Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:034/19
Data do Acordão:06/25/2020
Tribunal:CONFLITOS
Relator:CARLOS CARVALHO
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
JAZIGO
SEPULTURA
TITULARIDADE
ALVARÁ
Sumário:Incumbe aos tribunais da jurisdição administrativa a competência para conhecer de ação em que se discute a existência ou não de direito sobre jazigo e sepultura sito em cemitério público, aferindo-se da titularidade da concessão relativa ao referido direito em função do alvará de concessão e daquilo que foram ou não os atos de transmissão havidos.
Nº Convencional:JSTA000P26098
Nº do Documento:SAC20200625034
Data de Entrada:07/04/2019
Recorrente:A………., NO CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE BRAGA, JUÍZO LOCAL CÍVEL DE VILA NOVA DE FAMALICÃO - JUIZ 3 E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE BRAGA UO1.
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: RELATÓRIO
1. A………… e outros, devidamente identificados nos autos [doravante AA.], intentaram primeiramente ação declarativa com processo comum, que denominaram de simples apreciação negativa, que correu termos sob o n.º 6455/17.7T8VNF no TJ da Comarca de Braga [Juízo Local Cível de Vila Nova de Famalicão - Juiz 3] contra B………., igualmente identificada nos autos [doravante R.], peticionando que esta fizesse «prova documental do direito a que se arroga sobre o … jazigo e sobre a sepultura onde depositou o cadáver do seu marido ...........» e de que não o fazendo fosse «declarada a inexistência do mesmo direito a que a R. se arroga».

2. O TJ supra identificado proferiu decisão, datada de 01.10.2018 e oportunamente transitada em julgado, na qual julgando procedente a exceção dilatória de incompetência material declarou-se incompetente por entender que a mesma cabia aos tribunais da jurisdição administrativa [in casu, aos tribunais administrativos] e absolveu da instância a R. [cfr. fls. 34/37 v. dos presentes autos - tal como ulteriores referências a paginação], para tal considerando que o objeto da ação emergia de uma relação jurídico-administrativa visto estar em discussão direito relativo a jazigo situado em cemitério público em termos da existência de alvará que concede direito ao uso privativo e sua titularidade.

3. Em face desta decisão os referidos AA. instauraram, então, no TAF de Braga contra a mesma R. idêntica ação declarativa, que correu termos sob o n.º 680/14.3BEBRG [entrada em 12.04.2019], formulando o mesmo pedido.

4. O referido TAF proferiu decisão, datada de 30.04.2019, na qual, julgando verificada a exceção dilatória da sua incompetência material, declarou-se também ele incompetente para o julgamento da ação por entender que a mesma cabia aos TJ [cfr. fls. 26/27 dos presentes autos], para tal considerando que do objeto da ação não emergia uma qualquer relação jurídico-administrativa.

5. Despoletado o conflito de jurisdição importa, com prévio envio do projeto aos Juízes Conselheiros nele intervenientes e colhidos os vistos legais, apreciar do mesmo, sendo que o Ministério Público [MP] emitiu parecer no sentido do presente conflito ser resolvido mediante a atribuição da competência aos TJ [cfr. fls. 48/49].


ENQUADRAMENTO E APRECIAÇÃO DO CONFLITO

6. Apreciando, assente o quadro circunstancial descrito no relatório antecedente, temos que mostra-se colocada a este Tribunal dos Conflitos a definição da jurisdição competente em razão da matéria para o julgamento da ação declarativa sub specie, ou seja, se a mesma caberá aos TJ ou, ao invés, aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal, in casu ao TAF de Braga.

7. Apresenta-se como consensual o entendimento de que a competência do tribunal se afere de harmonia com a relação jurídica controvertida tal como a configura o demandante, sendo que a mesma se fixa no momento em que a ação é proposta, dado se mostrarem irrelevantes, salvo nos casos especialmente previstos na lei, as modificações de facto que ocorram posteriormente, bem como as modificações de direito operadas, exceto se for suprimido o órgão a que a causa estava afeta ou lhe for atribuída competência de que inicialmente carecesse para o conhecimento da causa [cfr. arts. 38.º da Lei n.º 62/2013, de 26.08 - Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ) e 05.º, n.º 1, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF) na redação vigente/aplicável], na certeza de que na apreciação da mesma não releva um qualquer juízo de procedência [total ou parcial] quanto ao de mérito da pretensão/ação ou quanto à existência ou não de quaisquer outras questões prévias/exceções dilatórias.


8. A lei jusfundamental consagrou a existência de diferentes categorias de tribunais sob um critério de repartição de competências de modo que as funções judiciais são atribuídas a vários órgãos enquadrados em jurisdições diferenciadas e independentes entre si [cfr. arts. 211.º, n.º 1, e 212.º, n.º 3, da CRP, 64.º do CPC, 40.º, n.º 1, da LOSJ, 01.º e 04.º do ETAF], presente que os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional [cfr. arts. 64.º do CPC, e 40.º, n.º 1, da LOSJ] e de que, nos termos do n.º 1 do art. 130.º da LOSJ, os «… juízos locais cíveis … possuem competência na respetiva área territorial, tal como definida em decreto-lei, quando as causas não sejam atribuídas a outros juízos ou tribunal de competência territorial alargada» [vide, ainda, os arts. 117.º a 129.º da LOSJ, 64.º, 71.º e mapa III anexo ao Regulamento da LOSJ].


9. Resulta, por sua vez, que os tribunais administrativos/fiscais são os «tribunais comuns» em matéria administrativa/fiscal [cfr. arts. 209.º e 212.º, n.º 3, da CRP, e 01.º do ETAF], derivando do n.º 1 do art. 04.º do ETAF então vigente e no que importa relevar para o caso sub specie que competia «aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a: a) Tutela de direitos fundamentais e outros direitos e interesses legalmente protegidos, no âmbito de relações jurídicas administrativas e fiscais; … e) Validade de atos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes; … o) Relações jurídicas administrativas e fiscais que não digam respeito às matérias previstas nas alíneas anteriores».


10. Atento o objeto de litígio importa ainda atentar que o regime disciplinador dos cemitérios públicos, em especial no que releva para os autos, dos jazigos, mausoléus e sepulturas perpétuas e respetivos títulos de concessão do direito de uso privativo do domínio público, consta da aplicação conjugada e articulada do regime inserto nos Decretos n.º 44220, de 03.03.1962, e n.º 48770, de 18.12.1968, com o DL n.º 411/98, de 30.12 e o art. 16.º, n.º 1, als. gg) e ll), da Lei n.º 75/2013, de 12.09.


11. Discute-se nos autos sub specie questão que se prende com a existência ou não de direito da R. sobre jazigo e sepultura sito cemitério da Freguesia de ......, concelho de Vila Nova de Famalicão, para tal importando aferir da titularidade da concessão relativa ao referido direito e daquilo que foram os atos de transmissão ocorridos.


12. Constitui entendimento consensual o de que os cemitérios públicos [municipais ou paroquiais/freguesias], são bens dominiais, possuídos e administrados pelos municípios e pelas freguesias, e de que os mesmos estão afetos a um fim de utilidade pública [a inumação de cadáveres humanos em condições suficientes de sanidade e de dignidade], sendo que a utilização das parcelas de terreno dos referidos cemitérios pelos particulares, para sepulturas e implantação de jazigos, e a existência de um direito ao uso privativo daqueles de uma parcela desse bem depende da prévia «concessão» da respetiva entidade da administração local, a qual é titulada pelo «alvará» que não só a formaliza como a publicita, estando fora do comércio jurídico privado [cfr. art. 202.º, n.º 2, do CC] [cfr., entre outros, na doutrina, Marcello Caetano, in: «Manual de Direito Administrativo», volume II, Coimbra 1980, págs. 919, 937, 938, e 946 e segs.; Vítor Manuel Lopes Dias, in: «Cemitérios, Jazigos e Sepulturas», págs. 422 e segs.; Pires de Lima, em «Propriedade e Transmissão de Jazigos», in: Revista dos Tribunais, Ano 44º; Cunha Gonçalves, «Tratado de Direito Civil», volume III, págs. 54 e 55; e na jurisprudência, Acs. do Tribunal dos Conflitos de 08.07.2003 - Proc. n.º 010/02, de 05.05.2010 - Proc. n.º 015/09, de 17.09.2015 - Proc. n.º 013/15, e 07.06.2018 - Proc. n.º 018/18, todos consultáveis in: «www.dgsi.pt/jcon»; Ac. do STJ de 09.02.2006 - Proc. n.º 06B202, consultável in: «www.dgsi.pt/jstj»; Acs. do STA de 27.10.1988 - Proc. n.º 025546, de 07.03.1989 - Proc. n.º 026036, de 10.03.1992 - Proc. n.º 029754, de 24.09.1998 Proc. n.º 043843, de 13.02.2001 - Proc. n.º 046706, de 06.03.2002 - Proc. n.º 046143, todos consultáveis in: «www.dgsi.pt/jsta»].


13. Tal como afirmado no citado acórdão deste Tribunal de 17.09.2015 [Proc. n.º 013/15] «o direito de propriedade de particulares sobre jazigos só existe, pois, se e na medida em que exista aquele direito de uso privativo da respetiva parcela do bem do domínio público, direito este que só se constitui através daquele título especial, a concessão, que podendo embora ser “ato”, configura normalmente um “contrato administrativo”» e de que «[a] “concessão” é, assim, e nestes casos, uma forma da autarquia local, sem se demitir do seu domínio, proporcionar aos particulares mais e melhor extração das utilidades inerentes à coisa pública, constituindo na esfera jurídica deles um “direito ao uso privativo da parcela de terreno do cemitério”, que é “um direito subjetivo público” [Freitas do Amaral, in A Utilização do Domínio Público pelos Particulares, páginas 170 e seguintes; Fernando Alves Correia, in Revista de Direito e Justiça, UCP Faculdade de Direito, página 114]», sendo que «[e]ste direito subjetivo público nasce, pois, na esfera jurídica do concessionário, tendo como fonte ou um “ato administrativo” ou um “contrato administrativo de concessão”, e estando fundado, portanto, num negócio jurídico praticado ao abrigo de “disposições de direito administrativo”».


14. E que tratando-se de um direito de natureza administrativa «que tem um conteúdo diferenciado dos correspondentes direitos de natureza civil, o que resulta “do seu regime próprio, onde encontramos circunstâncias ou obrigações que lhe concedem uma tipicidade inconfundível”, como a de poderem ser usados “apenas em conformidade com os Regulamentos, as autorizações e as práticas adequadas à função específica […]” [Vítor Manuel Lopes Dias, in Cemitérios, Jazigos e Sepulturas, páginas 369 e 370]» tal significa claramente que «a respetiva autarquia, enquanto administração local, tem um largo controlo sobre o uso, a fruição, e a disposição de sepulturas e jazigos, sendo certo que a sua transmissão inter vivos não poderá ser “eficaz” sem o consentimento ou autorização da mesma [Ac. STA de 06.03.2002, R.º 046143]».


15. Do acórdão do STA ora acabado de citar extrai-se ainda e no que releva de interesse que «[c]onvém … referir que tais direitos administrativos cuja constituição radica nas mencionadas concessões “são direitos precários, resolúveis não definitivos, constituídos para determinado fim, limitados por fatores atuantes de interesse público submetidos a um ordenamento de interesse coletivo e sujeitos ao controle da Administração” (Lopes Dias, idem, pg. 375 …)», «[o] que claramente significa que a Administração tem um largo controle sobre o uso, fruição e disposição dos jazigos e sepulturas e tem uma vasta possibilidade de atuação sobre elas», sendo que se está assente que os direitos que se constituem sobre os jazigos e sepulturas são livremente transmissíveis [por sucessão legítima e por por negócio celebrado inter vivos] temos «que mesmo aqui a Administração tem possibilidade de intervenção», porquanto «[u]ma transmissão dessas - considerados os direitos, os valores e objetivos em causa - não é regida pelas mesmas normas do direito civil e, porque assim é, a mesma não é completamente livre, o que vale por dizer não pode ser feita como de coisa puramente privada se tratasse, desde logo, não é admissível que seja feita com intuitos lucrativos (Lopes Dias, local citado, pg. 394)», importando «que naquela transmissão sejam observadas as regras constantes do direito administrativo, nomeadamente o regulamento do cemitério onde a sepultura ou o jazigo se situam do qual poderá constar a forma estabelecida para esse consentimento».


16. Cientes do quadro circunstancial e normativo e dos considerandos de enquadramento antecedentes [jurisprudenciais e doutrinais] e, bem assim, daquilo que constitui o objeto de litígio da ação declarativa sub specie [existência ou não de direito da R. sobre jazigo e sepultura sito cemitério da Freguesia de ......, concelho de Vila Nova de Famalicão, aferindo-se, nessa medida, a titularidade da concessão relativa ao referido direito em função do alvará de concessão e daquilo que foram ou não os atos de transmissão havidos], estamos, no fundo, em presença de uma controvérsia que versa ou tem na base uma relação jurídica administrativa, aqui esta entendida enquanto relação disciplinada/regulada por normas de direito administrativo, na qual, por razões de interesse público, se mostram impostas deveres, sujeições ou limitações especiais aos intervenientes envolvidos, e que resulta, pelo menos, enquadrada na previsão da al. a) do n.º 1 do art. 04.º do ETAF.


17. Daí que no caso, em decorrência de tudo o atrás exposto, a competência em razão da matéria para o seu julgamento caberá aos tribunais administrativos [cfr., neste sentido, os citados Acs. deste mesmo Tribunal de 08.07.2003 - Proc. n.º 010/02, de 05.05.2010 - Proc. n.º 015/09, de 17.09.2015 - Proc. n.º 013/15, e 07.06.2018 - Proc. n.º 018/18].


DECISÃO
Nestes termos e de harmonia com os poderes conferidos pelo art. 202.º da Constituição da República Portuguesa acordam em resolver o conflito, considerando como competente, em razão da matéria, os tribunais administrativos, em concreto, o TAF de Braga.
Sem custas [cfr. art. 96.º do Decreto n.º 19243, de 16.01.1931]. D.N..


Lisboa, 25 de junho de 2020
[O relator consigna e atesta, que nos termos do disposto no art. 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13.03, aditado pelo art. 03.º do DL n.º 20/2020, de 01.05, têm voto de conformidade com o presente Acórdão os restantes integrantes da formação de julgamento do presente conflito, Conselheiro António dos Santos Abrantes Geraldes, Conselheira Maria do Céu Dias Rosa das Neves, Conselheira Maria Teresa Féria Gonçalves de Almeida, Conselheira Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa e Conselheiro Fernando Manuel Pinto de Almeida]
Carlos Luís Medeiros de Carvalho

Lisboa, 25 de junho de 2020. - Carlos Luís Medeiros de Carvalho (relator) - António dos Santos Abrantes Geraldes – Maria do Céu Dias Rosa das Neves - Maria Teresa Féria Gonçalves de Almeida - Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa - Fernando Manuel Pinto de Almeida.