Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:035/21
Data do Acordão:01/19/2022
Tribunal:CONFLITOS
Relator:TERESA DE SOUSA
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
EMPRESA CONCESSIONÁRIA
FORNECIMENTO DE ÁGUA
DÍVIDA
Sumário:É da competência da jurisdição administrativa e fiscal a acção, cujo requerimento de injunção por parte de empresa concessionária do serviço municipal de distribuição de água, com vista à condenação de um condomínio no pagamento das dívidas respeitantes ao fornecimento de água ao prédio, deu entrada antes de estar em vigor a alteração introduzida pela Lei nº 11/2019, ao artigo 4º do ETAF.
Nº Convencional:JSTA000P28830
Nº do Documento:SAC20220119035
Data de Entrada:11/17/2021
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LISBOA OESTE - JUÍZO LOCAL CÍVEL DE CASCAIS - JUIZ 4 E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE SINTRA UO1.
AUTOR: ADC - ÁGUAS DE CASCAIS, S.A.
RÉU: A..........., S.A.
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Conflito n.º 35/21

Acordam no Tribunal dos Conflitos

1. Relatório
Em 18 de Abril de 2019, AdC –Águas de Cascais, SA, identificada nos autos, requereu no Balcão Nacional de Injunções uma injunção contra A………….., SA, ao abrigo do DL nº 269/98, peticionando o pagamento de €2.170,65, sendo €1.892,65 de capital, €47,75 de juros de mora à taxa legal de 7,05%, contados desde 24.03.2016, €153,75 de outras quantias e €76,50 de taxa de justiça paga.
Alega em síntese que celebrou com a R. um contrato de fornecimento de água com o nº 201107216 relativa a contador padrão colocado no prédio da Estrada ……….., Depósito ………….., Malveira da Serra, Alcabideche, e que não foi paga a factura junta aos autos, correspondente “à diferença entre o total de água medido pelo conjunto dos contadores divisionários instalados naquele prédio e o total de água medido por contador totalizador (vulgo, contador padrão) instalado no mesmo prédio, ao abrigo do supra indicado contrato”.
Enviado o processo para o Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, Juízo Local Cível de Cascais, Juiz 4, em 29.10.2019, foi proferida decisão julgando “este tribunal absolutamente incompetente em razão da matéria para conhecer e decidir a presente causa …, e em consequência, determino a absolvição da A……….., SA da instância.” (fls. 67 e 68 dos autos).
Razão pela qual a Autora requereu a remessa dos autos ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra [TAF de Sintra – fls. 69.]
Neste Tribunal foi proferida decisão em 31.03.2020 na qual se decidiu que: “No caso em apreço, os autos de injunção foram distribuídos neste Tribunal, como se disse, no dia 06.03.2020 [cfr. alíneas c) e d) dos factos provados], data em que se encontrava já em vigor a alínea e) do n.º 4 do art.º 4.º do ETAF, com a redação dada pela Lei n.º 114/2019, de 12 de setembro.
Assim sendo há que concluir que este tribunal é materialmente incompetente para conhecer da presente ação.”. Termos em que se julgou o TAF de Sintra incompetente, em razão da matéria, para conhecer da presente acção (fls. 74ª 76 dos autos).
Por despacho de 09.11.2021 foi suscitada oficiosamente a resolução do conflito pelo TAF de Sintra, sendo o processo remetido ao Tribunal dos Conflitos - cfr. fls. 84 dos autos

Neste Tribunal dos Conflitos as partes, notificadas para efeitos do disposto no nº 3 do art. 11º da Lei nº 91/2019, nada disseram.
A Exma. Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de dever ser atribuída a competência material para apreciar a presente acção aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal.

2. Os Factos
Os factos relevantes para a decisão são os constantes do relatório.


3. O Direito
O âmbito da jurisdição dos tribunais judiciais é constitucionalmente definida por exclusão, sendo-lhe atribuída em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais (artigo 211º, n.º 1, da CRP).
Por seu turno, a jurisdição dos tribunais administrativos e fiscais é genericamente definida pelo n.º 3 do artigo 212.º da C.R.P., em que se estabelece que «compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais».
A competência dos tribunais administrativos e fiscais é concretizada no artigo 4.º do ETAF, com delimitação do “âmbito da jurisdição” mediante uma enunciação positiva (n.ºs 1 e 2) e negativa (n.ºs 3 e 4). Deste preceito importa reter o disposto na alínea e) do nº 4 que excluí do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal os litígios «emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respetiva cobrança coerciva» (redacção introduzida pela Lei n. º 114/2019, de 12.09).
Na Exposição de Motivos que acompanhou a Proposta de Lei nº 167/XIII, que deu origem à referida Lei nº 114/2019, consta o seguinte:
«A necessidade de clarificar determinados regimes, que originam inusitadas dificuldades interpretativas e conflitos de competência, aumentando a entropia e a morosidade, determinaram as alterações introduzidas no âmbito da jurisdição. Esclarece-se que fica excluída da jurisdição a competência para a apreciação de litígios decorrentes da prestação e fornecimento de serviços públicos essenciais. Da Lei dos Serviços Públicos (Lei n.º 23/96, de 26 de julho) resulta claramente que a matéria atinente à prestação e fornecimento dos serviços públicos aí elencados constitui uma relação de consumo típica, não se justificando que fossem submetidos à jurisdição administrativa e tributária; concomitantemente, fica agora clara a competência dos tribunais judiciais para a apreciação destes litígios de consumo.» (disponível em DetalheIniciativa, parlamento.pt).
O TAF de Sintra declarou a sua incompetência, em razão da matéria, face ao que dispõe a Lei nº 114/2019, com o fundamento de que o processo apenas tinha dado entrada naquele Tribunal após a entrada em vigor da dita Lei, ou seja, após 11.11.2019.
No entanto, como se afirmou no ac. deste Tribunal dos Conflitos de 20.01.2021, Proc. nº 01574/20.5T8CSC.S1, «aquele diploma não regula a sua própria aplicação no tempo.
Tratando-se de uma alteração respeitante à competência material da jurisdição administrativa e fiscal, a aplicação no tempo dessa exclusão não atinge as acções pendentes, de acordo com o disposto no artigo 5.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais. O mesmo princípio consta, aliás, do n.º 2 do artigo 38.º da Lei de Organização do Sistema Judiciário, preceito incluído no Título V, relativo aos Tribunais Judiciais, e que prevê duas excepções, nas quais a lei nova é de aplicação às acções pendentes: a extinção do tribunal onde a acção foi proposta e a atribuição de competência a tribunal incompetente (…).
Interessa portanto determinar quando se considera proposta ou pendente a acção que veio a ser distribuída no Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra na sequência do requerimento de injunção.


Pese embora a decisão de fls. 22 ter considerado relevante para o efeito do momento da distribuição do processo no Tribunal, 10 de Janeiro de 2020, entende-se tal como se decidiu no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10 de Março de 2016, www.dgsi.pt, proc. n.º 30249/14.2YIPRT.G1.S1, que releva a “data em que o requerimento de injunção foi apresentado junto do Balcão Nacional de Injunções”. O Balcão Nacional de Injunções é uma secretaria judicial de âmbito nacional, destinada a “assegurar a tramitação do procedimento de injunção” (artigo 1º da Portaria n.º 220-A/2008, de 4 de Março), e essa natureza não releva para que, caso a injunção venha a resultar numa acção, se tenha como data da propositura apenas a da distribuição em tribunal, diferentemente do que sucede com o comum das acções, que se consideram pendentes “logo que seja recebida na secretaria a respectiva petição inicial” (n.º 1 do artigo 259.º do Código de Processo Civil e artigo 78.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos); o que em caso de apresentação “por transmissão electrónica de dados”, significa a “respectiva expedição” (n.º 1 do artigo 144.º do Código de Processo Civil, ressalvado pelo citado artigo 259.º, n.º 1, aplicável nos tribunais administrativos e fiscais, artigo 23.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos). Basta pensar que a data de propositura da acção releva por exemplo para efeitos de caducidade e que a interrupção da prescrição – que em geral ocorre com a citação do réu (n.º 1 do artigo 323.º do Código Civil), se tem como verificada, se a citação não for realizada no prazo de 5 dias após ter sido requerida (após a propositura da acção), não sendo imputável ao autor a ultrapassagem desse prazo (n.º 2 do artigo 323.º); solução diferente poderia prejudicar o requerente/autor, que apenas controla a data em que apresenta o requerimento de injunção.
Não são pois aplicáveis as alterações que a Lei n.º 118/2019 introduziu no artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, valendo portanto a versão anterior desse preceito.
…A questão de saber se cabe na jurisdição administrativa e fiscal uma acção na qual uma empresa concessionária do serviço municipal de distribuição de água pretende a condenação de um condomínio no pagamento de dívidas respeitantes ao fornecimento de água ao prédio, “correspondente à diferença entre o total de água medido pelo conjunto dos contadores divisionários instalados naquele prédio e o total de água medido por contador totalizador (vulgo, padrão) instalado no mesmo prédio” (requerimento executivo), ao abrigo de contrato celebrado entre ambos (cfr. fls. 16), foi apreciada por diversas vezes pelo Tribunal dos Conflitos, que na generalidade dos casos concluiu tratar-se de questão da competência dos tribunais tributários (cfr., a título de exemplo, os acórdãos de 9/11(2010, proc. n.º 17/10, de 25 de Junho de 2013, proc. n.º 033/13, de 30 de Outubro de 2014, proc. n.º 047/14, de 13 de Novembro de 2014, proc. n.º 041/14, de 4 de Novembro de 2015, proc. n.º 124/14, de 7 de Novembro de 2019, proc. nº 021/19, todos disponíveis em www.dgsi.pt.» (cfr. igualmente neste sentido o recente ac. deste Tribunal dos Conflitos de 15.09.2021, Proc. nº 01/21, disponível no mesmo sítio).

Pelo exposto, e atento o disposto no art. 14º, nº 5, da Lei nº 91/2019, de 4/9, acordam em julgar competente para apreciar a presente acção na qual é autora AdC – Águas de Cascais, SA e Ré A………….., SA, o Juízo Tributário Comum do TAF de Sintra (arts. 50º do ETAF, 19º, nº 2 do CPTA e arts. 1º e 9º do DL nº 174/2019, de 13/12 e art. 1º da Portaria nº 121/2020, de 22/5).
Sem custas.

Lisboa, 19 de Janeiro de 2022. – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa (relatora) - Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza.