Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:021/21
Data do Acordão:02/15/2023
Tribunal:CONFLITOS
Relator:TERESA DE SOUSA
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
ACIDENTE DE VIAÇÃO
FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL
TRIBUNAIS JUDICIAIS
Sumário:I - Na presente acção a Autora, em face da alegada falta de apólice de seguro válida e eficaz do veículo que sofreu o acidente, deduziu o pedido de indemnização dos danos sofridos contra o Fundo de Garantia Automóvel e os responsáveis civis, invocando as normas dos artigos 47º, 49º e 62º do DL nº 291/2007, de 21/8 [que aprovou o regime do sistema do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel].
II – O pedido é, portanto, dirigido contra o Fundo de Garantia Automóvel de cujos actos e decisões cabe recurso para os tribunais comuns (art. 61º do mencionado diploma) e contra sujeitos privados.
III - Perante os termos em que a Autora configurou na petição inicial a causa de pedir, o pedido e o Réus que demandou, estamos perante uma acção da competência dos tribunais comuns, a tal não obstando a circunstância de a Autora ser concessionária da auto-estrada e de os Réus terem alegado que o acidente era da sua responsabilidade, já que a competência se afere de acordo com os termos da petição inicial do autor.
IV – Assim, a competência material para conhecer a presente acção cabe aos tribunais judiciais.
Nº Convencional:JSTA000P30592
Nº do Documento:SAC20230215021
Data de Entrada:06/04/2021
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA – GUARDA - INSTÂNCIA LOCAL – SECÇÃO CÍVEL – J2 E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE CASTELO BRANCO
REQUERENTE: ASCENDI BEIRAS LITORAL E ALTA, AUTO-ESTRADAS DAS BEIRAS LITORAL E ALTA, SA
REQUERIDO: FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL E OUTROS
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Conflito nº 21/21

Acordam no Tribunal dos Conflitos

1. Relatório
Ascendi Beiras Litoral e Alta, Auto-Estradas das Beiras Litoral e Alta, SA intentou no Tribunal Judicial da Comarca da Guarda, Juízo Local Cível da Guarda, acção declarativa de condenação sob a forma comum contra Fundo de Garantia Automóvel, I..., Lda e AA pedindo a condenação dos Réus na quantia de 15.675,57 € (quinze mil, seiscentos e setenta e cinco euros e cinquenta e sete cêntimos), bem como no pagamento dos juros vencidos e vincendos até integral e efectivo pagamento, custas, procuradoria e legais acréscimos.
Alega, em síntese, que no dia 22.05.2013 o veículo pesado de mercadorias, que identifica, teve um acidente na A25 - da qual é concessionária - e em consequência desse acidente resultaram danos para a concessão: necessidade de proceder à limpeza e lavagem do pavimento da A25 e indisponibilidade da via o que originou uma perda de remuneração.
Mais alega que interpelou a Companhia de Seguros A... Portugal, SA para que procedesse ao pagamento da quantia referida tendo esta declinado a sua responsabilidade por o veículo em causa não ser, à data do sinistro, seu segurado. Em consequência, a Autora reencaminhou a interpelação ao Réu Fundo de Garantia Automóvel para que procedesse àquele pagamento, tendo este assumido apenas parte da indemnização que entende ter direito.
Em sede de contestação o Réu AA deduziu incidente de intervenção principal provocada da Companhia de Seguros A... Portugal, SA. Admitida a intervenção, a A... no seu articulado de contestação suscitou a incompetência material do tribunal.
Em 30.05.2017, no Tribunal Judicial da Comarca da Guarda, Juízo Local Cível da Guarda - Juiz 2, foi proferida decisão a julgar o Tribunal incompetente em razão da matéria e a absolver os Réus da instância.
Remetidos os autos ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Castelo Branco (TAF de Castelo Branco), foi aí proferido saneador-sentença em 30.05.2019 a julgar verificada a excepção de incompetência em razão da matéria.
Suscitada a resolução do conflito negativo de jurisdição, foram os autos remetidos a este Tribunal dos Conflitos.
Neste Tribunal dos Conflitos as partes foram notificadas para efeitos do disposto no nº 3 do artigo 11º da Lei nº 91/2019.
A Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da atribuição da competência aos tribunais da jurisdição comum.

2. Os Factos
Os factos relevantes para a decisão são os enunciados no Relatório.

3. O Direito
O presente Conflito Negativo de Jurisdição vem suscitado entre o Tribunal Judicial da Comarca da Guarda, Juízo Local Cível da Guarda, Juiz 2, e o Tribunal Administrativo e Fiscal de Castelo Branco.
Entendeu o Juízo Local Cível da Guarda que “No caso dos autos, a A. é a concessionária que reclama o ressarcimento de danos alegadamente causados por veículo, opondo-lhe as RR. a sua própria responsabilidade no sinistro ocorrido por violação dos seus deveres de vigilância e conservação da via, dado que o sinistro terá ocorrido mercê de objeto inerte na via.
Ora, independentemente da posição que a A. ocupa na lide, facto é que terá de se aferir da sua responsabilidade na causalidade do sinistro, mormente, se aquela violou o seu dever, desde logo, de vigilância, e tal pertence ao domínio do administrativo e não da jurisdição comum”.
Por sua vez o TAF de Castelo Branco considerou que “(…) nos presentes autos, como vimos e tal como alegado pela Autora, encontra-se em causa a recusa do Fundo de Garantia Automóvel em assumir a responsabilidade pelo pagamento dos prejuízos que a mesma sofreu por um veículo sem apólice de seguro válida e eficaz.
Sucede que os Réus defenderam-se alegando que o acidente em causa era da responsabilidade da Autora, dado que o mesmo apenas se deveu ao facto da existência de um objeto metálico na via em causa, que perfurou o reservatório do veículo ..-MR-.. e, assim, provocou o derramamento de combustível no pavimento que foi a causa para os danos alegados pela Autora. Ou seja, alegadamente a Autora não tinha cumprido com as suas obrigações de conservação da autoestrada A25
Porém, o alegado pelos Réus em nada contende com a fixação da competência material. (…) o que importa apreciar neste momento, tal como esta ação foi configurada pela Autora, é a alegada responsabilidade do Fundo de Garantia Salarial e responsáveis civis na reparação dos danos alegados pela Autora com fundamento em o veículo em causa, alegadamente, não possuir apólice de seguro válida e eficaz.
E para esta matéria é competente o Tribunal Judicial por expressa atribuição legal (artigo 61º do Decreto-Lei n.º 291/2007)”.

Vejamos.
Cabe aos tribunais judiciais a competência para julgar as causas “que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional” [artigos 211º, nº1, da CRP, 64º do CPC e 40º, nº 1, da Lei nº 62/2013, de 26/08 (LOSJ)], e aos tribunais administrativos e fiscais a competência para julgar as causas “emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais” [artigos 212º, nº 3, da CRP e 1º, nº 1, do ETAF].
A competência dos tribunais administrativos e fiscais é concretizada no artigo 4º do ETAF com delimitação do “âmbito da jurisdição” mediante uma enunciação positiva (nºs 1 e 2) e negativa (nºs 3 e 4).
Tem sido reafirmado por este Tribunal, e constitui entendimento jurisprudencial e doutrinário consensual, que a competência material do tribunal se afere em função do modo como o A. configura a acção e que a mesma se fixa no momento em que a acção é proposta. Como se afirmou no Ac. deste Tribunal de 01.10.2015, Proc. nº 08/14 “A competência é questão que se resolve de acordo com os termos da pretensão do Autor, aí compreendidos os respectivos fundamentos e a identidade das partes, não importando averiguar quais deviam ser os termos dessa pretensão, considerando a realidade fáctica efectivamente existente ou o correcto entendimento do regime jurídico aplicável. O Tribunal dos Conflitos tem reafirmado constantemente que o que releva, para o efeito do estabelecimento da competência, é o modo como o Autor estrutura a causa e exprime a sua pretensão em juízo”.
Na presente acção a Autora, em face da alegada falta de apólice de seguro válida e eficaz do veículo que sofreu o acidente, deduziu o pedido de indemnização dos danos sofridos contra o Fundo de Garantia Automóvel e os responsáveis civis, invocando as normas dos artigos 47º, 49º e 62º do DL nº 291/2007, de 21/8 [que aprovou o regime do sistema do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel]. Assim, o pedido é dirigido contra o Fundo de Garantia Automóvel de cujos actos e decisões cabe recurso para os tribunais comuns (art. 61º do mencionado diploma) e contra sujeitos privados.
Perante os termos em que a Autora configurou na petição inicial a causa de pedir, o pedido e o Réus que demandou, não há dúvida de que estamos perante uma acção da competência dos tribunais comuns.
E não é a circunstância de a Autora ser concessionária da auto-estrada e de os Réus terem alegado que o acidente era da sua responsabilidade que permite considerar o litígio da competência dos tribunais administrativos por respeitar a “responsabilidade civil extracontratual dos demais sujeitos aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas coletivas de direito público”, como se entendeu na decisão do Juízo Local Cível da Guarda.
Como se referiu, a competência dos tribunais em razão da matéria afere-se em função da configuração da relação jurídica controvertida, isto é, em função dos termos em que é deduzida a pretensão do autor na petição inicial, incluindo os seus fundamentos, independentemente daquilo que o réu invoque no quadro da sua defesa.
Deste modo, a competência material para conhecer a presente acção cabe aos tribunais judiciais.
Pelo exposto, acordam em julgar competente para apreciar a presente acção o Tribunal Judicial da Comarca da Guarda, Juízo Local Cível da Guarda, Juiz 2.
Sem custas.

Lisboa, 15 de Fevereiro de 2023. - Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa (relatora) – Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza.