Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:029/21
Data do Acordão:02/15/2023
Tribunal:CONFLITOS
Relator:TERESA DE SOUSA
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
CONTRATO DE AUTORIZAÇÃO
EXPOSIÇÃO DE OBRAS ARTÍSTICAS
RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
TRIBUNAIS JUDICIAIS
Sumário:I - Estando em causa a alegação do autor de que foi celebrado um contrato de autorização para serem expostas obras de sua autoria no evento promovido pelo réu e que este não cumpriu determinadas obrigações, aquele está a invocar responsabilidade contratual, pretendendo a restituição das obras que alega terem-se extraviado e a apreciação do incumprimento de uma relação contratual regida pelo direito privado com a reparação dos danos daí decorrentes.
II - Assim, sendo a competência em razão da matéria questão que se resolve face ao modo como o autor estrutura a causa, como exprime a sua pretensão em juízo, estamos perante uma acção da competência dos tribunais judiciais, visto a situação não se enquadrar na previsão da alínea e) do nº 1 do art. 4º do ETAF.
Nº Convencional:JSTA000P30593
Nº do Documento:SAC20230215029
Data de Entrada:10/18/2021
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O TRIBUNAL DA PROPRIEDADE INTELECTUAL 1º JUÍZO E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO DE CÍRCULO DE LISBOA 2ª UO
AUTOR: AA
RÉU: MUNICÍPIO DA AMADORA
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Conflito nº 29/21

Acordam no Tribunal dos Conflitos

1. Relatório
AA, identificado nos autos, intentou no Tribunal da Propriedade Intelectual acção contra o Município da Amadora pedindo a sua condenação a:
(1) Averiguar, em prazo razoável a determinar pelo tribunal, o paradeiro e o estado dos originais das obras extraviados, e,
a. caso sejam encontrados e estejam em bom estado, a restituí-los ao A.
b. caso sejam encontrados, mas danificados, a devolvê-los ao A. e indemnizá-lo por esses danos em valor a liquidar em execução de sentença.
Subsidiariamente, e nos termos do artigo 554.º do CPC, caso a R. não logre apurar o paradeiro das obras deverá a R. ser condenada a:
(2) Indemnizar o A. pelo valor das obras extraviadas, no montante de 27.730,00 €, acrescido de juros vencidos e vincendos até efetivo e integral pagamento.
Cumulativamente, nos termos do artigo 555.º do CPC, deverá ainda ser a R. condenada a:
(3) Indemnizar o A. pelos lucros cessantes no valor de 1.600 €, e pelo dano da perda de chance em quantia a ficar equitativamente pelo tribunal, acrescidos de juros vencidos e vincendos até efetivo e integral pagamento
(4) Indemnizar o A. pelos danos não patrimoniais sofridos no valor de 5.000 €, acrescido de juros vencidos e vincendos até efetivo e integral pagamento,
Mais se requer que seja a R. condenada em custas de parte e demais encargos com o processo.
Em síntese, alega que em Outubro de 2018 celebrou com o Município da Amadora um contrato de exposição de obras de arte pelo qual o autorizou a expor uma selecção das suas obras e que este assumiu um conjunto de obrigações respeitantes à guarda e integridade das mesmas obras, incluindo o dever de assegurar o respectivo transporte e de celebrar o competente seguro.
Mais alega que uma parte das obras se extraviou durante o transporte e que continuam desaparecidas, tendo vindo a saber, muito mais tarde, que o seguro de transporte contratado pelo Município não havia sido accionado. Esta situação acarretou prejuízos vários na esfera jurídica do Autor, prejuízos esses imputáveis ao Réu e cujo ressarcimento se impõe à luz do instituto da responsabilidade civil por incumprimento contratual.
O Réu contestou arguindo, além do mais, a excepção de incompetência absoluta do Tribunal.
Em 09.12.2020, no Tribunal da Propriedade Intelectual, foi proferida decisão a julgar o Tribunal incompetente em razão da matéria e a absolver o Réu da instância.
Remetidos os autos ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra (TAF de Sintra), a requerimento do Autor, foi aí proferida sentença em 24.04.2021 a declarar o Tribunal incompetente em razão da matéria e a determinar, após trânsito, a remessa dos autos ao Juízo de Contratos Públicos do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa (TAC de Lisboa).
Seguidamente, o TAC de Lisboa por sentença proferida em 13.06.2021 julgou-se materialmente incompetente em razão da matéria e absolveu o Réu da instância.
Ambas as decisões transitaram em julgado.
Suscitada a resolução do conflito negativo de jurisdição, foram os autos remetidos ao Tribunal dos Conflitos.
Neste Tribunal dos Conflitos as partes foram notificadas para efeitos do disposto no nº 3 do art. 11º da Lei nº 91/2019.
A Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da atribuição da competência à jurisdição comum para apreciar a acção, devendo fixar-se como tribunal competente o Tribunal da Propriedade Intelectual.

2. Os Factos
Os factos relevantes para a decisão são os enunciados no Relatório.

3. O Direito
O presente Conflito Negativo de Jurisdição vem suscitado entre o Tribunal da Propriedade Intelectual e o Tribunal Administrativo de Circulo de Lisboa.
Considerou o Tribunal da Propriedade Intelectual que “(…) não obstante ter existido um contrato entre A. e R. sobre a utilização de obras e por isso, o contrato celebrado entre A. e R. se prender com disponibilidade de direitos de autor, o certo é que, não é essa a causa de pedir. Esta apenas versa sobre responsabilidade civil extracontratual (de eventual violação de um alegado seguro de transporte) praticado por uma entidade pública e no âmbito de finalidades públicas - Festival Internacional de Banda Desenhada organizado pelo Município da Amadora, pelo que indubitavelmente serão os Tribunais Administrativos e Fiscais os competentes para desta acção conhecerem. A causa de pedir não se prende com qualquer contrato relativo à utilização de direitos de autor (...)”.
Por sua vez, o TAC entendeu que “(…) Tendo em atenção o objeto da causa, conformado pelo pedido e pela causa de pedir, temos por certo que a factualidade descrita como fundamento da pretensão do A. não convoca o instituto da responsabilidade civil extracontratual nomeadamente, a responsabilidade civil extracontratual pública (…) antes se prende com a responsabilidade civil contratual, por alegada violação de um vínculo obrigacional preexistente entre as partes deste pleito forense. (…) tanto pelo crivo da administratividade do contrato, como pelo crivo das regras que presidem à formação do mesmo, não descortinamos forma de conduzir a lide para os domínios da justiça administrativa. (…)
Com efeito, mesmo atendendo ao cariz enunciativo do elenco que o art. 4º, n.º 1 do ETAF encerra, o feito em juízo, tal como configurado na petição inicial, é insuscetível de caraterizar uma relação jurídica administrativa (ou fiscal), o que desarma o intérprete da possibilidade de lançar mão do critério substantivo corporizado no n.º 3 do artigo 212.º da Constituição.
O agregado de razões de facto e de direito em que assenta a pretensão da A., e os pedidos que deduz, esboçam uma situação jurídica regulada pelo direito privado, mais precisamente pelo direito civil, no seu núcleo medular, onde se acolhem as relações contratuais não reguladas pelo direito administrativo e a responsabilidade civil por factos dessa relação.”.

Vejamos.
Cabe aos tribunais judiciais a competência para julgar as causas “que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional” [artigos 211º, n.º1, da CRP, 64º do CPC e 40º, nº 1, da Lei nº 62/2013, de 26/08 (LOSJ)], e aos tribunais administrativos e fiscais a competência para julgar as causas “emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais” [artigos 212º, nº 3, da CRP, 1º, nº 1, do ETAF].
A competência dos tribunais administrativos e fiscais é concretizada no artigo 4º do ETAF com delimitação do “âmbito da jurisdição” mediante uma enunciação positiva (n.ºs 1 e 2) e negativa (nºs 3 e 4).
Tem sido reafirmado por este Tribunal, e constitui entendimento jurisprudencial e doutrinário consensual, que a competência material do tribunal se afere em função do modo como o A. configura a acção e que a mesma se fixa no momento em que a acção é proposta. Como se afirmou no Ac. deste Tribunal de 01.10.2015, Proc. nº 08/14 “A competência é questão que se resolve de acordo com os termos da pretensão do Autor, aí compreendidos os respectivos fundamentos e a identidade das partes, não importando averiguar quais deviam ser os termos dessa pretensão, considerando a realidade fáctica efectivamente existente ou o correcto entendimento do regime jurídico aplicável. O Tribunal dos Conflitos tem reafirmado constantemente que o que releva, para o efeito do estabelecimento da competência, é o modo como o Autor estrutura a causa e exprime a sua pretensão em juízo”.
Na presente acção, o Autor defende que celebrou com o Réu Município um contrato de autorização para exposição de obras de arte, previsto no art. 157º do Código de Direito de Autor e Direitos Conexos (CDADC), e que o Réu não cumpriu o dever que sobre ele recaía, nos termos do art. 158º do CDADC, de assegurar a “integridade das obras expostas, sendo obrigada a fazer o seguro das mesmas contra incêndio, transporte, roubo e quaisquer outros riscos de destruição ou deterioração”. Refere, ainda, que é evidente o não cumprimento pelo Réu do dever de contratar o seguro que cubra aqueles riscos, do dever de averiguar, de forma diligente e zelosa, a causa do extravio das obras, de accionar todos os recursos para a sua recuperação e do dever de lealdade e boa-fé em que assenta qualquer relação contratual.
Perante os termos em que o Autor configurou na petição inicial a causa de pedir e o pedido, não há dúvida de que se trata de uma acção de responsabilidade contratual, por alegado incumprimento de um contrato existente entre as partes, e não de um litígio respeitante a responsabilidade civil extracontratual prevista e regulada pela Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro.
Assim, suscita-se a questão de saber se a responsabilidade contratual em causa nos autos reúne os pressupostos previstos na alínea e) do nº 4 do ETAF: “Validade de atos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes”, para a competência material ser atribuída à jurisdição administrativa e fiscal ou, se, pelo contrário, se mostra excluída a competência material destes tribunais, devendo a tal competência ser atribuída aos tribunais comuns.
Por seu lado, a competência do Tribunal da Propriedade Intelectual encontra-se definida no artigo 111º da LOSJ (Lei nº 62/2013, de 26 de Agosto, na redacção da Lei n.º 55/2019, de 05 de Agosto). Compete-lhe conhecer das questões relativas a:
a) Ações em que a causa de pedir verse sobre direito de autor e direitos conexos;
(…)
c) Ações em que a causa de pedir verse sobre o cumprimento ou incumprimento, validade, eficácia e interpretação de contratos e atos jurídicos que tenham por objeto a constituição, transmissão, oneração, disposição, licenciamento e autorização de utilização de direitos de autor, direitos conexos e direitos de propriedade industrial, em qualquer das modalidades previstas na lei;
Ora, como se decidiu na sentença do TAC de Lisboa em profunda e fundamentada análise a este respeito, não decorre dos autos e nem se vislumbra que o contrato, mediante o qual o Autor autorizou o Município Réu a expor obras de arte da sua autoria, seja um contrato administrativo ou tenha sido celebrado nos termos da legislação sobre contratação pública.
O que está verdadeiramente em causa, é a alegação do Autor de que foi celebrado um contrato de autorização para serem expostas obras de sua autoria no evento promovido pelo Réu e que este não cumpriu determinadas obrigações. O Autor, invocando responsabilidade contratual, pretende a restituição das obras que alega terem-se extraviado e a apreciação do incumprimento de uma relação contratual regida pelo direito privado com a reparação dos danos daí decorrentes.
E, como se disse, sendo a competência em razão da matéria questão que se resolve face ao modo como o Autor estrutura a causa, como exprime a sua pretensão em juízo, não há dúvida de que estamos perante uma acção da competência dos tribunais judiciais.
Pelo exposto, acordam em julgar competente para apreciar a presente acção os tribunais judicias, concretamente o Tribunal da Propriedade Intelectual.
Sem custas.

Lisboa, 15 de Fevereiro de 2023. – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa (relatora) – Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza.