Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:029/14
Data do Acordão:09/25/2014
Tribunal:CONFLITOS
Relator:COSTA REIS
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO.
QUESTÃO FISCAL.
COIMA.
TRIBUNAL COMPETENTE.
Sumário:I - Por questões fiscais, deve entender-se as resultantes de imposições autoritárias que postulem aos contribuintes o pagamento de toda e qualquer prestação pecuniária, em ordem à obtenção de receitas destinadas à satisfação de encargos públicos dos respectivos entes impositores.
II - A aplicação de sanções contra ordenacionais em matéria não tributária está sediada nos Tribunais comuns.
III - Deste modo, e porque a aplicação de uma coima destinada a punir um comportamento que infringiu a lei relativa à detenção de participações sociais não pode ser qualificada como a aplicação de uma coima em matéria fiscal, os Tribunais comuns serão os competentes para conhecer e apreciar a sua impugnação.
Nº Convencional:JSTA00068911
Nº do Documento:SAC20140925029
Data de Entrada:05/06/2014
Recorrente:A...., SGPS, S.A., NO CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O TRIBUNAL DE PEQUENA INSTÂNCIA CRIMINAL DE LISBOA (2º JUÍZO, 3ª SECÇÃO) E O TRIBUNAL TRIBUTÁRIO DE LISBOA
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:CONFLITO
Objecto:CONFLITO NEGATIVO JURISDIÇÃO T1INSTC LISBOA - TTRIB LISBOA
Decisão:DECL COMPETENTE O TRIBUNAL COMUM.
Área Temática 1:DIR PROC TRIBUT CONT - CONFLITO COMPETENCIA
Legislação Nacional:CONST76 ART212.
DL 495/88 ART3 N3 N5.
DL 433/82 ART61 N1.
Jurisprudência Nacional:AC STAPLENARIO PROC0937/03 DE 2003/10/29.; AC STAPLENO PROC0699/06 DE 2007/02/28.
Aditamento:
Texto Integral: CONFLITO N.º 29/14

Acordam no Tribunal de Conflitos:

1. A…………, S.A, interpôs, no Tribunal de Pequena Instância Criminal de Lisboa, recurso da decisão da Inspecção Geral de Finanças, de 5/07/2013, que a puniu com a coima de 2.000 euros pela prática de quatro infracções – duas por violação do disposto no art.º 3.º, n.º 3, al.ª a), do DL 495/88 e duas por violação do art.º 3.º, n.º 5, do mesmo DL – com o fundamento de que a mesma era detentora de participações sociais em duas sociedades comerciais cuja aquisição e detenção não atingia o limite mínimo de 10% do capital das sociedade participadas.

O Sr. Juiz a quem o processo foi distribuído entendeu que, por força do disposto no art.º 53.º do Regime Geral de Infracções Tributárias, os Tribunais de Pequena Instância Criminal de Lisboa não eram os competentes para julgar mencionado recurso mas antes o Tribunal Tributário de 1.ª Instância, pelo que julgou “incompetentes os Juízos de Pequena Instância Criminal de Lisboa.

Remetidos os autos ao Tribunal Tributário de Lisboa este começou por afirmar que a “competência material atribuída aos tribunais tributários para conhecer dos recursos das decisões de aplicação de coimas - ressalvados os casos previstos no artigo 38.° do RGCO, ou seja, em que se verifique concurso de crime e contra-ordenação, ou quando, pelo mesmo facto, uma pessoa deva responder a título de crime e outra a título de contra-ordenação - respeita, obviamente a coimas aplicadas por infracções tributárias, que são as infracções que o diploma legal em causa pretende regular (cfr. seu artigo 1°), como resulta do seu teor: Regime Geral das Infracções Tributárias.” Ora, “as contra-ordenações em causa respeitam à alegada violação do disposto no art.º 3.°, n.º 3, al.ª a), e no art.º 3.°, n.º 5, do Decreto-Lei n.º 495/88, de 30/12, sendo infracções previstas e punidas pelo artigo 13.°, n.º 1, do mesmo diploma legal. Está, assim, em causa a violação de normas que definem o limite mínimo e máximo de participações sociais em outras sociedades, no âmbito de um diploma legal que vem instituir o regime jurídico das SGPS.” Sendo assim, e atendendo a que as referidas contra ordenações não correspondiam a “qualquer infracção tributária, teremos que concluir não ser o Tribunal Tributário materialmente competente para conhecer do presente recurso, sendo esta competência atribuída ao Tribunal de Pequena Instância Criminal de Lisboa, nos termos do disposto no artigo 61.° do RGCO e no artigo 133.°, alínea b), da Lei n.º 52/2008, de 28/08 (LOFTJ) …. .”

Esta contradição de julgamentos levou a que o M.P. requeresse, ao abrigo do disposto nos art.ºs 111.º/2 do CPC e 29.º do ETAF, a resolução do apontado conflito negativo de competência.
Cumpre, pois, resolvê-lo, isto é, cumpre determinar qual dos dois Tribunais é o materialmente competente para apreciar a legalidade da decisão da Inspecção Geral de Finanças que aplicou à A………., S.A. a coima de 2.000 euros por violações ao disposto no art.º 3.º, n.ºs 3 e 5, do DL 495/88, de 30/12, puníveis nos termos do seu art.º 13.º.

2. É sabido que os “tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais” (art.º 211°/1 da CRP) e que “compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais.” (art. 212.º/3 da CRP).
Princípios esses que foram integrados na legislação ordinária onde se estabeleceu que cumpre aos “tribunais da jurisdição administrativa e fiscal … administrar a justiça (......), nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais” (art.º 1.º do ETAF), daí decorrendo que a jurisdição administrativa e fiscal é a competente para o conhecimento dos litígios emergentes de relações administrativas e fiscais desde que elas não envolvam a aplicação de medidas de natureza contra ordenacional já que, nesse caso, a competência para o conhecimento e apreciação dessas medidas encontra-se sediada nos Tribunais comuns. O que quer dizer que, apesar da jurisdição administrativa e fiscal estar vocacionada para o conhecimento dos litígios emergentes de relações administrativas e fiscais, certo é que se os mesmos envolverem o ilícito penal ou contra ordenacional a apreciação da sua legalidade estará cometida aos Tribunais comuns.
O que não contraria o disposto no art.º 212.º/3 da CRP já que este não impede os Tribunais comuns de decidir certas questões relacionadas com o direito administrativo e fiscal, designadamente as resultantes da aplicação de medidas de natureza contra ordenacional por autoridades administrativas e fiscais. – vd. Ac do STA de 13/11/2007 (rec. 697/07).

Acresce que a determinação do Tribunal materialmente competente para conhecer da pretensão formulada pelo Autor afere-se em função dos termos em que a mesma vem proposta e dos fundamentos em que ela se estriba. É o que tradicionalmente se costuma exprimir com a fórmula «a competência determina-se pelo pedido formulado pelo Autor». Acórdão do Tribunal de Conflitos de 11/7/00, Conflito n.º 318 (AD 468/1.630). No mesmo sentido, e a título meramente exemplificativo, vd. Acórdãos desse mesmo Tribunal de 3/10/00, (Conflito n.º 356), de 3/10/00 (Conflito n.º 356), de 6/11/01, (Conflito n.º 373) e de 5/2/03, (Conflito n.º 6/02), do Pleno do STA de 9/12/98, rec. n.º 44.281 (BMJ 482/93) e do STJ de 21/4/99, rec. n.º 373/98 e Prof. Manuel de Andrade”, Noções Elementares de Processo Civil” pg. 88 e seg.s

Nesta conformidade, e porque a coima que a Recorrente quer ver anulada foi aplicada pela Inspecção Geral de Finanças com fundamento de que ela havia violado o disposto no art.º 3.º, n.ºs 3 e 5, do DL 495/88 - disposições que determinam que as “SGPS só podem adquirir e deter acções ou quotas correspondentes a menos de 10% do capital com direito de voto da sociedade participada, até ao montante de 25% do valor total das participações incluídas nas imobilizações financeiras constantes do último balanço aprovado, no caso de a aquisição resultar de fusão ou de cisão da sociedade participada e no caso de a participação ocorrer em sociedade com a qual a SGPS tenha celebrado contrato de subordinação” e que obrigam a que “as participações que excedam o limite fixado no n.º 3 devem, sem prejuízo do disposto no n.º 7, ser alienadas durante os primeiros seis meses do exercício seguinte, salvo se entretanto já tiverem sido reduzidas àquele limite” – a questão que se nos coloca é a de saber se a violação de tais normas e a correspondente aplicação da contestada coima pode ser qualificada como violação de normas de direito fiscal e, por isso, se a relação jurídica cuja apreciação se impõe aqui fazer pode ser qualificada como atinente a uma questão fiscal já que, como afirmou Jorge de Sousa no Código do Procedimento e do Processo Tributário, 4.ª ed., p. 152, “para determinação da competência material dos tribunais administrativos e fiscais, o que é relevante é a natureza da questão que o recorrente coloca na petição de recurso contencioso e não a natureza das questões que o tribunal, depois de previamente decidida a sua competência, vai entender ter de decidir para conhecer adequadamente a questão colocada. Nestas condições, o que há a fazer para decidir a questão da competência material, é apenas verificar se é colocada ao tribunal uma questão de natureza administrativa e fiscal, independentemente de, para a sua resolução conveniente, se vir a entender ser necessário conhecer de questões de outra natureza.
Ou seja, e dito de forma diferente, o que importa saber é se a dita coima constitui um acto atinente a questões fiscais e, por essa razão, um acto cuja sindicância deve ser feita nos Tribunais tributários ou, pelo contrário, se tal acto não envolve uma questão fiscal e, por isso, a sua impugnação tem lugar nos Tribunais comuns.

3. O Acórdão do Plenário do STA de 29/10/2003 (rec. 937/03) considerou que por "questões fiscais, deve entender-se tanto as resultantes de imposições autoritárias que postulem aos contribuintes o pagamento de toda e qualquer prestação pecuniária, em ordem à obtenção de receitas destinadas à satisfação de encargos públicos dos respectivos entes impositores, como também das que as dispensem ou isentem, ou, numa perspectiva mais abrangente, as respeitantes à interpretação e aplicação de normas de direito fiscal, com atinência ao exercício da função tributária da Administração Pública, em suma, ao regime legal dos tributos.” – No mesmo sentido pronunciou-se o Pleno da Secção de Contencioso tributário do STA no Acórdão de 28/02/2007 (rec. 699/06).

Ora, é indiscutível que a aplicação da sanção a que os autos se referem não se destinou à obtenção de receitas destinadas à satisfação de encargos públicos mas apenas a punir um comportamento que infringiu a lei relativa à detenção de participações sociais. O que dizer que não estamos perante a aplicação de uma coima em matéria fiscal.
Ora, a aplicação de sanções contra ordenacionais em matéria não tributária está sediada nos Tribunais comuns já que o art.º 61.º/1 do DL 433/82 prescreve que “é competente para conhecer do recurso o Tribunal em cuja área territorial se tiver consumado a infracção”, sendo certo, por outro lado, que aqueles Tribunais exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais (art.º 211°/1 da CRP). É, aliás, por isso que o art.º 73.º/1 daquele diploma estatui que da sentença se recorre para a Relação o que reforça a convicção de são os Tribunais comuns os competentes nesta matéria.
Termos em que os Juízes deste Tribunal de Conflitos acordam em declarar os Tribunais comuns os competentes para conhecer e apreciar a legalidade da coima aqui em causa.

Sem custas.
Lisboa, 25 de Setembro de 2014. – Alberto Acácio de Sá Costa Reis (relator) - Gabriel Martim dos Anjos Catarino – António Bento São Pedro – Gregório Eduardo Simões da Silva Jesus – Vítor Manuel Gonçalves Gomes – João Tavares de Paiva.