Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:031/22
Data do Acordão:02/15/2023
Tribunal:CONFLITOS
Relator:TERESA DE SOUSA
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
ERRO JUDICIÁRIO
TRIBUNAIS JUDICIAIS
Sumário:Imputando o Autor erros judiciários a decisões de magistrada judicial dos Tribunais Judiciais, a competência para conhecer da acção cabe à jurisdição comum, por estar excluída do âmbito da jurisdição administrativa a apreciação de acções de responsabilidade por erro judiciário cometido por tribunais pertencentes a outras ordens de jurisdição, de acordo com o disposto no art. 4º, nº 4, al. a) do ETAF.
Nº Convencional:JSTA000P30594
Nº do Documento:SAC20230215031
Data de Entrada:11/28/2022
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DO PORTO - JUÍZO LOCAL CRIMINAL DO PORTO - JUIZ 1 E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DO PORTO
REQUERENTE: AA
REQUERIDO: ESTADO PORTUGUÊS
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Conflito nº 31/22

Acordam no Tribunal dos Conflitos

1. Relatório
AA, melhor identificado nos autos, intentou no Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto (TAF do Porto) acção administrativa comum de responsabilidade civil extracontratual contra o Estado Português, pedindo a condenação do Réu a pagar ao Autor a quantia de €50.000,01 a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros calculados à taxa legal, contados desde a citação até integral pagamento.
Em síntese, alegou, nomeadamente, que no âmbito de diversos processos judiciais em que é demandante/denunciante e/ou assistente em processos-crime, foram praticados por magistrada judicial actos que o prejudicaram. Tais actos são consubstanciados em diversas decisões de uma magistrada judicial do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Local Criminal do Porto, a Sra. Juíza de Direito Dra. BB, a qual, segundo alega, terá tomado atitudes em julgamento, que considera revelarem animosidade contra si, designadamente, um despacho de rejeição de acusação particular deduzida pelo Autor e respeitante a denúncia pela eventual prática do crime de falsidade de testemunho, assim como, uma decisão de recusa de acusação particular noutro processo, e, ainda, uma sentença em que, segundo alega, a mesma magistrada judicial traça um perfil do ora A., em que expõe factos que estão sob reserva da vida privada. O que determinou que o A. tenha suscitado, em processos de natureza criminal, incidentes de recusa (tendo igualmente havido pedidos de escusa), por actos alegadamente praticados por aquela magistrada, e que reputa de ilícitos, pretendendo ser ressarcido pelos danos não patrimoniais que tal actuação alegadamente provocou na sua esfera jurídica, no montante de €50.000,00.

Por saneador-sentença de 19.04.2022 o TAF do Porto, entendendo que a matéria invocada na acção estava excluída da competência dos Tribunais Administrativos, nos termos do disposto no art. 4º, nº 4, alínea a) do ETAF, decidiu o seguinte:
“(…) julgo os Tribunais Administrativos materialmente incompetentes para julgar a presente acção, sendo competentes para o efeito os Tribunais Comuns, verificando-se, assim, a suscitada excepção dilatória, mais se absolvendo p R da presente instância, nos termos dos artigos 89.º n.º 4, alínea a), do CPTA, 99.º, n.º 1, 278.º, n.º 1, alínea a), 576.º, n.º 2 e 577.º, alínea a), do CPC, “x vi” do artigo 1.º do CPTA”.

Notificado desta decisão veio o Autor pedir a remessa dos autos ao Presidente do Tribunal dos Conflitos.
Igualmente a Magistrada do Ministério Público promoveu que se procedesse a tal remessa, em 06.06.2022.

Por despacho de 07.06.2022, foi o requerimento do Autor indeferido.

Deste despacho interpôs o Autor recurso para o TCA Norte, que, por Decisão Sumária de 28.10.2022, revogou o despacho recorrido e ordenou a remessa dos autos ao STA (Tribunal dos Conflitos).

Na Acção de Processo Comum nº 7639/18.6T8PRT, intentada pelo aqui Autor contra o Estado Português [pedindo a condenação deste numa indemnização por danos morais e patrimoniais], do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Local Cível do Porto, Juiz 2, foi proferida sentença em 30.10.2019 – cuja cópia consta dos autos -, onde foi julgada procedente a excepção dilatória de incompetência material dos Tribunais Judiciais, absolvendo-se o Réu da instância.

Neste Tribunal dos Conflitos as partes foram notificadas para efeitos do disposto no nº 3 do art. 11º da Lei n.º 91/2019.
O Exmo. Procurador Geral Adjunto, emitiu parecer em 21.12.2022, pronunciando-se no sentido de que a competência material para julgar a acção deverá ser atribuída aos tribunais comuns, concretamente à Instância Local Cível do Tribunal Judicial da Comarca do Porto.

2. Os Factos
Os factos relevantes para a decisão são os enunciados no Relatório.

3. O Direito
O presente Conflito Negativo de Jurisdição vem suscitado entre o Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Local Cível do Porto – Juiz 2 e o TAF do Porto.
Concluiu o Juízo Local Cível do Porto (na acção acima indicada) que “(…) a apreciação da pretensão do autor compete aos tribunais administrativos, nos termos do art.º 4.º, n.º 1, al.ª f) do ETAF e não aos tribunais comuns, os quais são incompetentes em razão da matéria.
Por sua vez o TAF do Porto (no processo nº 2112/21.8BEPRT) também se considerou incompetente em razão da matéria. Entendeu que, “Portanto, emergindo a presente acção de responsabilidade civil de alegados erros judiciários cometidos por magistrada judicial da jurisdição comum, seja porque não pronunciou quando devia ter pronunciado, seja porque devia ter aceitado acusação particular quando a recusou, seja porque sentenciou de forma incorrecta, porque segundo o A., não devia dessa sentença constar o seu perfil, porque não era arguido, mas sim denunciante, então, segundo um princípio de especialidade do direito do direito substantivo e adjectivo alegadamente violado por conduta da magistrada judicial ao serviço do Estado Português (direito processual penal e direito penal), e que deve ser convocado como sustentação da ilicitude, enquanto pressuposto da responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito decorrente do exercício da função jurisdicional, não cabe ao Juiz da jurisdição administrativa aquilatar sobre o mérito ou demérito daquelas decisões proferidas em sede de processo-crime, (…) ”.
Para tanto, chamou à colação a norma da alínea a) do nº 4 do art. 4º do ETAF, que exclui do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação das ações de responsabilidade por erro judiciário cometido por tribunais pertencentes a outras ordens de jurisdição, assim como das correspondentes ações de regresso.

Vejamos.
Cabe aos tribunais judiciais a competência para julgar as causas «que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional» [arts. 211º, nº 1, da CRP; 64º do CPC e 40º, nº1, da Lei nº 62/2013, de 26/8 (LOSJ)], e aos tribunais administrativos e fiscais a competência para julgar as causas «emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais» [artigos 212º, nº 3, da CRP, 1º, nº 1, do ETAF].
A competência dos tribunais administrativos e fiscais está concretizada no art. 4º do ETAF (Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro, na redacção do DL nº 214-G/2015, de 2 de Outubro, que atendendo à data da propositura da acção, é a que aqui releva) com delimitação do “âmbito da jurisdição” mediante uma enunciação positiva (nºs 1 e 2) e negativa (nºs 3 e 4).
Tem sido reafirmado por este Tribunal, e constitui entendimento jurisprudencial e doutrinário pacífico, que a competência material do tribunal se afere em função do modo como o autor configura a acção e que a mesma se fixa no momento em que a mesma é proposta.
Como se afirmou no Ac. deste Tribunal de 01.10.2015, Proc. nº 08/14 “A competência é questão que se resolve de acordo com os termos da pretensão do Autor, aí compreendidos os respectivos fundamentos e a identidade das partes, não importando averiguar quais deviam ser os termos dessa pretensão, considerando a realidade fáctica efectivamente existente ou o correcto entendimento do regime jurídico aplicável. O Tribunal dos Conflitos tem reafirmado constantemente que o que releva, para o efeito do estabelecimento da competência, é o modo como o Autor estrutura a causa e exprime a sua pretensão em juízo”.
Analisados os termos e o teor da petição inicial constata-se estarmos perante um litígio no qual se pretende efectivar a responsabilidade civil do Estado com fundamento em erro judiciário do Tribunal Judicial da Comarca do Porto (em processos-crime), que terá originado danos na esfera jurídica do autor, sendo que foi formulado um pedido indemnizatório de condenação do Réu pelos danos alegadamente sofridos.
Face a esta causa de pedir o Juízo Local Cível de Porto acentuou a causa de pedir respeitante à responsabilidade civil extracontratual do Estado, de acordo com o previsto no art. 4º, nº 1, al. f) do ETAF, desconsiderando derivar tal responsabilidade de erro judiciário no exercício da função jurisdicional nos tribunais comuns, concluindo que a competência para o julgamento do litígio cabia à jurisdição administrativa e fiscal. Por sua vez, o TAF do Porto pôs a tónica no erro no exercício da função jurisdicional materializada nas decisões proferidas por magistrada judicial da jurisdição comum, julgando que a competência cabia aos tribunais judiciais, por estar excluída do âmbito da jurisdição administrativa a apreciação de acções de responsabilidade por erro judiciário cometido por tribunais pertencentes a outras ordens de jurisdição (art. 4º, nº 4, al. a) do ETAF).
É certo que, como bem refere o EMMP, junto deste Tribunal dos Conflitos, o presente conflito negativo de jurisdição «não assumiu o figurino tradicional uma vez que a decisão da instância comum foi tomada na data de 30.10.2019, e o Autor não usou então da faculdade prevista no artigo 99º, nº 2, do CPC, que lhe permitia, no prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da decisão, pedir a remessa do processo ao tribunal em que a acção deveria ter sido proposta em função da decisão tomada.».
Com efeito, no processo nº 7639/18.6T8PRT, pela indicada decisão de 30.10.2019, o Juízo Local Cível do Porto – Juiz 2 havia declarado a incompetência daquele Tribunal para conhecer da acção ali intentada pelo mesmo A. contra o Estado Português, como fundamentos em tudo semelhantes aos acima descritos, formulando-se o pedido de condenação do R. Estado no pagamento ao A. da quantia de € 5.000,00, acrescida de juros, à taxa legal, tendo esta decisão transitado em julgado.
Posteriormente, o Autor veio apresentar uma nova acção no TAF do Porto, a qual foi tramitada com o nº 2112/21.8BEPRT, e, foi perante a decisão nesta tomada em 19.04.2022, de se considerar a incompetência absoluta do tribunal em razão da matéria, atribuindo essa competência aos tribunais comuns, que aquele requereu a remessa dos autos a este Tribunal dos Conflitos.
Ora, apesar de o juiz do TAF ter indeferido essa remessa, o TCA Norte, por Decisão Sumária de 28.10.2022, revogou tal despacho e, consequentemente, decidiu a remessa dos autos ao STA - Tribunal dos Conflitos, o que foi cumprido, já que aquela decisão transitou em julgado.
Está, pois, em apreciação, no que a este Tribunal dos Conflitos diz respeito saber qual é o tribunal competente para ajuizar a acção por erro judiciário, por ser quanto a este que existe um conflito negativo de jurisdição (art. 1º da Lei nº 91/2019, de 4/9). E, não restam dúvidas que imputando o Autor esses erros a decisões de magistrada judicial dos Tribunais Judiciais, a competência para conhecer da acção cabe à jurisdição comum, por estar excluída do âmbito da jurisdição administrativa a apreciação de acções de responsabilidade por erro judiciário cometido por tribunais pertencentes a outras ordens de jurisdição, de acordo com o disposto no art. 4º, nº 4, al. a) do ETAF (cfr. neste sentido os acs. deste Tribunal dos Conflitos de 08.11.2018, Proc. nº 027/18 e de 06.04.2022, Proc. nº 01/22).

Pelo exposto, acordam em julgar competente para apreciar a presente acção o Tribunal Judicial da Comarca do Porto - Juízo Local Cível do Porto, Juiz 2.
Sem custas.

Lisboa, 15 de Fevereiro de 2023. – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa (relatora) – Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza.