Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:028/21
Data do Acordão:03/22/2023
Tribunal:CONFLITOS
Relator:TERESA DE SOUSA
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
RESPONSABILIDADE CIVIL DE ENTIDADES PÚBLICAS
JURISDIÇÃO ADMINISTRATIVA
Sumário:I – Incumbe aos Tribunais Judiciais o julgamento de uma acção instaurada por depositante em banco intervencionado contra aquele banco, o banco que sucedeu nos direitos e obrigações daquele, o Fundo de Resolução, uma sociedade privada, bem como um meio de comunicação privado, sendo pedida a condenação solidária de todos os Réus, em que sejam imputados ao primeiro a violação dos deveres inerentes ao exercício da actividade bancária ou à mediação de títulos mobiliários, e em que que o banco sucessor é demandado por deter essa qualidade de sucessor do banco intervencionado e o Fundo de Resolução e a sociedade privada apenas na qualidade de titulares do capital de transição.
II – Porém, incumbe à jurisdição administrativa o conhecimento do mesmo pedido, enquanto formulado contra o Estado e o Banco de Portugal, o primeiro pela alegada violação do contrato de confiança assumido com os portugueses de que o Estado permaneceria como acionista largamente maioritário do Banco 1... e o segundo por alegado incumprimento dos deveres de supervisão e vigilância.
Nº Convencional:JSTA000P30737
Nº do Documento:SAC20230322028
Data de Entrada:10/14/2021
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE BRAGA - JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE BRAGA – JUIZ 1, E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE BRAGA
REQUERENTE: AA E OUTRO
REQUERIDO: BANCO 1..., SA, BANCO DE PORTUGAL FUNDO DE RESOLUÇÃO, BANCO 2..., SA, ESTADO PORTUGUÊS, A... SA, B..., SA
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral:
Conflito nº 28/21

Acordam no Tribunal dos Conflitos

1. Relatório
BB e mulher AA, identificados nos autos, intentaram no Tribunal Judicial de Braga, acção comum contra Banco 1..., SA, Banco de Portugal, Banco 2..., SA, Estado Português e Ministério das Finanças, Fundo de Resolução, A..., SA, B..., SA e CC, pedindo que os Réus sejam solidariamente condenados a reembolsar os Autores:
a) de todos os valores por si despendidos na aquisição das acções e obrigações identificadas nos itens desta PI e que ascendem a 73.474,08€
b) de todas as despesas, e outros danos patrimoniais a apurar em liquidação de sentença, mas que para já se computam em 10.000,00€
c) nos danos não patrimoniais sofridos e para cuja compensação serão necessários 40.000,00€ (20.000,00€ a cada um dos AA.)
Caso assim se não decida;
d} devem os RR ser condenados cada um deles de acordo com a proporção de responsabilidade que vier a ser determinada em concreto e a cada um dos RR”.
A requerimento dos Autores foi rectificada a petição inicial no sentido de eliminar o nome de CC do rol dos demandados (fls. 92).
Alegam, em síntese, que à data da Resolução aplicada ao Banco 1... eram accionistas do mesmo por terem comprado acções no aumento de capital inserido no Plano de Recapitalização, tendo também investido em obrigações subordinadas Banco 1..., tudo sob conselho e pressão dos funcionários do mesmo banco. Os Autores argumentam que não eram investidores qualificados, não foram elucidados do risco que representava o investimento em acções e que, além disso, tal investimento não era adequado ao seu perfil. E que não sabiam o que eram obrigações subordinadas estando convencidos tratar-se de um depósito a prazo. Por isso, defendem que o Réu Banco 1... violou os deveres de informação, de adequação do investimento e da prevalência dos interesses dos clientes a que, como intermediário financeiro, estava legal e contratualmente vinculado, pelo que deve ser responsabilizado pelos prejuízos em que os Autores incorreram.
E, relativamente aos Réus Banco de Portugal e Estado Português, deverão estes ser responsáveis solidariamente com o Banco Réu, ou pelo menos subsidiariamente, pois violaram o contrato de confiança com os Autores ao tomarem a medida de Resolução ao Banco 1..., sendo que o Réu Banco de Portugal é ainda responsável por falhas graves de supervisão comportamental e prudencial.
Quanto ao Fundo de Resolução e à A..., sociedade para qual foram transferidos alguns activos e direitos do Banco 1..., os Autores referem que a sua intervenção posterior à medida de Resolução, “não foi de molde a criar mais valia para o Banco 1..., o que fez perder valor as ações do próprio Banco e consequentemente dos AA., pelo que também têm que responder com RR perante os AA pelos prejuízos causados”.
Finalmente, a actuação da Ré B... ao publicitar as notícias da eminente resolução do Banco 1... desencadeou uma corrida ao levantamento dos depósitos, a qual foi uma causa da própria medida de Resolução, pelo que também é responsável pelos danos sofridos pelos Autores.
Mais alegam que reclamaram os seus créditos no processo de liquidação do Réu Banco 1..., a correr termos no Juízo de Comércio de Lisboa.
Os Réus contestaram e, além do mais, alguns deles suscitaram a execepção de incompetência material do Tribunal.
Por decisão de 15.10.2019 o Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo Central Cível de Braga, Juiz 1, declarou-se materialmente incompetente para conhecer do objecto da acção, concluindo que “(…) seja porque a responsabilidade extracontratual das pessoas coletivas de direito público está cometida à apreciação da jurisdição administrativa, seja porque a fiscalização de deliberações tomadas por pessoas coletivas públicas no exercício de poderes públicos está, de igual modo, atribuída aos tribunais administrativos, são os tribunais comuns incompetentes para o julgamento da presente causa (…) Por último, impõe-se salientar que, tendo os Autores optado por formular um (único) pedido de condenação dirigido a todos os Réus, em regime de solidariedade, colhe aqui aplicação o disposto no artigo 4º/2, do ETAF, nos termos do qual a jurisdição administrativa é competente para dirimir os litígios em que sejam, conjunta e solidariamente, demandadas entidades públicas e particulares, como é o caso dos Réus Banco 2..., SA A..., SA, e Banco 1..., SA”.
Os Autores requereram a remessa ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga que, dada a oposição de alguns Réus, foi deferida parcialmente com o aproveitamento apenas da petição inicial.
O TAF de Braga, por decisão de 26.07.2021, julgou-se incompetente em razão da matéria, por considerar que “analisada a forma como os Autores configuraram a presente ação, a mesma não diz respeito diretamente a responsabilidade civil extracontratual, mas sim a responsabilidade civil contratual e pré-contratual, eventualmente emergente de deveres acessórios de conduta ou deveres de boa-fé e de informação.
Na verdade, os contratos (que estiveram na génese de operações bancárias e financeiras) que os Autores alegam ter celebrado, não revestem as características de administratividade consignadas na alínea e), n.º 1, do artigo 4.º do ETAF, pelo que, por esta via, está excluída a competência dos tribunais administrativos.
Noutra perspetiva, admitindo-se que a matéria é complexa - e não inteiramente subsumível ao regime da responsabilidade civil contratual -, sendo necessário convocar o regime da responsabilidade civil extracontratual, ainda assim, não se encontra preenchida nenhuma das alíneas do n.º 1, do artigo 4.º do ETAF. Ademais, para que se tivessem por preenchidas as previsões normativas das alíneas f), g), e h), do n.º 1, do artigo 4.º do ETAF teria de decorrer da petição inicial que o facto concreto gerador de responsabilidade era imputado pelos Autores exclusivamente a pessoas coletivas, órgãos, funcionários, agentes, trabalhadores ou demais servidores públicos, ou sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas coletivas de direito público - o que não é o caso dos autos.
Importa referir, que o disposto no n.º 2, do artigo 4.º do ETAF não pode ser convocado para atribuir a competência aos tribunais administrativos para conhecer da presente ação pois esta norma limita-se a estender a competência aos casos em que a par do comportamento de entes públicos [ou entes privados sujeitos ao regime da responsabilidade do Estado e demais pessoas coletivas de direito público] concorreram para a produção dos danos, entes privados.”.
Foi suscitada a resolução do conflito negativo de jurisdição no TAF de Braga, sendo o processo remetido ao Tribunal dos Conflitos.
Já neste Tribunal dos Conflitos e em resposta a notificação nos termos do disposto no nº 3 do artigo 11º da Lei nº 91/2019, o Banco de Portugal pronunciou-se pela competência da jurisdição administrativa.
A Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da atribuição da competência para o conhecimento do litígio ao TAF de Braga quanto aos Réus Estado e Banco de Portugal e ao Juízo Central Cível de Braga quanto aos pedidos contra os demais Réus.

2. Os Factos
Os factos relevantes para a decisão são os enunciados no Relatório.

3. O Direito
A questão que cumpre apreciar e decidir é apenas a de definir se a competência em razão da matéria para a apreciação do litígio da presente acção caberá aos tribunais da jurisdição comum, ou aos tribunais da jurisdição administrativa. Questão que não é nova, existindo jurisprudência constante e recente deste Tribunal dos Conflitos em situações em tudo semelhantes à dos presentes autos [cfr. v.g., os acórdãos de 23.05.2019, Conflito n.º 39/18, que na sua fundamentação remete para os acórdãos de 14.02.2019, proferidos nos Conflitos n.ºs 31/18 e 46/18 e ainda de 19.06.2019, Conflito n.º 05/19, de 25.06.2020, Conflito n.º 59/19 e de 3.11.2020, Conflito n.º 16/20]. Assim, e porque entendemos que a referida jurisprudência é transponível para o caso concreto, remeteremos para o que se escreveu no Conflito n.º 046/18, que assumimos como nosso:
«Portanto, no caso em apreço, da análise do pedido formulado na acção e das respectivas causas de pedir resulta que o A acciona a responsabilidade civil contratual e extracontratual das 1ª a 3ª RR, pelo que o conhecimento do pedido contra estas dirigido, incidindo sobre relações inequivocamente privatísticas, compete à jurisdição comum, por não dever nem poder ser deduzido na jurisdição administrativa. Conclusão que se estendeu à 3ª R (Banco 3... SA) porque o A, embora sem a envolver na prática de qualquer dos factos ilícitos em que fundamenta a constituição da obrigação de indemnizar das duas primeiras RR, estrutura a respectiva responsabilidade na sua alegada qualidade de sucessora nos direitos e obrigações da 1ª R (Banco 4... SA).
Quanto aos demais RR, Banco de Portugal, Comissão do Mercado de Valores Mobiliários e Fundo de Resolução, são todos pessoas colectivas de direito público, como resulta do art. 1° da Lei Orgânica do primeiro (Lei 5/98, de 31/1), do art. 1° dos Estatutos da segunda (DL 5/2015, de 8/1) e, quanto ao último, do art. 153º-B do RGICSF (DL 298/92, de 31/12, com a actualização da Lei 23-A/2015, de 26/03).
Ora, relativamente às entidades públicas BdP e CMVM, dada a configuração da acção feita pelo A, suscita-se, claramente, a responsabilidade civil extracontratual de pessoas colectivas de direito público, radicando os danos que, alegadamente, o mesmo sofreu e que fundam os direitos que pretende exercer - consistentes no ressarcimento de tais danos - em actos cometidos no exercício de funções públicas ou na prossecução de um interesse público, uma vez que, sem a invocação de qualquer relação contratual com eles estabelecida, se fundamentam na falta de cumprimento dos deveres - essencialmente de supervisão - que sobre eles impendiam, tendo em conta as funções determinadas pela lei.
Especificamente quanto ao Fundo de Resolução, que vem demandado, apenas, com base na titularidade do capital do «Banco 3...» - e, igualmente, sem que lhe seja imputado qualquer concreto facto ilícito -, não só essa titularidade tem origem na aludida medida de resolução bancária decretada pelo Banco de Portugal, como a sua responsabilidade apenas se poderia estribar na sua qualidade de instrumento (dependente) da entidade pública junto da qual funciona para lhe prestar apoio financeiro à aplicação de medidas de resolução pela mesma adotadas (cf. art. 153°-C do citado RGICSF), ou seja, no caso em apreço, para a execução das deliberações do Banco de Portugal concernentes à medida de resolução tomada em relação ao Banco 4... no exercício de funções públicas e na prossecução de um interesse público.
Todavia, no que concerne a este R, considerando o estritamente alegado quanto à fundamentação da sua demanda - ser ele o único detentor do capital do Banco 3... - e o uniformemente decidido nos precedentes arestos deste Tribunal, deve concluir-se que também cabe aos tribunais judiciais a competência para conhecer a pretensão deduzida contra o mesmo.
É certo que, como supra foi relatado, o A formulou um pedido de condenação solidária de todos os RR a pagarem-lhe determinada quantia em dinheiro e respectivos juros, bem como o valor dos danos não patrimoniais. Contudo, não enformou os fundamentos dessa sua pretensão com qualquer espécie de intervenção das entidades públicas nos factos ilícitos imputados às 1ªs RR, pelo que não ressuma da PI o fundamento previsto no citado nº 2 do art. 4° do ETAF para deverem ser demandados conjuntamente todos os RR, porquanto não se vê em que medida aqueles entes poderiam estar ligados por vínculos jurídicos de solidariedade com as demais RR (particulares), designadamente por terem concorrido em conjunto com estas para a produção dos mesmos danos (Mário Aroso de Almeida [Em "Manual de Processo Administrativo", Almedina, 3ª ed., pp. 253-254] refere que aquela regra procurou obviar a dificuldades que se vinham suscitando «quanto à competência dos tribunais administrativos para conhecer de ações de responsabilidade civil quando se verifique o chamamento ao processo de sujeitos privados que se encontrem envolvidos com a Administração ou com outros particulares numa relação jurídica administrativa ou no âmbito de uma relação conexa com a relação principal que constitui objeto do litígio».).
Como uniformemente foi ponderado nos arestos deste Tribunal precedentemente referenciados, a solidariedade nas obrigações, tal como decorre do artigo 513° do CC, só existe quando resulta da lei ou da vontade das partes. Não basta, deste modo, pedir ao Tribunal que condene solidariamente, sendo necessário alegar os factos - para os poder vir a demonstrar - «de que deriva a obrigação de indemnizar e, em caso de pluralidade de responsáveis, que as obrigações tenham entre si uma relação de solidariedade, que, em caso de procedência, fundamente a condenação solidária» [cit. acórdão de 22-03-2018 (p. 56/17)]».
Em suma, no caso concreto, a configuração da acção feita pelos Autores mostra que, relativamente aos 1º, 3º, 5º, 6º e 7º Réus, a questão em que se funda a obrigação de indemnizar decorre da violação de deveres contratuais e da prática de factos tidos por ilícitos e é apenas de direito privado, já quanto aos 2º e 4º Réus a obrigação de indemnizar funda-se no incumprimento dos deveres de supervisão bancária, na prestação de informações erróneas ao mercado e nos actos cometidos no contexto da medida de resolução aplicada ao Banco 1..., suscitando-se a responsabilidade civil extracontratual de pessoas colectivas de direito público por actos cometidos no exercício de funções públicas ou no prossecução do interesse público.
Sublinhe-se que, como se escreveu no acórdão do Tribunal dos Conflitos de 17 de Maio de 2018, proc. nº 052/17, para ser aplicável o nº 2 do artigo 4º do ETAF, norma que é invocada para efeitos de atribuição da competência à jurisdição administrativa, é necessário “que na petição inicial tenham sido articulados factos que permitam, primo conspectu, fundamentar a imputação de responsabilidade solidária às entidades públicas e particulares que nela são demandadas. Não basta, para tal, a mera invocação, «oca de factos», dessa mesma responsabilização solidária”.
Pelo exposto, acordam em atribuir a competência material aos tribunais judiciais – Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo Central Cível, Juiz 1 -, para conhecer do objecto da presente acção proposta contra o Banco 1..., o Banco 2..., o Fundo de Resolução, a A..., SA e a B..., SA, e aos tribunais administrativos – TAF de Braga - quanto aos Réus Banco de Portugal e Estado Português.
Sem custas.

Lisboa, 22 de Março de 2023. - Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa (relatora) – Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza.