de €362.590,58, acrescida de:

i) €88.776,56 a título de juros vencidos à taxa legal em vigor, e calculados desde a data de utilização ilícita pelos RR. das quantias monetárias do A;

ii) Juros vincendos calculados desde a data da citação até integral pagamento da sentença condenatória;

Caso assim não se entenda:

b) A nulidade do contrato de intermediação financeira por inobservância de forma nos termos do disposto no artigo 321º do CVM, devendo em consequência serem os RR. solidariamente condenados a restituir ao A a quantia de €362.590,58, acrescida de:

i) €88. 776,56 a título de juros vencidos à taxa legal em vigor, e calculados desde a data de utilização ilícita pelos RR. das quantias monetárias do A;

ii) Juros vincendos calculados desde a data da citação até integral pagamento da sentença condenatória;

Mais se requer, que sejam ainda os RR condenados a ressarcir solidariamente ao A. os danos não patrimoniais que lhe foram causados, em valor a ser calculado em sede de liquidação de sentença”, cfr. petição inicial.

H) No Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16.06.2015, (acórdão fundamento disponível para consulta in www.dgsi.pt) pode ler-se: “É entendimento pacífico que a competência material dum tribunal constitui um pressuposto processual, sendo aferida pela questão ou questões que o A coloca na respectiva petição inicial e pelo pedido formulado, conforme ensina Manuel de Andrade. E nesta lógica, a apreciação da competência dum tribunal tem de resolver-se face aos termos em que a acção é proposta, aferindo-se portanto pelo “quid disputatum”, ou seja, pelo pedido do A. e respectiva causa de pedir, sendo irrelevantes as qualificações jurídicas alegadas pelas partes ou qualquer juízo de prognose que possa fazer-se quanto à viabilidade ou inviabilidade da pretensão formulada pelo Autor. Foi neste sentido que se firmou a jurisprudência, podendo ver-se o acórdão do STJ de 14/5/2009, www.dgsi.pt. de cujo sumário se conclui que “a competência material do tribunal afere-se pelos termos em que a acção é proposta e pela forma como se estrutura o pedido e os respectivos fundamentos. Daí que para se determinar a competência material do tribunal haja apenas que atender aos factos articulados pelo autor na petição inicial e à pretensão jurídica por ele apresentada, ou seja à causa de pedir invocada e aos pedidos formulados”.

I) É também esta a orientação do Tribunal de Conflitos, conforme se colhe do acórdão de 30.10.2013, proferido no Conflito n.º 37/13, donde se conclui que “é pois a estrutura da causa apresentada pela parte que recorre ao tribunal que fixa o tema decisivo para efeitos de competência material, o que significa que é pelo quid decidendum que a competência se afere, sendo irrelevante qualquer tipo de indagação atinente ao mérito do pedido formulado, ou seja, sendo irrelevante o quid decisum”. Será portanto a partir da análise da forma como a causa se mostra estruturada na petição inicial e do respectivo pedido que deveremos decidir da questão de saber qual é a jurisdição competente para o seu conhecimento.”

J) Logo, a natureza pública ou privada de cada um dos RR. é irrelevante na medida em que o “thema decidendum”, tal como configurado pelo Autor, ora Recorrente, não se prende com qualquer questão de domínio administrativo. Sendo que também o pedido indemnizatório deduzido pelo Autor, ora Recorrente, não colide, nem depende, da apreciação jurídico-administrativa dos atos que conduziram à resolução do Réu Banco B……., pelos RR. intervenientes naquela decisão.

K) O Autor, ora Recorrente peticiona pela responsabilização civil dos RR. por violação das regras de intermediação financeira, mormente por via do consagrado nos artigos 304º A e 321º do Código dos Valores Mobiliários, isto é, está em causa a apreciação da violação dos deveres de informação, diligência e lealdade que impendem sobre os intermediários financeiros, bem assim como a nulidade daquela relação jurídica por inobservância de forma. O Direito dos Valores Mobiliários é um ramo do Direito Comercial e/ou Financeiro, afastado da conceção de Direito de Finanças Públicas, e designado como: “conjunto de normas que regulam as actividades ligadas aos mercados financeiros e exercidas de forma profissional pelos intermediários financeiros.” (in Morais, Jorge Alves, Código dos Valores Mobiliários Anotado, Quid Juris 2015). Sendo ainda que: “(…) todo o regime geral sobre o valor mobiliário, seu conteúdo transmissão, encontrado no Título II do Código constitui direito privado. Na componente privada do direito mobiliário cabe ainda mencionar as regras (…) sobre responsabilidade civil dos intermediários financeiros.” (in Paulo Câmara, Manuel do Direito dos Valores Mobiliários, Almedina, 2009).

L) As entidades de natureza administrativa também são entidades civilmente responsáveis, sendo tal asserção justificada, p. ex., com o facto de a Lei Orgânica do Réu Banco de Portugal prever no seu artigo 62º que: “compete aos tribunais judiciais o julgamento de todos os litígios em que o Banco seja parte, incluindo as ações para efetivação da responsabilidade civil por atos dos seus órgãos, bem como a apreciação da responsabilidade civil dos titulares desses órgãos para com o Banco.”

M) O Recorrente não está isolado neste seu entendimento, como se pode verificar da seguinte jurisprudência recente, onde se entendeu que: “Porém, esse acto administrativo já não releva no domínio factual que agora se encontra controvertido nos autos, ou seja, já não contende com a factualidade subjacente aos prejuízos que os Autores alegam ter sofrido, sendo uma realidade pretérita distinta da que agora se pretende discutir. Ou seja, a responsabilidade civil extra-contratual aqui invocada contra as Rés já não dimana de relações jurídicas administrativas, não dependendo a sua apreciação e julgamento das relações jurídico-administrativas havidas entre as partes e que foram declaradas anuladas, não havendo a necessidade de aplicação de normas de direito administrativo, antes se centrando a controvérsia no plano puramente privado e civilístico, bastando à decisão o ordenamento jurídico decorrente do Código Civil. Dito de outro modo, a relação material controvertida, envolvente dos prejuízos sofridos pelos Autores, não provém da prática de actos de gestão pública, assentando sim no âmbito das relações de natureza privatística que entre as partes surgiram após a anulação daquele acto expropriativo. Aliás, tendo o acto expropriativo sido anulado, assim tendo deixado de existir, mal se compreenderia que a pretensão indemnizatória formulada pelos Autores ainda pudesse ter assento na esfera jurídico-administrativa que se exauriu com aquela decisão anulatória.” (negrito nosso in Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 10.11.2016 in www.dgsi.pt). E, ainda, “Por conseguinte, nenhum impedimento legal existe para que o Fundo de Resolução possa ser demandado, sendo certo ainda que a sua natureza de direito público não afasta, em tese, a possibilidade de ser demandado nos Tribunais Cíveis, desde que na relação jurídica que está subjacente à demanda esteja desprovido de prerrogativas de ius imperium.” (negrito nosso in Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 10.11.2016 Processo nº 26688115.0T8LSB-A.L1-6, Relator MARIA DE DEUS CORREIA in www.dgsi.pt).

N) Pretendendo-se explicar que não está em causa a apreciação de qualquer conduta dos RR., munidos de ius imperi, pelo contrário, está em causa a apreciação de atos de intermediação financeira por quem exerce profissionalmente esta atividade, prévios aos atos de resolução que vieram a ser tomados posteriormente. Pese embora ao Tribunal Judicial - como a qualquer outro tribunal - não esteja vedado, antes pelo contrário, conhecer da conformidade à lei e à Constituição da República Portuguesa de qualquer lei lato sensu. Prevê o artigo 280.º, n.º 1, da C.R.P. que os tribunais podem recusar a aplicação de qualquer norma com fundamento na sua inconstitucionalidade, em causa que se encontra a restrição do direito fundamental de propriedade do Recorrente, pois que aos tribunais compete administrar a justiça em nome do povo, assegurando a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimindo a violação da legalidade democrática e dirimindo os conflitos de interesses públicos e privados, não podendo aplicar normas que infrinjam a Constituição ou os princípios nela consignados (artigos 202.° e 204.° da C.R.P.).

O) Nos termos do artigo 212.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa «Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.», Nas palavras dos Constitucionalistas Gomes Canotilho e Vital Moreira a relação jurídica administrativa “(…) transporta duas dimensões caracterizadoras: as acções e recursos que incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos, um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão de poder público (especialmente da administração); as relações jurídicas controvertidas são reguladas, sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo ou fiscal. Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza «privada» ou «jurídico-civil». Em termos positivos, um litígio emergente de relações jurídico-administrativas e fiscais será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal” - Vide in Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed.

P) Logo, no artigo 4.º, n.º 1, alínea f) do E.T.A.F. não cabe a relação jurídica puramente civilista trazido pelo Autor, ora Recorrente que, assim, soçobrará na jurisdição dos tribunais judiciais, definida pelo artigo 211.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, plasmada também no artigo 64.º do Código de Processo Civil e artigos 40.º, n.º 1 e 80.º, n.º 1, da L.O.S.J. que determinam que a competência dos tribunais judiciais para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.

Q) Conclui-se pela competência material do tribunal judicial civil para apreciar e dirimir o presente litígio.

R) A entender-se diferentemente, será privilegiar a forma em detrimento da substância, invocando-se figuras jurídicas que não solucionam o litígio, que dificultam o acesso à justiça do caso concreto e contribuem para a tão famigerada crise na justiça atentando contra os basilares princípios de um Estado Democrático, designadamente, o direito constitucionalmente consagrado de obter, com força de caso julgado, uma decisão judicial que aprecie de mérito a sua pretensão (artigos 2º, 20º, 202º, n.º 1 e n.º 2, todos da Constituição da República Portuguesa e artigo 2º do C.P.C.).

S) Atentando, também, contra as normas constantes na Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, transposta para a ordem jurídica portuguesa, designadamente, artigo 1.º do Protocolo n.º 1, com a denominação “Proteção da propriedade” “Qualquer pessoa singular ou coletiva tem o direito ao respeito dos seus bens (...)”, incluindo-se nesses bens os créditos, por meio dos quais o Recorrente pode pretender ter, pelo menos, uma “expectativa legítima” de obter o gozo efetivo de um direito de propriedade.

T) Revela-se essencial para uma melhor aplicação do direito determinar o sentido e alcance com que deve ser interpretado e aplicado o disposto na alínea f) do número 1, do artigo 4º do E.T.A.F. em situações idênticas, atento o ritmo crescente de processos resultantes do colapso de diversas instituições financeiras que integravam o nosso sistema financeiro tem vindo a subir drasticamente e que põe em causa o direito de propriedade, constitucionalmente consagrado.

U) O efeito dos últimos acontecimentos verificados na vida do sistema bancário português provocaram um abalo, quiçá, irreversível na confiança depositada pela população nos Bancos portugueses e na banca em geral. A confiança no sistema bancário é interesse de particular relevância social e vital na sociedade hodierna.

V) Assim, contar com uma clara e uniforme interpretação e aplicação do Direito que salvaguarde os interesses patrimoniais da comunidade e garanta uma solução uniforme e igual para todos, sem surpresas e percalços injustificados de caminho, é questão de particular interesse social.

W) Razão porque os interesses jurídicos sindicados na presente Revista devem ser considerados de particular relevância social.

X) Assim, o Acórdão sindicado encontra-se em contradição com o Acórdão Fundamento proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça em 16/06/2015 porquanto decidiram diversamente a mesma questão de direito, a saber, num mesmo contexto jurídico ou situação equiparada, perante o pedido de declaração de nulidade de negócio jurídico, o Acórdão em apreço absolveu os RR por incompetência absoluta do tribunal judicial enquanto o Acórdão fundamento julgou competente o tribunal judicial para conhecer da causa,

Y) O que ora se defende.

Termina dizendo que deve o recurso ser julgado procedente “ordenando-se, em consequência, a anulação do acórdão recorrido”.


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Os Réus Comissão do Mercado de Valores Mobiliários, Banco de Portugal e Fundo de Resolução contra-alegaram, concluindo pela improcedência do recurso.

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A Exma. Magistrada do Ministério Público junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido de serem os tribunais administrativos os competentes para apreciar a causa no que se refere aos 2.º e 5.º Réus, nos termos da alínea f) do n.º 1 do artº 4º do ETAF e artº 37º nº 1 do CPC, e os tribunais judiciais os competentes para apreciar a causa no que se refere aos 1.º, 3.º,4.º e 6.º Réus.

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II - ÂMBITO DO RECURSO

Importa ter presentes as seguintes coordenadas:

- o teor das conclusões define o âmbito do conhecimento do tribunal ad quem, sem prejuízo para as questões de oficioso conhecimento, posto que ainda não decididas;

- Há que conhecer de questões, e não das razões ou fundamentos que às questões subjazam;

- Os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido.


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III - FUNDAMENTAÇÃO

Plano Factual

O circunstancialismo fáctico processual a ter em consideração é o que emerge do relatório que antecede.

Plano Jurídico-conclusivo

Como tem sido reiteradamente reafirmado na jurisprudência (nomeadamente na jurisprudência deste Tribunal dos Conflitos), a competência (lato sensu) dos tribunais afere-se em função dos termos da ação, tendo em consideração a pretensão formulada, pelo autor e os respetivos fundamentos (assim, por exemplo, os acórdãos do Tribunal dos Conflitos de 7 de Julho de 2016, processo nº 48/15; de 25 de Março de 2015, processo nº. 02/14; de 25 de Julho de 2015, processo nº 8/15; de 9 de Julho de 2015, processo nº 07/15; de 18 de Fevereiro de 2016, processo nº 28/15, todos disponíveis em www.dgsi.pt).

Concordantemente, dizem-nos Aroso de Almeida e Fernandes Cadilha (Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 3ª ed., p. 125) que “…a competência do tribunal deve ser aferida pelos termos da relação jurídico-processual, tal como é apresentada em juízo pelo autor, independentemente da idoneidade do meio processual utilizado”.

Na realidade, como indica Manuel de Andrade (Noções Elementares de Processo Civil, p. 91), a competência do tribunal afere-se pelo quid disputatum (quid decidendum, por contraposição com aquilo que será mais tarde o quid decisum), que traduz precisamente a ideia de que a competência se determina em função do objeto (pedido e seus fundamentos) da causa.

Acresce dizer que, como se aponta (entre outros) no acórdão deste Tribunal dos Conflitos de 14 de setembro de 2017 (processo n.º 09/17, disponível em www.dgsi.pt), a competência deve ser aferida em função do pedido principal, não relevando para o efeito o pedido deduzido subsidiariamente.

Nos termos dos art.ºs 211.º, n.º 1, da CRP e 64.º do CPCivil, os tribunais judiciais constituem a regra dentro da organização judiciária e, por isso, gozam de competência não discriminada (competência residual), enquanto os restantes tribunais têm a sua competência limitada às matérias que lhes são especialmente atribuídas.

Especificamente, no que toca à competência dos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal, estabelece o art.º 212.º, n.º 3, da CRP, que “Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.

Vieira de Andrade (A Justiça Administrativa, 6ª ed., p. 51) esclarece que relação jurídica é “aquela em que um dos sujeitos, pelo menos, é uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido”.

E Fernandes Cadilha (Dicionário de Contencioso Administrativo, pp. 117 e 118), aduz que “por relação jurídico administrativa deve entender-se a relação social estabelecida entre dois ou mais sujeitos (um dos quais a Administração) que seja regulada por normas de direito administrativo e da qual resultem posições jurídicas subjectivas. Pode tratar-se de uma relação jurídica intersubjectiva, como a que ocorre entre a Administração e os particulares, interadministrativa, quando se estabelecem entre diferentes entes administrativos, no quadro de prossecução de interesses públicos próprios que lhes cabe defender, ou inter orgânica, quando se interpõem entre órgãos administrativos da mesma pessoa colectiva pública, por efeito do exercício dos poderes funcionais que lhes correspondem. Por outro lado as relações jurídicas podem ser simples ou bipolares, quando decorrem entre dois sujeitos, ou poligonais ou multipolares, quando surgem entre três ou mais sujeitos que apresentam interesses conflituantes relativamente à resolução da mesma situação jurídica.”

Por sua vez, estabelece o ETAF no seu art.º 1.º, n.º 1, que “Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no artigo 4.º deste Estatuto”.

No n.º 1 do seu art. 4.º o ETAF procede a uma concretização positiva do conceito de “litígios emergentes de relações jurídicas administrativas”.

Na alínea f) desse nº 1 do art. 4.º estabelece-se que compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público.

Isto posto:

Percorrendo a petição inicial verifica-se (pedido principal) que o Autor fez fundar a sua pretensão indemnizatória contra os Réus B…….., S.A., C……… S.A. e D…… em factos que diz integrarem uma violação de deveres pré-contratuais e contratuais inerentes à relação bancária que vinha vigorando entre Autor e o primeiro desses Réus, e ainda na assunção da obrigação de reembolso por parte do segundo desses Réus.

No que respeita ao Réu Fundo de Resolução, a razão da sua responsabilização vem exclusivamente fundada na circunstância de ser o detentor do capital social do C…….., S.A.

Relativamente ao Réu Banco de Portugal a pretensão do Autor vem fundada em factos que o Autor diz integrarem uma violação de deveres de supervisão, numa garantia da solvência, estabilidade e segurança do B……., S.A. e numa assunção da obrigação de reembolso.

Finalmente, no que respeita à Ré Comissão de Mercado de Valores Mobiliários consegue-se perceber que a respetiva responsabilização é feita fundar na violação de deveres de supervisão.

No que tange ao pedido subsidiário de declaração de nulidade (que, face ao que se lê dos artigos 112º e 113º da petição, parece vir dirigido apenas contra o 1º Réu e a 6ª Ré), funda-se o mesmo na alegada circunstância de subjacente à aplicação dos capitais em causa não ter existido um contrato celebrado por escrito.

Ora, perante o objeto da causa assim delineado, resulta que a jurisdição competente para apreciar a pretensão do Autor contra os Réus Banco de Portugal e Comissão do Mercado de Valores Mobiliários é a administrativa e fiscal. Estes Réus são pessoas coletivas de direito público -, como resulta do art. 1.º da Lei Orgânica do primeiro (Lei n.º 5/98, de 31 de janeiro, sucessivamente alterada), e do art. 3.º, n.º 1 do regime anexo à Lei n.º 67/2013, de 28 de agosto, lei-quadro das entidades reguladoras) e dos Estatutos (DL n.º 5/2015, de 8 de janeiro) da segunda - e a responsabilidade extracontratual que lhes vem imputada emerge, direta e indiretamente, do exercício das suas atribuições legais de prossecução do interesse público, regulada por normas de direito administrativo, atributivas de prerrogativas de autoridade. Ou seja, nesta parte estamos claramente perante um litígio emergente de uma relação jurídica de natureza administrativa.

Parafraseando, a propósito, o que se lê do acórdão deste Tribunal dos Conflitos de 14 de fevereiro de 2019 (processo n.º 46/18, disponível em www.dgsi.pt), que incidiu sobre caso igual ao vertente, podemos dizer que “relativamente às entidades públicas BdP e CMVM, dada a configuração da acção feita pelo A., suscita-se, claramente, a responsabilidade civil extracontratual de pessoas colectivas de direito público, radicando os danos que, alegadamente, o mesmo sofreu e que fundam os direitos que pretende exercer (...) em actos cometidos no exercício de funções públicas ou na prossecução de um interesse público, uma vez que, sem a invocação de qualquer relação contratual com eles estabelecida, se fundamentam na falta de cumprimento de deveres - essencialmente de supervisão - que sobre eles impendiam, tendo em conta as funções determinadas pela lei”.

É certo, entretanto, que o art. 62.º da Lei Orgânica do Banco de Portugal dispõe que “Sem prejuízo do disposto no artigo 39.º, compete aos tribunais judiciais o julgamento de todos os litígios em que o Banco seja parte, incluindo as acções para efectivação da responsabilidade civil por actos dos seus órgãos, bem como a apreciação da responsabilidade civil dos titulares desses órgãos para com o Banco.” E o Recorrente convoca esta norma, pretendendo prevalecer-se da mesma.

Todavia, como se refere no acórdão deste Tribunal dos Conflitos de 14 de fevereiro de 2019 (processo n.º 31/18, disponível em www.dgsi.pt), que incidiu também sobre caso igual ao vertente, é de entender que a dita norma se tem de haver como tacitamente revogada pelo atual Estatuto dos Tribunais Administrativos. Também no acórdão ainda do Tribunal dos Conflitos de 6 de junho de 2019 (processo n.º 41/18, disponível em www.dgsi.pt) se decidiu de forma a recusar vigência à supra referida norma.

Efetivamente, esse Estatuto veio dispor, sem restrições, que compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal apreciar os litígios que tenham por objeto questões relativas à responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público. E é sabido que foi objetivo do legislador, tal como decorrente da exposição de motivos da proposta de lei que esteve na base da Lei n.º 13/2002, regular de forma diferente a matéria, suprimir os regimes especiais e prevenir conflitos de jurisdição.

No que respeita à competência para apreciar a pretensão dirigida contra o Réu Fundo de Resolução, que é também uma pessoa coletiva de direito público (art. 153.º-B do RGICSF e art. 2.º, n.º 1 do respetivo Regulamento, aprovado pela Portaria n.º 420/2012, de 21 de janeiro), já a definição da competência será porventura menos linear.

Contudo, desde que é certo que este Réu vem demandado unicamente enquanto detentor do capital social do C………., S.A., cremos que é de seguir a orientação reiteradamente assumida na jurisprudência deste Tribunal em casos similares ao presente. E essa orientação vai no sentido de que a competência recai sobre os tribunais judiciais, como se pode retirar dos acórdãos de 22/03/2018 (proc. nº 056/17), de 22/03/2018 (proc. nº 050/17), de 17/05/2018 (proc. nº 052/17), de 07/06/2018 (proc. nº 061/17) de 08/11/2018 (proc. nº 020/18), de 13/12/2018 (proc. n° 033/18), de 19/06/2019 (proc. 05/19) e de 19/06/2019, proc. n.º 02/19, todos acessíveis em www.dgsi.pt). Não pode deixar de ser mantido este entendimento, tendo presente, além do mais, o disposto no n.º 3, do art. 8.º do Código Civil.

Finalmente, no que respeita à apreciação do pedido dirigido contra os Réus B………, S.A., C………., S.A. e D…….. é de dizer que a sua responsabilização não emerge de qualquer relação jurídica administrativa, nem tais Réus são pessoas coletivas de direito público. Pelo contrário, trata-se de pessoas de direito privado e a base da sua responsabilização funda-se numa relação puramente civilística. Consequentemente, a competência cabe inequivocamente aos tribunais judiciais. O mesmo se diga (ex abundanti, pois que, como sobredito, a competência deve ser aferida em função do pedido principal) no que respeita ao pedido subsidiário (declaração de nulidade do contrato).

Aqui chegados, é de dizer que, apesar de vir pedida a condenação solidária dos Réus, não é caso de aplicar o disposto no n.º 2 do art. 4.º do ETAF (competência por conexão ou atração), de modo a estender à jurisdição administrativa e fiscal a competência relativamente aos Réus Fundo de Resolução, B…….., S.A., C…….., S.A. e D……...

É esta também a orientação que tem sido seguida neste Tribunal em casos iguais ao vertente.

Assim, pondera-se no acórdão acima aludido proferido no processo n.º 46/18 que «É certo que, como supra foi relatado, o A formulou um pedido de condenação solidária de todos os RR a pagarem-lhe determinada quantia em dinheiro e respetivos juros, bem, como o valor dos danos não patrimoniais. Contudo, não enformou os fundamentos dessa sua pretensão com qualquer espécie de intervenção das entidades públicas nos factos ilícitos imputados às 1ªs RR, pelo que não ressuma da PI o fundamento previsto no citado nº 2 do art. 4° do ETAF para deverem ser demandados conjuntamente todos os RR, porquanto não se vê em que medida aqueles entes poderiam estar ligados por vínculos jurídicos de solidariedade com as demais RR (particulares), designadamente por terem concorrido em conjunto com estas para a produção dos mesmos danos (Mário Aroso de Almeida [Em “Manual de Processo Administrativo”, Almedina, 3ª ed., pp. 253-254] refere que aquela regra procurou obviar a dificuldades que se vinham suscitando «quanto à competência dos tribunais administrativos para conhecer de ações de responsabilidade civil quando se verifique o chamamento ao processo de sujeitos privados que se encontrem envolvidos com a Administração ou com outros particulares numa relação jurídica administrativa ou no âmbito de uma relação conexa com a relação principal que constitui objeto do litígio».

E no acórdão de 16 de junho de 2019, proferido no processo n.º 2/19 (disponível em www.dgsi.pt) observa-se que «(...) a solidariedade nas obrigações, tal como decorre do artigo 513º do CC, só existe quando resulta da lei ou da vontade das partes. Não basta, deste modo, pedir ao Tribunal que condene solidariamente, sendo necessário alegar os factos - para os poder vir a demonstrar - «de que deriva a obrigação de indemnizar e, em caso de pluralidade de responsáveis, que as obrigações tenham entre si uma relação de solidariedade, que, em caso de procedência, fundamente a condenação solidária».

No mesmo sentido vai o acórdão também de 16 de junho de 2019, proferido no processo n.º 5/19 (disponível em www.dgsi.pt).

Sendo assim, como se afigura que é, não é a simples circunstância do Autor pedir a condenação solidária dos Réus que implica a extensão da competência dos tribunais administrativos à apreciação da pretensão dirigida contra os Réus B………, S.A., C………, S.A., Fundo de Resolução e D………, na certeza de que o Autor nada alegou factualmente que indique a existência de solidariedade emergente da vontade das partes. E da lei também não resulta qualquer solidariedade entre esses Réus e o Banco de Portugal e a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários.

Improcedem assim as conclusões do recurso na parte em que vão contra o que fica exposto.

Relativamente ao que se afirma nas conclusões R) e S), é de dizer que se trata de afirmação que não merece qualquer aceitação.

Pois que não está em causa o direito do Autor à obtenção de uma decisão que aprecie o mérito da sua pretensão, nem está em causa o direito de propriedade que eventualmente lhe assista.

O que está em causa é simplesmente a definição do tribunal competente para a apreciação subsequente desses direitos.

E, na parte em que a competência recai sobre os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal, certamente que nada impede o Autor de a ela recorrer e de obter junto dela uma decisão de mérito.

Resta dizer que os inconvenientes que para o Autor possam emergir da necessidade de recorrer à jurisdição administrativa são apenas a consequência de um facto que lhe é imputável.


+

No corpo da sua alegação o recorrente vem falar em “Recurso Prejudicial”, pretendendo que deve haver lugar ao reenvio previsto no art. 267.º do Tratado de Funcionamento da União Europeia, isto de modo a submeter à apreciação do TJUE a seguinte questão:

“A declarada incompetência total em razão da matéria em relação a todos os RR, no que respeita à apreciação de factos que não são suscetíveis de serem apreciados noutra sede, máxime, a responsabilidade civil emergente de operações intermediárias financeiras, sem recurso ao princípio da imediação e sem uso cabal de todos os meios de defesa, não viola o princípio do julgamento de forma justa e equitativa, conforme dispõe o artigo 47º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia?”

Em consequência, vem requerer “para o efeito, a suspensão da instância nos termos dos artigos 269º e 272º do Código de Processo Civil”.

Trata-se, porém, de pretensão desprovida de qualquer cabimento (e, de resto, nem sequer levada às conclusões, pelo que, muito provavelmente, deverá ser considerada como estando fora do objeto do recurso).

Como refere Carla Câmara (Guia Prático do Reenvio Prejudicial, Centro de Estudos Judiciários, acessível em www.cej.mj.pt) “Diz-se questão prejudicial aquela que um órgão jurisdicional nacional de um qualquer Estado-Membro considera necessária para a resolução de um litígio pendente perante si, e é relativa à interpretação, ou à apreciação de validade, do Direito da União (com excepção da apreciação de validade dos Tratados).”

Ora, desde logo, não está em discussão no presente recurso matéria que se prenda com o exercício dos direitos “de defesa” do Autor e para cuja apreciação seja necessário qualquer reenvio. Não está em causa o direito à obtenção de uma decisão que aprecie o mérito da pretensão do Autor, nem está em causa o direito de propriedade que eventualmente lhe assista. A invocação que o Recorrente faz do artigo 47º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia está claramente deslocada, na medida em que a situação vertente não cai em nenhuma das hipóteses previstas nesse artigo. Daqui que a pretensão do Recorrente ao reenvio esteja pura e simplesmente carecida de objeto, logo é desnecessária, inútil e impertinente.

Depois, importa ter presente que a este Tribunal dos Conflitos cabe apenas decidir sobre a competência (interna) material em discussão, e não decidir sobre a causa e, consequentemente, sobre um reenvio que apenas à decisão (ao julgamento) da causa interessaria.

A seguir, é de dizer que ao TJUE compete decidir, a título prejudicial, sobre a interpretação e validade do Direito da União. E a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia tem por destinatários os Estados-Membros, apenas quando apliquem o direito da União Europeia. E não é nada disso que aqui estamos a tratar. Do que estamos a tratar é de uma questão a dirimir com recurso a direito que não constitui Direito da União.

Por último, e como significa a supra referida autora, “Relativamente à fase do processo em que a questão prejudicial deve ser suscitada perante o Tribunal de Justiça, pelo órgão jurisdicional nacional, importa antes de mais realçar que aquela tem de ser pertinente e útil, isto é, necessária para a decisão da causa (não tendo o Tribunal de Justiça poderes consultivos para responder a questões gerais ou meramente hipotéticas).

Logo, tudo aconselha (considerações de economia processual e de utilidade) que o reenvio prejudicial seja feito após os factos já se encontrarem assentes, e os problemas de direito nacional resolvidos, pois só então estará definido o quadro jurídico-factual em que se irá actuar a interpretação ou apreciação de validade pedida."

Ora, nada disto se cumpre no caso vertente, pois que inexiste um quadro factual já assente e está ainda sob resolução (é disso que estamos precisamente a tratar) um problema de direito nacional (a competência).

Improcede pois a pretensão incidental (reenvio) em causa.


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Do que fica exposto resulta que a decisão recorrida e a decisão da 1ª instância têm que ser mantidas na parte em que definiram que a competência material recai sobre os tribunais da jurisdição administrativa quanto à pretensão dirigida contra os Réus Banco de Portugal e Comissão do Mercado de Valores Mobiliários.

Mas já terão que ser revogadas na parte restante.

IV. DECISÃO

Pelo exposto acordam os juízes neste Tribunal dos Conflitos em julgar parcialmente procedente o recurso, e, revogando nessa parte o acórdão recorrido e a decisão da 1ª instância, decidem que o conhecimento da causa relativamente aos Réus B…….., S.A., C………, S.A., Fundo de Resolução e D…….. é da competência do tribunal judicial.

No mais (competência para o conhecimento da pretensão contra os Réus Banco de Portugal e Comissão do Mercado de Valores Mobiliários) é o recurso julgado improcedente e confirmado o acórdão recorrido.

Sem custas.

Lisboa, 6 de Fevereiro de 2020. – José Inácio Manso Rainho (relator) – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa – Manuel Pereira Augusto de Matos – Carlos Luís Medeiros de Carvalho – Maria da Graça Machado Trigo Franco Frazão – José Augusto Araújo Veloso.