Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:012/15
Data do Acordão:06/03/2015
Tribunal:CONFLITOS
Relator:MAIA COSTA
Descritores:CONFLITO DE JURISDIÇÃO
Sumário:Estando em causa o reconhecimento do direito de propriedade de um prédio e a concreta delimitação do mesmo, não estamos perante uma relação jurídica de natureza administrativa, pelo que a competência para o julgamento da acção deve ser atribuída à jurisdição comum. (*)
Nº Convencional:JSTA00069243
Nº do Documento:SAC20150603012
Data de Entrada:03/06/2015
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DE VILA POUCA DE AGUIAR E O TAF DE MIRANDELA
AUTOR: A...... E OUTRO
RÉU: CM DE VILA POUCA DE AGUIAR
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:CONFLITO
Objecto:CONFLITO NEGATIVO JURISDIÇÃO TJ VILA POUCA DE AGUIAR - TAF MIRANDELA.
Decisão:DECL COMPETENTE JURISDIÇÃO COMUM.
Área Temática 1:*
Área Temática 2:DIR JUDIC - ORG COMP TRIB
Legislação Nacional:CONST05 ART211 N1 ART212 N3.
CPC13 ART64.
LOSJ ART40 N1.
Aditamento:
Texto Integral: Conflito nº: 12/15

Acordam no Tribunal dos Conflitos:


I. Relatório

A………., e mulher B………..propuseram no Tribunal Judicial da extinta comarca de Vila Pouca de Aguiar ação de condenação com processo comum contra a Câmara Municipal de Vila Pouca de Aguiar, nos termos e com os fundamentos seguintes:

1. Os AA são donos e legítimos proprietários do prédio urbano composto por casa de habitação e quintal, descrito na conservatória do Registo Predial de Vreia de Jales sob o nº 1680 da Vreia de Jales, com a área total de 275 m2, sendo 125 m2 de superfície coberta e os restantes 150 m2 de superfície descoberta.
2. E são donos porquanto lhes adveio em sucessão ocorrida por óbito do pai da autora mulher.
3. E na pequena casa que ali existia os AA procederam à ampliação da mesma.
4. Pintaram, colocaram novas janelas e portas, e ali passaram a residir em férias, sempre que se deslocam ao país.
5. Pertença da casa era, como é, uma pequena área de jardim, que confinava com a via pública, mas que dela se encontrava separada por um muro de pedra granítica.
6. Nas obras que os AA procederam, e porque só estão cerca de um mês em Portugal no ano inteiro, resolveram utilizar a área de jardim para fazer um pequeno terraço.
7. Na verdade tal terraço mais não é do que um prolongamento da entrada dos AA.
8. E, como se pode constatar por deslocação ao local, o terraço foi edificado mesmo por cima das pedras do muro que delimitava o referido jardim.
9. A área ora ocupada sempre foi de sua propriedade, e antes dele dos seus maiores.
10. Pelo contrário, na data em que procedeu aos melhoramentos em sua casa afastou a mesma da via pública em toda a área norte, cedendo ao domínio público mais de 1 metro em toda aquela extensão.
11. Necessitando para efeitos do seu processo de licenciamento camarário de fazer prova da propriedade da mesma vem intentar a presente acção, porquanto a edilidade exige tal comprovativo.

Terminam pedindo que a ação seja julgada procedente por provada, sendo em consequência a R. condenada a reconhecer que os AA. são donos e legítimos proprietários do prédio urbano descrito sob o nº 1680 da Freguesia de ………. e ainda que eles não ocuparam área pública com as suas obras.
A R. contestou, excecionando a incompetência material do tribunal, porquanto entende que a jurisdição competente é a administrativa, e não a comum.
Por despacho de 12.9.2014, o Sr. Juiz da Instância Local de Vila Pouca de Aguiar julgou esse tribunal materialmente incompetente para a apreciação da ação, em consequência do que determinou a absolvição da instância da R., com base nos seguintes fundamentos:

Pretendem os autores a condenação da ré a reconhecer que aqueles são donos do concreto prédio identificado na petição inicial, isto na sequência de um pedido formulado pela ré em sede de processo de licenciamento camarário.
Prescreve o artigo 212º, nº1, da CRP, relativamente à jurisdição comum, que: «os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas as outras ordens judiciais».
Por sua vez, prescreve o seu nº 3, quanto à ordem administrativa, que: «compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais».
A regra geral é a da jurisdição comum e sempre subsidiária. Em consonância, e segundo o chamado princípio do residual já acima abordado, o artigo 18º, n.º 1, da Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro (LOFTJ), e o artigo 66º do Código de Processo Civil, confirmam que «são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional».
Ora, desde 1 de Janeiro de 2004 que vigora o novo ETAF, aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro.
Conforme estatui o seu artº 4º nº 1, al. g), com a redacção que lhe foi dada pela Lei nº 107- D/2003, de 31 de Dezembro, em vigor desde 1 de Janeiro de 2004 (artº 4º nº 2): “1. Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto: a) Tutela de direitos fundamentais, bem como dos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares directamente fundados em normas de direito administrativo ou fiscal ou decorrentes de actos jurídicos praticados ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal; (...) c) Fiscalização da legalidade de actos materialmente administrativos, praticados por quaisquer órgãos do Estado ou das Regiões Autónomas, ainda que não pertençam à Administração Pública; (...)”.
Ora, no caso, compulsada a causa de pedir, constatamos que a mesma assenta numa relação jurídica de cariz administrativo, estabelecida entre um particular (os autores) e a administração (a ré), que tem na base um concreto processo de licenciamento camarário e um concreto acto administrativo, correspondente à exigência feita pela edilidade no tocante à apresentação de um comprovativo da propriedade do imóvel a que se alude na petição inicial.
Isto posto, entendemos que a relação jurídica que enforma a causa de pedir reporta-se direitos dos particulares (administrados) no âmbito de normas de direito administrativo e, bem assim, à legalidade de um concreto acto administrativo praticado no seio de um processo com a mesma natureza, em que a ré actua, efectivamente, com ius imperium e na prossecução do interesse público subjacente ao regime dos licenciamentos.

Remetidos os autos ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela, também este se julgou materialmente incompetente para a apreciação do litígio, nos seguintes termos:

Pelos presentes autos os autores pretendem que o réu seja condenado a reconhecer o direito de propriedade, que alegadamente detêm, sobre o prédio urbano descrito sob o n.º 1680 da Freguesia de ……… . Os autores peticionam ainda que o réu seja condenado a reconhecer que as obras realizadas por eles não ocupam área pública.
Da causa de pedir apresentada na p.i., resulta que os autores entendem ser os proprietários do referido prédio por via de sucessão do anterior proprietário. Alegam ainda que a área ocupada pelas construções que foram edificadas integra a sua propriedade.
A questão material controvertida, tal como apresentada pelos autores na p.i., é o reconhecimento do direito de propriedade e a concreta delimitação in loco do direito que os autores se arrogam, de forma a saber se as construções edificadas estão no solo de que se arrogam proprietários ou não.
Ao contrário do que consta da contestação, os autores não pretendem pôr em causa nenhum acto praticado no âmbito de um procedimento administrativo. Na verdade, no artigo 11º da p.i. os autores apenas referem que necessitam da delimitação e reconhecimento do seu direito de propriedade para efeitos de um processo de licenciamento camarário onde precisam de fazer prova da propriedade.
Os autores, na p.i., não põem em causa nenhum acto praticado no procedimento, pelo que não pode defender-se, como resulta da contestação, que está em causa um procedimento administrativo de licenciamento.
É que o artigo 11º da p.i. apenas tem em vista justificar o interesse agir dos autores e não configurar a acção como se fosse uma impugnação de um acto praticado no âmbito de um procedimento administrativo.
De facto, na p.i. não é identificado nenhum concreto procedimento administrativo ou um qualquer acto ou actuação material imputável a uma entidade administrativa.
O que está em causa é apenas um reconhecimento do direito de propriedade de que os autores se arrogam.
Ora, o reconhecimento do direito de propriedade não integra a noção de relação jurídica de natureza administrativa, conforme resulta do artigo 212.º, n.º 3 da CRP, 1.º e 4.º do ETAF, dado inexistirem quaisquer normas de direito público que importe apreciar.
Assim, em face da forma concreta como é configurada a acção na p.i. estamos perante matéria cuja competência pertence aos tribunais comuns dirimirem.
O Tribunal de Conflitos foi já chamado a pronunciar-se sobre a questão de saber quais os tribunais competentes para dirimirem os litígios que tenham por objeto o reconhecimento do direito de propriedade, tendo concluído que são os tribunais da jurisdição comum e não os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal.
Veja-se a este propósito os acórdãos do Tribunal de Conflitos nº 035/13, de 27.11.2013, 024/13, de 15.05.2013, 018/13, de 18.12.2013 e 011/09, de 07.07.2009, do STA de 21.05.2014, Proc. 0663/12 e do Tribunal da Relação do Porto de 26.02.2013, Proc. 292/08.7TBVLP.P1 e de 04.11.2013, Proc. 790/08.2TVPRT.P2.
Repare-se que o facto de o interesse em agir resultar da necessidade de os autores de fazerem prova do direito de propriedade para efeitos de um procedimento de licenciamento camarário não atribui competência por conexão aos tribunais da jurisdição administrativa, já que o direito de propriedade representa um requisito de legitimidade para a realização de operações urbanísticas, não vindo invocado que o direito de propriedade que os autores pretendem ver reconhecido resulte da aplicação de normas de direito administrativo.

De seguida, foram os autos remetidos a este Tribunal dos Conflitos para ser decidido o conflito entre aqueles tribunais.
A sra. Procuradora-Geral Adjunta neste Tribunal emitiu o seguinte parecer:

Vem requerida a resolução do conflito negativo de jurisdição, suscitado na acção de condenação intentada pelos AA. contra a Câmara Municipal de Vila Pouca de Aguiar, com vista a obter o reconhecimento do direito de propriedade sobre o imóvel descrito na Conservatória de Registo Predial de Vreia de Jales sob o nº 1680, com a área e localização descritas sob os nºs 1 e 5 da petição.
Em face do invocado pelos AA. sob o nº 11 da petição, e restantes elementos dos autos, o que está peticionado nos autos, não é apenas a concretização, no terreno, da linha divisória entre o imóvel de que os AA. dizem ser proprietários e o caminho público. Os AA. não exibem um título, em face do qual venham requerer a demarcação.
Nos termos do nº 11 da petição os AA. pretendem ver reconhecida a propriedade do imóvel com a área e extensão que invocam de 275 m2 a qual, segundo eles, inclui todo o terreno, que ocupam, adjacente ao caminho público, delimitado pelo «muro de pedra granítica» referida sob o nº 5.
Os Autores optaram por formular um pedido principal de reconhecimento da propriedade do imóvel com a descrição supra referida. E, ainda, um pedido de reconhecimento de que as obras realizadas, o foram na área da sua propriedade, pedido que decorre da procedência do primeiro.
Conforme bem refere a decisão do TAF de Mirandela, «na p.i. não vem identificado nenhum concreto procedimento administrativo ou um qualquer acto ou actuação material imputável a uma entidade administrativa».
Com o novo ETAF deixaram de estar excluídos da jurisdição administrativa os litígios relativos à «qualificação de bens como pertencentes ao domínio público e actos de delimitação destes com bens de outra natureza» (artº 4º, nº 1, al, e), do antigo ETAF).
A respeito desta exclusão refere Vieira de Andrade, in “A Justiça Administrativa”, (Lições) 9ª Edição, Almedina, pág. 122:
«Julgamos que o desaparecimento desta exclusão, ao implicar a aplicação da cláusula geral, vai trazer para os tribunais administrativos a competência para conhecer da impugnação dos actos de qualificação dominial, que são actos administrativos, bem como acções relativas a questões de delimitação do domínio público com outros domínios, que são questões de direito administrativo. As razões da exclusão estavam ligadas à ideia de que tudo o que respeitasse à propriedade devia ser julgado perante os tribunais judiciais, por desconfiança relativamente aos tribunais administrativos e pela pressuposição da limitação dos seus poderes - são, por isso, razões que deixaram de justificar o desvio relativamente ao critério substancial de definição do âmbito das jurisdições».
Apesar do actual desaparecimento da cláusula de exclusão da al. e), do nº 1, do art. 4º, do anterior ETAF, verificamos contudo que, nos presentes autos, o pedido formulado não é o da delimitação do domínio público com o domínio privado dos AA.. O pedido principal é o do reconhecimento da propriedade.
Face ao exposto, somos de parecer que deverá ser confirmada a decisão do TAF de Mirandela, que considerou estarmos perante matéria da competência dos tribunais comuns (arts. 212º, nº 3, da CRP e 1º e 4º do ETAF).
Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II. Fundamentação

Vem requerida a resolução do conflito negativo de jurisdição suscitado entre a Instância Local de Vila Pouca de Aguiar, da comarca de Vila Real, e o Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela, que mutuamente se atribuem competência para a apreciação da ação intentada pelos AA. contra a R. Câmara Municipal de Vila Pouca de Aguiar.
Tratando-se de tribunais pertencentes a jurisdições diferentes, é incontestável a necessidade de intervenção deste Tribunal dos Conflitos para resolver o conflito.
Nos termos do art. 212º, nº 3, da Constituição, compete aos tribunais administrativos e fiscais, o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.
Por sua vez, o nº 1 do art. 211º da Constituição dispõe que os tribunais judiciais exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais. Trata-se do princípio da competência residual dos tribunais judiciais, plasmado igualmente na lei ordinária (art. 40º. nº 1, da Lei de Organização do Sistema Judiciário - Lei nº 62/2013, de 26-8 - e art. 64º do Código de Processo Civil).
Como é consensual, a competência determina-se em função da causa de pedir e do pedido, tal como são formulados pelos AA.
A ação foi intentada na jurisdição comum e visa o reconhecimento pela R. do direito dos AA. à propriedade de um determinado prédio, e ainda ao reconhecimento de que os AA. não ocuparam área pública com as obras que nele efetuaram.
A Instância Local de Vila Pouca de Aguiar fundamentou a sua posição na alegada existência de uma relação jurídica de cariz administrativo entre os AA. e a administração, tendo por base um processo de licenciamento camarário, em que a R. exige o comprovativo da propriedade do imóvel, atuando pois a R. com jus imperium na prossecução do interesse público subjacente ao regime dos licenciamentos.
Esta posição é, porém, insustentável, tendo em conta a causa de pedir e o pedido.
O que os AA. pretendem, repete-se, é o reconhecimento do seu direito de propriedade do prédio. Não intentam impugnar nenhum ato praticado pela autarquia no âmbito do processo de licenciamento referenciado no art. 11º da petição inicial, referência essa que visa apenas esclarecer o interesse dos AA. no pedido formulado. Não impugnam sequer a “exigência” da prova da propriedade que terá sido feita nesse processo de licenciamento pela R.
O reconhecimento do direito de propriedade não constitui uma relação administrativa, pois não convoca normas de direito público para a decisão. Pelo contrário, os AA. invocam normas de direito privado (sucessão) para fundamentarem o seu direito.
Concluindo: estando em causa o reconhecimento do direito de propriedade de um prédio e a concreta delimitação do mesmo, não estamos perante uma relação jurídica de natureza administrativa; donde, a competência para o julgamento da ação deve ser atribuida à jurisdição comum.

III. Decisão

Com base no exposto, decide-se atribuir à jurisdição comum a competência para o julgamento da ação acima identificada.
Sem custas.

Lisboa, 3 de Junho de 2015. – Eduardo Maia Figueira da Costa (relator) - Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa - José Adriano Machado Souto de Moura - Carlos Luís Medeiros de Carvalho - Gabriel Martim dos Anjos Catarino - António Bento São Pedro.