Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:058/17
Data do Acordão:11/08/2018
Tribunal:CONFLITOS
Relator:FRANCISCO CAETANO
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P23821
Nº do Documento:SAC20181108058
Data de Entrada:10/04/2017
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE A COMARCA DE VILA REAL, NÚCLEO DE VILA POUCA DE AGUIAR - INST. LOCAL - SECÇÃO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA - J1 E O TAF DE MIRANDELA
AUTOR: A…….. E OUTRA.
RÉU: CÂMARA MUNICIPAL DE RIBEIRA DA PENA
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Conflito n.º 58/17
Acordam no Tribunal dos Conflitos:

I. Relatório

1. A………… e mulher B……….., identificados nos autos, em 05.08.2016 intentaram na Instância Local - Secção de Competência Genérica - Juiz 1, de Vila Pouca de Aguiar, Comarca de Vila Real, acção declarativa de condenação com forma de processo comum, contra a Câmara Municipal - Município - de Ribeira de Pena, pedindo, a final, que este fosse condenado a:

“A) Reconhecer que incumpriu o "convénio" com os AA. pelo que o mesmo fica resolvido por culpa exclusiva da ré;

B) A indemnizar os AA pelo valor de € 3.000 pelos danos morais sofridos;

C) A proceder ao pagamento aos AA da quantia de 17.000 € valor dos lotes à data da celebração do convénio, a pagar aos AA o valor de € 3.000 a título de danos morais e patrimoniais do pedido formulado em B);

D) A pagar o valor de € 5,000 pelo incumprimento contratual;

E) Pagar custas de parte" (sic).

Alegaram, para tanto, em síntese, serem donos do prédio rústico que identificaram no art.º 1.º da petição inicial e que em 13.09.2013 celebraram com o Município de Ribeira de Pena um contrato que denominaram por “convénio”, para cedência da área de 135 m2, a desanexar desse prédio rústico, comprometendo-se o R. em contrapartida a ceder aos AA. dois lotes de terreno, com a área de 750 m2, cada um, num loteamento a realizar no ……………., Bragadas;

Alegaram, ainda, que esse convénio foi aprovado por unanimidade do executivo camarário em 20.07.2013, tendo o R. tomado posse da área cedida, que nela edificou uma fossa, sem que, contudo e até ao presente, o mesmo tenha procedido ao pagamento das contrapartidas acordadas, apesar de sucessivas interpelações dos AA.

Mais alegaram que pela edilidade lhes foi referido não pretender ceder-lhes os lotes acordados, dado não ir terminar o loteamento. Porém, fez um loteamento parcial, tendo criado a Assembleia de Compadres de Santo Aleixo e vendido pelo menos dois lotes ao preço de 8.500,00 € cada, valor esse pelo qual entendem dever ser indemnizados pelos lotes que o R. lhes não cedeu, com acréscimo de juros de mora, desde a respectiva assinatura até efectivo e integral pagamento.

Alegaram, por último, que os AA. têm estado muito incomodados e ansiosos com toda esta situação, motivo pelo qual deve o R. ser condenado no pagamento de indemnização no valor de 3.000,00 € a título de danos não patrimoniais sofridos.

2. O Réu contestou, defendendo-se por impugnação, referindo que o terreno em questão foi cedido ao Município sem qualquer contrapartida, em 2002, para construção da ETAR de Bragadas, construção que foi concluída em 2004, sendo tal cedência meramente verbal.

Mais referiu que só posteriormente, já em 2012, se colocou a hipótese de o Município, em conjunto com a Junta de Freguesia, vir a lotear uma parcela de terreno e ainda de, dos lotes a constituir, serem cedidos gratuitamente dois aos autores, motivo pelo qual foi assinado, já em 2013, o convénio invocado pelos AA., que terá de ser entendido como posterior promessa unilateral de cedência de lotes de terreno sem qualquer relação directa com a cedência anteriormente ocorrida.

Referiu, igualmente, que tais lotes não chegaram a ser constituídos por razões alheias à vontade dos órgãos do Município, situação que foi comunicada aos AA., estando o R. disposto a compensá-los pela cedência gratuita anteriormente concretizada para execução da referida obra pública, mas por valores inferiores aos peticionados.

3. A Instância Local - Secção de Competência Genérica – J 1, de Vila Pouca de Aguiar, Comarca de Vila Real, por decisão de 8 de Março de 2017, declarou-se incompetente em razão da matéria, a favor do tribunal administrativo e, consequentemente, absolveu o R. da instância.

Considerou que a relação controvertida é uma relação jurídico-administrativa, uma vez que “A Ré atua na prossecução das específicas atribuições que lhe incumbem e nesse contrato as partes acordaram expressamente na aplicação à relação entre si estabelecida das leis, regulamentos e princípios de direito administrativo, i.é., um regime substantivo de Direito Público - e só subsidiariamente aplicar-lhe a lei civil”, reconduzindo-se o presente litígio “a uma questão de validade e execução de contrato ao qual se aplica o regime da contratação pública, regime substantivo de direito público, designadamente por vontade das partes”.

4. Os AA requereram, em 16.03.2017, ao abrigo do disposto no art.º 99.º, n.º 2, do CPC, a remessa do processo ao tribunal administrativo considerado competente, concretamente ao Tribunal Administrativo e Fiscal de (TAF) de Mirandela.

5. Aí, por decisão de 12-06-2017, foi julgada procedente a excepção da incompetência absoluta em razão da matéria desse tribunal, absolvendo o R. da instância.

Considerou-se, para tanto, que o pedido formulado pelos AA. tinha como causa de pedir o incumprimento de um convénio celebrado entre estes e o R. e que o litígio em causa nos autos não emergia de uma relação contratual de direito administrativo, podendo antes ser qualificado juridicamente como um contrato de permuta que, na ausência de regulamentação específica, se rege pelas normas relativas à compra e venda previstas no Código Civil, contrato esse que se encontra excluído do âmbito de aplicação do Código dos Contratos Públicos (CCP), por força do disposto no art.º 4º, n.º 2, al. c), do citado diploma legal, não sendo, desta forma, subsumível nas alíneas b), e) e f) do art.º 4.º do ETAF.

6. Os AA. requereram a remessa dos autos ao Tribunal de Conflitos, nos termos do art.º 111.º n.º 2, do CPC, suscitando a resolução do conflito negativo de jurisdição entre aquele TAF e a Instância Local - Secção da Competência Genérica - Juiz 1, de Vila Pouca de Aguiar, Comarca de Vila Real.

7. A Exma. Procuradora-Geral Adjunta neste Tribunal dos Conflitos Ministério Público emitiu proficiente parecer, no sentido de que a competência para apreciação da causa deve ser atribuída ao TAF de Mirandela, dado que, em suma, o “convénio” subscrito pelo Município e pelo particular tem natureza de contrato administrativo e o pedido de indemnização por responsabilidade civil contratual de um ente público, no âmbito de uma relação jurídica administrativa, deverá ser apreciada pelos tribunais administrativos.


*

II. Fundamentação

1. O circunstancialismo relevante para o julgamento do presente conflito é o que acaba de descrever-se no precedente relatório, relevando ainda o teor do acordo celebrado entre A. e. R., a cuja transcrição, na parte relevante, à frente se vai proceder.

2. O art.º 109.º do CPC (na versão aplicável, de 2013) define as situações em que se verifica a existência de um conflito de jurisdição, desde logo estabelecendo os respectivos pressupostos de ordem processual.

Assim, nos termos dos seus n.ºs 1 e 3, verifica-se um conflito de jurisdição quando dois ou mais tribunais, integrados em diferentes ordens jurisdicionais, se declaram competentes (conflito positivo) ou incompetentes (conflito negativo) para conhecer da mesma questão, por decisões contrárias e definitivas, ou seja, insusceptíveis de recurso.

São, pois, requisitos para a existência de um conflito de jurisdição: (a) a existência de duas decisões judiciais de diferentes ordens jurisdicionais sobre a mesma questão e (b) que as duas decisões em causa sejam definitivas, ou seja, que tenham transitado em julgado.

Deste modo e quanto ao primeiro pressuposto (existência de duas decisões judiciais sobre a mesma questão), esse preceito legal exige que esteja em causa a mesma questão, ou seja e por outras palavras, que exista identidade na questão substantiva subjacente a ambas as causas.

No caso em apreço, a petição inicial que deu origem a ambas as decisões é a mesma, já que os AA. usaram da faculdade a que alude o art.º 99.º, n.º 2, do CPC, pelo que dúvidas não há de que ambas as jurisdições se declararam incompetentes para decidir a mesma questão/situação jurídica substancial.

Quanto ao segundo pressuposto (que as duas decisões em causa sejam definitivas, ou seja, que tenham transitado em julgado), também é manifesto que ele se verifica, já que ambas as decisões judiciais que declinaram a competência para apreciar a mesma questão não são susceptíveis de recurso.

Em suma, tendo dois tribunais integrados em ordens jurisdicionais diferentes declinado, por decisões transitadas em julgado, o poder de conhecer da mesma questão, verifica-se um conflito (negativo) de jurisdição, que cabe a este Tribunal dos Conflitos resolver, nos termos dos art.ºs 109.º, n.ºs 1 e 3, e 110.º do CPC.

3. A questão que importa decidir prende-se, pois, com aqueloutra de saber que tribunal será competente para conhecer da acção introduzida em juízo pelos AA: se os tribunais administrativos, como considerou o Juiz 1 da Instância Local - Secção da Competência Genérica - de Vila Pouca de Aguiar, se os tribunais comuns, como decidiu o TAF de Mirandela.

Constitui jurisprudência pacífica deste Tribunal dos Conflitos que a competência, tal como ocorre com qualquer pressuposto processual, se afere em face do pedido concatenado com a causa de pedir, ou seja, com a natureza da relação material em litígio, tal como é configurada pelo autor (V., entre outros, os Acs. do Tribunal dos Conflitos de 25.03.2015, Proc. 02/14, 25.06.2015, Proc.08/15, 09.07.2015, Proc. 07/15, 18.02.2016, Proc. 28/15, 24.05.2017, Proc. 030/16, 01.06.2017, Proc. 02/16 e 01.02.2018, Proc. 016/17, em www.dgsi.pt) .

É o que tradicionalmente se costuma exprimir, dizendo que a competência se determina pelo pedido do autor, ou seja, a decisão de qual é o tribunal (jurisdição) competente há-de ser feita de acordo com os termos da pretensão do autor, abrangendo os respectivos fundamentos, não importando averiguar qual a viabilidade dessa pretensão (Manuel Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1976, págs. 90 e 91.).

A competência é questão prévia a tal apreciação, a decidir independentemente do mérito/demérito da acção, não dependendo, deste modo, da sua procedência ou improcedência.

4. No plano interno, o poder jurisdicional divide-se por diversas categorias de tribunais, de acordo com a natureza da matéria das causas.

Na base da competência em razão da matéria está o princípio da especialização, com o reconhecimento da vantagem de reservar para órgãos judiciários diferenciados o conhecimento de certos sectores do Direito pela vastidão e pela especificidade das normas que os integram. Trata-se, pois, de uma competência “ratione materiae”: a instituição de diversas espécies de tribunais e da demarcação da respectiva competência obedece a um princípio de especialização, com as vantagens que lhe são inerentes.

Conforme resulta dos art.ºs 211.º, n.º 1, da CRP e 64.º do CPC, os tribunais judiciais constituem a regra dentro da organização judiciária e, por isso, gozam de competência não discriminada (competência genérica), enquanto os restantes tribunais têm a sua competência limitada às matérias que lhes são especialmente atribuídas.

Especificamente, no que toca à competência dos tribunais administrativos, estabelece o art.º 212, n.º 3, da CRP, que “[c]ompete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.

5. O critério material que enforma a delimitação do âmbito da jurisdição administrativa é, pois, o conceito de relação jurídica administrativa, enunciado no mencionado art.º 212.º, n.º 3, da CRP, isto é, o conjunto de relações onde a Administração é, típica ou nuclearmente, dotada de poderes de autoridade para cumprimento das suas principais tarefas de realização do interesse público (O conceito de relação jurídica administrativa consta, também, da al. o) do n.º 1 do art.º 4.º, que se assume como uma norma residual, que abrange os litígios jurídico-administrativos não enunciados no mesmo n.º 1 do art.º 4.º do ETAF.) .

Vieira de Andrade (A Justiça Administrativa, Lições, 2000. pág. 79) define a relação jurídica administrativa como sendo “aquela em que um dos sujeitos, pelo menos, é uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido”.

No mesmo âmbito, sustentam Gomes Canotilho e Vital Moreira, (Constituição da República Portuguesa, Anotada, II, 4ª ed., pág, 566), “[e]stão em causa apenas os litígios emergentes de relações jurídico-administrativas (ou fiscais) (nº 3, in fine).

Esta qualificação transporta duas dimensões caracterizadoras: (1) as acções e recursos incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos, um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão de poder público (especialmente da administração); (2) as relações jurídicas controvertidas são reguladas, sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo ou fiscal. Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza “privada” ou “jurídico-civil”. Em termos positivos, um litígio emergente de relações jurídico-administrativas e fiscais será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal (...)”.

Por sua vez, Fernandes Cadilha, (Dicionário de Contencioso Administrativo, 2006, pág. 117/118), refere que “por relação jurídico administrativa deve entender-se a relação social estabelecida entre dois ou mais sujeitos (um dos quais a Administração) que seja regulada por normas de direito administrativo e da qual resultem posições jurídicas subjectivas. Pode tratar-se de uma relação jurídica intersubjectiva, como a que ocorre entre a Administração e os particulares, interadministrativa, quando se estabelecem entre diferentes entes administrativos, no quadro de prossecução de interesses públicos próprios que lhes cabe defender, ou inter-orgânica, quando se interpõem entre órgãos administrativos da mesma pessoa colectiva pública, por efeito do exercício dos poderes funcionais que lhes correspondem. Por outro lado, as relações jurídicas podem ser simples ou bipolares, quando decorrem entre dois sujeitos, ou poligonais ou multipolares, quando surgem entre três ou mais sujeitos que apresentam interesses conflituantes relativamente à resolução da mesma situação jurídica”.

Mário Aroso de Almeida, (Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos, 2005, pág, 57), refere que “as relações jurídico-administrativas não devem ser definidas segundo um critério estatutário, reportado às entidades públicas, mas segundo um critério teleológico, reportado ao escopo subjacente às normas aplicáveis”. Ou seja, serão relações jurídicas administrativas as derivadas de actuações materialmente administrativas, praticadas por órgãos da Administração Pública ou equiparados.

Por sua vez, Freitas do Amaral, (Lições de Direito Administrativo, edição de 1989, III, págs. 439-440), definiu a relação jurídica administrativa como “aquela que confere poderes de autoridade ou impõe restrições de interesse público à Administração perante particulares, ou que atribui direitos ou impõe deveres públicos aos particulares perante a Administração”.

6. De acordo com o disposto no art.º 38.º, n.º 1, da LOSJ “[a] competência fixa-se no momento em que a acção se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente, a não ser nos casos especialmente previstos na lei.”

Também nos termos do art.º 5.º do ETAF (seja na redacção anterior, seja na actual) “a competência dos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal fixa-se no momento da propositura da causa, sendo irrelevantes as modificações de facto e de direito que ocorram posteriormente”.

À data da interposição da presente acção (05.08.2016) encontrava-se em vigor o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF) na redacção introduzida pelo DL n.º 214-G/2015, de 2 de Outubro, essa sendo a aplicável (art.º 15.º, n.º 1).

7. Estabelece o art.º 1.º, n.º 1, do ETAF que “[os] tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios compreendidos pelo âmbito de jurisdição prevista no artigo 4.º deste Estatuto”.

Esta disposição remete, assim, para o art.º 4.º do ETAF a delimitação das matérias que são da competência dos tribunais administrativos, procurando “tornar mais abrangente, clara e, por isso, eficaz a delimitação pelo legislador ordinário da esfera de competências dos tribunais administrativos, por referência ao critério constitucional da “relação jurídica administrativa” (Ana Fernanda Neves, Âmbito de jurisdição e outras alterações ao ETAF, E-pública revista eletrónica de Direito Publico, n.º 2, Junho 2014, disponível em http://e-publica.pt/ambitode juridicao.html. ).

Perante a amplitude das várias alíneas do n.º 1 do art.º 4.º do ETAF resulta, à evidência, um alargamento das competências dos tribunais administrativos. No dizer de Freitas do Amaral e Mário Aroso de Almeida, a valorização da justiça administrativa verificada desde a revisão de 1989 da CRP (nomeadamente as alterações aos art.ºs. 210.º, 212.º e 217.º, constitucionalizando a justiça administrativa), a publicação de diplomas que alteraram significativamente alguma da legislação processual administrativa de maior envergadura (ETAF e CPTA) e a ampliação da rede de tribunais administrativos implicou uma “redefinição dos critérios de delimitação do âmbito da jurisdição administrativa, designadamente em confronto com a jurisdição dos tribunais judiciais (…) no sentido de que, tendencialmente, a apreciação jurisdicional das questões materialmente administrativas não deve ser subtraída aos tribunais administrativos para ser atribuída à competência de outras ordens de tribunais”(Grandes Linhas da Reforma do Contencioso Administrativo, 3.ª edição, Almedina, 2004, págs. 25 e ss.).

É, pois, tendo sempre presente o conceito de relação jurídica administrativa supra referido, que devem ser lidas e interpretadas as várias alíneas do art.º 4,° do ETAF.

8. Cumpre, assim, verificar se a relação material em litígio, consubstanciada no pedido e na causa de pedir alegadas pelos AA. se enquadra em alguma das alíneas do n.º 1 do art.º 4,° do ETAF.

Ou seja e em síntese, cumpre verificar se a relação material em litígio, tal como configurada pelos AA. se pode qualificar como sendo uma relação jurídica administrativa e, como tal, da competência reservada dos tribunais administrativos.

9. Peticionam os AA. nos presentes autos, uma indemnização a título de danos patrimoniais e não patrimoniais pelo incumprimento, por parte do Réu, do “convénio” celebrado em 10.09.2013, entre o Presidente da Câmara em representação do Município, e aprovado por deliberação da Câmara Municipal de 20-09-2013, e o A. marido.

O TAF de Mirandela entendeu, em síntese, que a competência para a apreciação da presente acção não pertence aos tribunais administrativos, na medida em que o acordo em causa pode ser qualificado como contrato de permuta, que, na ausência de regulamentação específica se rege pelas normas relativas à compra e venda previstas no Código Civil, contrato esse que se encontra excluído do âmbito de aplicação do Código dos Contratos Públicos (CCP) por força do disposto no art.º 4.º, n.º 2, al. c), não sendo, desta forma, subsumível nas alíneas b), e) e f) do art.º 4.º do ETAF.

Vejamos.

10. A causa de pedir configurada pelos AA. assenta no incumprimento de um “convénio”, celebrado entre o A. como 2.º outorgante e o R. como 1.º outorgante (junto a fls. 8), do qual consta, com relevo para a presente decisão que:


“Artigo 1.º

(Objecto)


1. O presente Convénio tem por objecto a Construção da ETAR de Bragadas, em fase de construção, ocupação da parcela de terreno identificada na planta em anexo e propriedade do Segundo Outorgante.

2. No seu Núcleo essencial a definição antecipada do uso de tal parcela irá permitir dar início à construção da estação de tratamento de águas residuais de Bragadas, prevista no Projecto, com directa projecção na sua área física de localização.


Artigo 2.º

(Cedência e Finalidade)


1. No âmbito do presente Convénio, o Segundo Outorgante obriga-se a ceder, para o domínio municipal, a parcela de terreno abaixo discriminada:

a) (135 m2), a desanexar do prédio propriedade do Segundo Outorgante, inscrito na respectiva matriz sob o art.º 923.º.

2. Tal cedência tem como finalidade permitir a boa execução do Projecto da “Rede de Drenagem das águas residuais de Bragadas”, em fase de execução (…)


Artigo 3.º

(Das obrigações dos Outorgantes)


(…)

2. A CMRP, no âmbito da execução do presente Convénio, obriga-se a:

a) Ceder a título de compensação, dois lotes de terreno com 750 m2, cada, sitos no loteamento a levar a efeito no ……….., em Bragadas;


Artigo 4.º

(Direito Subsidiário)


Em tudo que não esteja especialmente previsto no presente Convénio, recorrer-se-á às Lei e Regulamentos administrativos de cariz urbanístico em vigor no Concelho de Ribeira de Pena que prevejam situações análogas, aos princípios gerais do direito administrativo e, na sua falta ou insuficiência, às disposições da Lei Civil”.

Decorre, assim, do disposto nos artigos 1.º e 2.º do “convénio" que este se destinava a formalizar, por contrato, a cedência da propriedade de uma parcela de terreno, pertença dos AA., àquela autarquia, para instalação de uma Estação de Tratamento de Águas Residuais (ETAR).

Resulta, ainda, da leitura do disposto no artigo 3.º, n.º 2, al. a), do referido “convénio” que a Autarquia, em contrapartida, se obrigava a ceder aos AA, dois lotes de terreno com 750 m2, cada um, inseridos em loteamento ainda a levar a efeito no ………….., em Bragadas.

À luz do direito civil estas cláusulas contratuais permitem qualificar o negócio como um contrato de troca ou permuta, pois teve por objecto a transferência recíproca da propriedade de bens imóveis entre os contraentes. Na verdade, o A. obrigou-se a ceder para o domínio privado municipal de Ribeira de Pena uma parcela com a área de 135 m2 a desanexar de um prédio rústico sua pertença e o Município obrigou-se a ceder, a título de compensação, dois lotes de terreno com a área de 750 m2, cada um, num loteamento a levar a efeito,

Trata-se, pois, de um negócio jurídico de transmissão de bens imóveis que faz surgir a obrigação de entrega para ambas as partes, com sacrifícios patrimoniais recíprocos (aI. b) do art.º 879º do Código Civil).

Contrariamente ao Código de Seabra, que previa e regulava o contrato de troca nos artigos 1592.º a 1594.º e ao actual Código Comercial, que lhe faz referência no artigo 480º, o Código Civil não o tipifica, embora nada obste que as partes o convencionem, ao abrigo do princípio da liberdade contratual consagrado no artigo 405º.

Sendo um negócio oneroso atípico, por força do artigo 939.º do Código Civil, são-lhe aplicáveis as normas do contrato de compra e venda, desde que conformes à sua natureza.

A qualificação do contrato como troca não é uma questão aparentemente tão linear quando, como sucede nos presentes autos, os dois lotes de terreno com 750 m2 cada um, a ceder pelo Réu ao A., por força do acordo, se situam em loteamento ainda a levar a efeito, ou seja, quando à data da celebração do contrato, os bens a entregar são coisas futuras.

No caso dos autos, enquanto a parcela de terreno do A. que se transfere para o domínio municipal é um bem presente, o direito que em troca o Réu transfere para aquele é um bem futuro.

Do disposto nos artigos 211.º, 399.º, 408.º, n.º 2 e 880.º, n.º 1 do Código Civil resulta ser válido o contrato de troca de coisa presente por coisa futura. A inexistência da coisa a que o contrato respeita não é impeditiva da constituição de um contrato sobre coisa futura (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, II, 4.ª ed., pág. 169).

Assim, tendo em conta a natureza jurídica do contrato de permuta realizado pelas partes, poderíamos ser tentados, numa apreciação mais perfunctória, a seguir o entendimento preconizado pelo TAF de Mirandela, atenta a natureza essencialmente civil do incumprimento contratual e a circunstância de tal contrato estar excluído do âmbito de aplicação do CCP (art.º 4.º, n.º 2, al. c)).

Não se pode, porém, acompanhar esse entendimento porque o contrato tem características próprias que permitem qualificá-lo como contrato administrativo e esta qualificação determina decisão diferente da proferida por esse Tribunal.

11. Com a entrada em vigor do referido DL n.º 214-G/2015, de 2.10, foi eliminada a redacção da anterior al. f), do n.º 1, do art.º 4.º, proveniente da redacção inicial do ETAF, quanto à competência dos tribunais administrativos e fiscais, a qual, em parte, passou a constar da redacção da al. e), do n.º 1, cujos termos são os seguintes:

Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a: (...)

e) Validade de atos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes.”

Daqui resulta que a lei passou, agora, a incluir na competência dos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal apenas a matéria derivada de contratos administrativos ou dos contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública.

Eliminou, assim, o segmento da anterior al. f) no sentido de englobar na competência da jurisdição administrativa e fiscal as matérias relativas a contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo.

Ou seja, a alínea e), do art. 4.º do ETAF, remete para o conceito de contrato administrativo, cuja delimitação resulta da conjugação do n.º 6 do artigo 1.º com os artigos 3.º e 8.º do Código dos Contratos Públicos ( Na redacção anterior à do DL n.º 111-B/2017, de 31/08, aplicável aos presentes autos atenta a data do contrato e da propositura da presente acção, que entrou em vigor em 01.01.2018 (art.º 13.º) e apenas é aplicável aos procedimentos de formação de contratos públicos iniciados após a data da sua vigência, bem como aos contratos que resultem desses procedimentos (art.º 12.º, n.º 1). ) (CCP) para efeitos de determinação da competência dos tribunais administrativos e fiscais.

Como refere Mário Aroso de Almeida (Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 4.ª ed., 2017, págs. 24 e 25.), “parece resultar hoje mais claro da redacção da nova alínea e) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF que o âmbito dos litígios em matéria contratual, relativos à interpretação, validade ou execução de contratos, que estão submetidos à apreciação dos tribunais administrativos se desdobra em dois grupos:

a) Os contratos administrativos, cujas relações jurídicas emergentes são submetidas a um regime substantivo de direito administrativo. Ao contrário do que, antes da revisão de 2015, sucedia com a anterior alínea f), a nova alínea e) remete, quanto a este grupo, para o conceito de contrato administrativo. Isto foi facilitado pelo facto do CCP ter procedido, em 2008, à densificação do conceito de contrato administrativo, delimitando-o em termos suficientemente precisos para que, ao contrário do que sucedia em 2001, ele hoje possa ser utilizado como um dos critérios de delimitação do âmbito da jurisdição administrativa em matéria de contratos. A delimitação do conceito resulta da conjugação do n.º 6 do artigo 1.º com os artigos 3.º e 8.º do CCP, dos quais resulta que são qualificados como contratos administrativos e, por conseguinte, submetidos à jurisdição administrativa: (a) os contratos que a própria lei diretamente submete a um regime substantivo de direito público, sendo que integram este grupo: (i) os contratos administrativamente típicos previstos no Título II da Parte III do CCP; (ii) os demais contratos administrativos típicos previstos em legislação avulsa; e (iii) os contratos qualificados como administrativos pelas alíneas b) e c) do n.º 6 do artigo 1.º do CCP; e (b) os contratos atípicos com objeto passível de contrato de direito privado que, em conformidade com o disposto nos artigos 1.º, n.º 6, alínea a), 1.º e 8.º do CCP, são administrativos quando uma das partes seja um contraente público e as partes expressamente submetam a um regime substantivo de direito público.

b) Os contratos que, independentemente da sua designação e natureza, são celebrados pelas entidades adjudicantes a que se refere o CCP e cujo procedimento de formação está sujeito a um regime de direito público, esteja ele previsto no CCP ou resulte de legislação avulsa: esta categoria compreende os contratos administrativos previstos na alínea d) do n.º 6 do artigo 1.º do CCP, mas não se esgota nela, porque se estende a todos os contratos submetidos a regras pré-contratuais públicas, independentemente da natureza das prestações que eles possam ter por objecto.”

12. Assim, dada a remissão da alínea e) para o conceito de contrato administrativo, cuja delimitação resulta da conjugação do n.º 6 do artigo 1.º do CCP importa, antes de mais atender à redacção do citado preceito legal, da qual decorre que:

“Sem prejuízo do disposto em lei especial, reveste a natureza de contrato administrativo o acordo de vontades, independentemente da sua forma ou designação, celebrado entre contraentes públicos e co-contratantes ou somente entre contraentes públicos, que se integre em qualquer uma das seguintes categorias:

a) Contratos que, por força do presente Código, da lei ou da vontade das partes, sejam qualificados como contratos administrativos ou submetidos a um regime substantivo de direito público;

b) Contratos com objecto passível de acto administrativo e demais contratos sobre o exercício de poderes públicos;

c) Contratos que confiram ao co-contratante direitos especiais sobre coisas públicas ou o exercício de funções dos órgãos do contraente público;

d) Contratos que a lei submeta, ou que admita que sejam submetidos, a um procedimento de formação regulado por normas de direito público e em que a prestação do co-contratante possa condicionar ou substituir, de forma relevante, a realização das atribuições do contraente público” (realce nosso).

Referindo-se aos contratos administrativos previstos na citada alínea a) do n.º 6 do art.º 1.º do CCP refere Jorge Andrade da Silva (Código dos Contratos Públicos, Anotado e Comentado, 2015, 5.ª ed., págs. 45 e 46. ) que esta alínea se reporta aos contratos que, “nos termos legais, têm um objecto próprio e exclusivo dos contratos administrativos; são administrativos porque a lei assim expressamente os qualifica para o efeito de os submeter ao regime geral que estabelece. Além desses, sê-lo-ão também aqueles que podiam ser celebrados pelas entidades públicas segundo o regime do direito privado, mas que as partes entendem submeter ao regime dos contratos administrativos. Isto, desde que pelo menos uma delas seja contraente público nos termos estabelecidos nos artigos 3.º, n.º 1 e 8.º ” (realce nosso).

Resulta, assim, do exposto (art.º 1.º, n.º 6, alínea a), do CCP) que assume a natureza de contrato administrativo o acordo de vontades, independentemente da sua forma ou designação, celebrado entre contraentes públicos e co-contratantes ou somente entre contraentes públicos, que por força da vontade das partes, sejam qualificados como contratos administrativos ou submetidos a um regime substantivo de direito público.

Essa consagração legal levou João Caupers a afirmar criticamente que, agora, é “contrato administrativo” aquilo que os contraentes entenderem designar como contrato administrativo (Âmbito de aplicação subjectiva do Código dos Contratos Públicos, CJA, n.º 64, pág. 14.).

Reportando-se a este tipo de contratos administrativos atípicos por vontade das partes refere também Mário Aroso de Almeida (Contratos públicos e contratos administrativos no novo Código dos Contratos Públicos de Portugal, disponível em www.fd.unl.pt/docentes_docs/ma/maa_MA _12940.doc.) que: “Uma segunda questão que se coloca a propósito dos contratos administrativos por vontade das partes é a de saber se o poder de qualificar um contrato como administrativo é de exercício inteiramente livre, ou se se impõem limites à liberdade de qualificação das partes neste domínio.

Quando pelo menos um dos contraentes seja uma entidade pública, deve entender-se que essa qualificação depende de um elemento finalístico, concretizado na causa-função do contrato, que pode ser identificado por referência ao quadro das atribuições da entidade em causa”.

13. Revertendo ao caso concreto, verifica-se que, conforme assinalado, a causa de pedir configurada pelos AA. traduz-se no incumprimento contratual do “convénio” junto, sugestivamente designado no seu art.º 6.º por “Convénio Urbanístico”, que teve como outorgantes a autarquia local do Município de Ribeira de Pena (contraente público, nos termos do disposto no art.º 2.º, n.º 1, al. c) e 3.º, n.º 1, al. a), do CCP) e, como segundo outorgante, o A. marido.

Decorre do disposto nos artigos 1.º e 2.º desse “convénio” que o mesmo se destinava a formalizar, por contrato, a cedência de uma parcela a desanexar de um prédio propriedade dos AA. àquela autarquia, para fins de utilidade pública de prossecução, por essa entidade, das específicas atribuições que a lei lhe confere em matéria de ambiente e saneamento básico (v. art.ºs. 2.º, 23.º, n.º 2, al. k), da Lei n.º 75/2013, de 12.01 - Regime Jurídico das Autarquias Locais) mais concretamente, a construção, na aludida parcela, de uma Estação de Tratamento de Águas Residuais (ETAR).

Resulta igualmente da leitura do disposto no artigo 3.º, n.º 2, al. a) do referido “convénio” que a Autarquia, em contrapartida, se obrigou a ceder aos AA. dois lotes de terrenos com 750m2 cada, inseridos em loteamento ainda a levar a efeito no …………, Bragadas.

A par disso, resulta inequívoco que as partes entenderam ser sua vontade submeter o contrato a um regime substantivo de direito público, ao acordarem expressamente, no art.º 4.º do “convénio”, a aplicação à relação estabelecida entre as partes das “Leis e Regulamentos administrativos de cariz urbanístico em vigor no Concelho de Ribeira de Pena que prevejam situações análogas, aos princípios gerais do direito administrativo” e recorrerem apenas “subsidiariamente, na sua falta ou insuficiência, às disposições da Lei Civil”.

Com efeito, “regimes substantivos de direito público” “são aqueles em que a parte administrativa goza de poderes de autoridade e, bem assim, aqueles cuja execução é fixada mediante «cláusulas» específicas de interesse público, postas pelo legislador em consideração do ente público contratante ou em consideração do objecto implicado no contrato”, bastando “que um qualquer aspecto substantivo relevante do próprio contrato esteja sujeito a um regime específico, de direito público, para que o mesmo se considere (administrativo e) integrado na jurisdição administrativa”( Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira, CPTA, Anotado, I, pág. 56.).

Ora, a indemnização solicitada na petição por alegado incumprimento contratual depende, de acordo com a aplicação subsidiária estipulada pelas partes no art.º 4.º do “convénio”, da apreciação de normas de direito do urbanismo, nomeadamente, das condições de edificação no terreno a lotear, prometido pelo Réu aos AA., bem como da culpa do R. na alegada impossibilidade de transmissão dos terrenos por falta de loteamento.

14. Assim, tudo visto e ponderado, não subsistem dúvidas de que com o “convénio” celebrado, a autarquia local do Município de Ribeira de Pena (contraente público, nos termos do disposto no art.º 2.º, n.º 1, al. c) e 3.º, n.º 1, al. a), do CCP) pretendeu formalizar a cedência de uma parcela de terreno a desanexar de um prédio rústico propriedade dos AA., àquela autarquia, para fins de utilidade pública de prossecução das específicas atribuições em matéria de ambiente e saneamento básico dessa entidade, mais concretamente, a instalação, no aludido terreno, de uma Estação de Tratamento de Águas Residuais (ETAR), submetendo as partes o contrato a um regime substantivo de direito público, pelo que, forçoso é concluir que se trata de um contrato administrativo, face ao disposto na alínea a) do n.º 6 do art.º 1.º do CCP, na redacção anterior à introduzida pelo DL n.º 111-B/2017, de 31/08.

A tal conclusão não obsta a circunstância de o contrato de permuta estar excluído da aplicação do Código dos Contratos Públicos, atento o disposto na alínea c), do n.º 2, do art.º 4.º do citado diploma legal.

De facto, a não aplicação do CCP, não implica que os contratos especialmente previstos no seu n.º 2 do art.º 4.º não tenham natureza administrativa face à noção contida nas alíneas do n.º 6 do art.º 1.º do citado diploma legal, mas tão-só que aos mesmos não é aplicável o regime jurídico constante desse diploma legal.

Daí, a necessidade sentida pelo legislador de expressamente excluir a aplicação aos mencionados contratos do regime estabelecido no CCP.

De facto, de acordo com o disposto no n.º 1 do art.º 200.º do Código de Procedimento Administrativo (CPA), os órgãos da Administração Pública (onde se integram as autarquias (art.º 2.º, n.º 4, alín. b)) podem celebrar contratos administrativos, sujeitos a um regime substantivo de direito administrativo, ou contratos submetidos a um regime de direito privado.

Além do mais, estatuindo-se no n.º 2 do citado preceito que “são contratos administrativos os que como tal são classificados no Código dos Contratos Públicos ou em legislação especial”, sendo que, “na prossecução das suas atribuições ou dos seus fins, os órgãos da Administração Pública podem celebrar quaisquer contratos administrativos, salvo se outra coisa resultar da lei ou da natureza das relações a estabelecer” (art.º 200.º, n.º 3, do CPA).

Serão, assim, administrativos os contratos em que o interesse público, visado pela Administração Pública, prevaleça sobre os interesses privados ou que visem necessidades predominantemente públicas.

E de acordo com esta noção, conjugada com a constante do art. 6.º, n.º 1, al, a), do CCP, a Câmara Municipal, enquanto órgão de direito público e que prossegue interesses predominantemente públicos ou colectivos, pelo “convénio” em questão, contratou com o A. marido com o objectivo de prosseguir um interesse predominantemente público, na prossecução das específicas atribuições em matéria de ambiente e saneamento básico em que se traduziu a construção, na parcela acordada, de uma Estação de Tratamento de Águas Residuais (ETAR).

Aliás, as cláusulas do contrato orientam-se todas nesse sentido, na medida em que algumas obrigações nele vertidas não poderiam ser assumidas por mais ninguém que não a Câmara Municipal, por serem da sua competência. Por outras palavras, é um acordo que dois particulares não poderiam nunca celebrar entre si.

A Câmara Municipal de Ribeira de Pena só poderia obrigar-se àquilo a que se obrigou no “convénio” em questão, agindo nas vestes de autoridade púbica, no exercício de poderes conferidos por lei para o prosseguimento do interesse público do Município, até porque o objectivo prosseguido poderia ter sido alcançado por acto administrativo impositivo da transferência de domínio da parcela através da pertinente expropriação por utilidade pública.

Pelo que, o que verdadeiramente está em equação nos presentes autos são questões relativas à interpretação e execução do contrato administrativo celebrado entre os AA. e o R., que as partes submeteram a um regime substantivo de direito público/administrativo, tendo na sua base e origem um interesse público imposto pelo legislador.

Razão por que se considera estarmos no domínio de uma relação jurídica administrativa, tal como ela é legalmente desenhada na alínea e) do n.º 1 do artigo 4.º do actual ETAF, cujo conhecimento compete aos tribunais administrativos (V., em sentido idêntico, os Acs. do Tribunal dos Conflitos de 13.05.2003, Proc. 011/02, 30.06.2011, Proc. 01/11 e 02.02.2016, Proc. 031/15, em www.dgsi.pt.).


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III. Decisão

Face ao exposto, resolvendo o presente conflito negativo de jurisdição, tendo em conta, por um lado, a competência residual dos tribunais judiciais (art.ºs 211.º, n.º 1, da CRP, 64.º do CPC e 40.º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto) e, por outro, o preceituado nos artigos 212.º, n.º 3, da CRP, 1.º, n.º 1, e 4.º, n.º 1. al. e), do ETAF, acordam em atribuir a competência material para conhecer da acção aos tribunais da jurisdição administrativa, concretamente ao TAF de Mirandela.

Sem custas (art.º 96.º do Decreto n.º 19243 de 16.01.1931).

Lisboa, 8 de Novembro de 2018. – Francisco Manuel Caetano (relator) – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa – António Pedro de Lima Gonçalves – Carlos Luís Medeiros de Carvalho – António Gonçalves Rocha – António Bento São Pedro.