Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:0471/23.7TXPRT-B.S1
Data do Acordão:11/22/2023
Tribunal:CONFLITOS
Relator:MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Descritores:CONFLITO DE JURISDIÇÃO
Sumário:Compete ao Tribunal de Execução das Penas, integrado na jurisdição comum, a apreciação de uma providência cautelar de suspensão da eficácia de um despacho do Subdiretor-geral de Reinserção e Serviços Prisionais, que determinou a transferência de Estabelecimento Prisional de um recluso.
Nº Convencional:JSTA000P31610
Nº do Documento:SAC202311220471
Recorrente:TRIBUNAL DE EXECUÇÃO DAS PENAS DE LISBOA-JUÍZO EXECUÇÃO PENAS LISBOA-JUIZ …
Recorrido 1:TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DO PORTO - JUIZ ADMINISTRATIVO COMUM
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Acordam no Tribunal dos Conflitos:

1. AA requereu no Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, contra o Ministério da Justiça, providência cautelar de suspensão da eficácia do despacho de 1 de Junho de 2023 do Subdiretor-geral de Reinserção e Serviços Prisionais, que determinou a sua transferência do Estabelecimento Prisional de ... (Feminino) para o Estabelecimento Prisional de ....


O requerimento foi liminarmente indeferido, por decisão de 9 de Junho de 2023 do Juízo Administrativo Comum do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, por incompetência absoluta do tribunal, em razão da matéria.


Para assim decidir, e em síntese, o tribunal considerou que, tratando-se da legalidade de uma decisão dos serviços prisionais, da autoria do respetivo Subdiretor-Geral, que decidiu a transferência da requerente de um estabelecimento prisional para outro, a competência para a apreciar cabe ao Tribunal de Execução das Penas, nos termos dos artigos 4.º, n.º 3, al. c), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, 22.º, 138.º, n.ºs 1 e 4.º, al. g), e 200.º, todos do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade, estando portanto excluída da jurisdição administrativa e fiscal.


A 11 de Junho, a requerente requereu no Tribunal de Execução de Penas de Lisboa, contra o Ministério da Justiça – Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, procedimento cautelar de suspensão de eficácia, pedindo que fosse decretada “a presente providência de suspensão da eficácia do acto administrativo consubstanciado no despacho do senhor subdirector geral da reinserção e serviços prisionais de 01 de junho de 2023 que determinou a transferência da requerente para o estabelecimento prisional de …, devendo ser a mesma transferida de volta para o estabelecimento prisional de ....”.


Por despacho de 3 de Julho de 2023, o Juízo de Execução das Penas de Lisboa – Juiz ..., do Tribunal de Execução das Penas de Lisboa, declarou-se materialmente incompetente para conhecer do presente procedimento cautelar, uma vez que o despacho do Senhor Diretor Geral dos Estabelecimentos Prisionais, ou do Senhor Subdiretor, no uso de competência delegada, constituem atos administrativos, impugnáveis perante os Tribunais Administrativos.


Notificada, a requerente requereu a resolução do conflito negativo.


Por despacho de 30 de Agosto de 2023, o Juízo de Execução das Penas de Lisboa – Juiz ..., suscitou a resolução do conflito negativo de jurisdição junto do Tribunal dos Conflitos.


2. Remetido o processo ao Tribunal dos Conflitos, o Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça determinou que se seguissem os termos previstos na Lei n.º 91/2019, de 4 de Setembro.


Notificadas as partes para se pronunciarem, querendo, nada disseram.


3. Os factos relevantes para a decisão constam do relatório.


Está pois em causa, apenas, determinar quais são os tribunais competentes para apreciar o pedido da requerente, se os tribunais judiciais – que, no conjunto do sistema judiciário, têm competência residual (n.º 1 do artigo 212º da Constituição, n.º 1 do artigo 40º da Lei de Organização do Sistema Judiciário, a Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto e artigo 64.º do Código de Processo Civil) – , se os tribunais administrativos e fiscais, cuja jurisdição é delimitada pelo n.º 3 do artigo 212º da Constituição e pelos artigos 1.º, n.º 1, e 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.


Os tribunais administrativos «são os tribunais comuns em matéria administrativa, tendo «reserva de jurisdição nessa matéria, excepto nos casos em que, pontualmente, a lei atribua competência a outra jurisdição» [ver AC TC nº508/94, de 14.07.94, in Processo nº 777/92; e AC TC nº347/97, de 29.04.97, in Processo nº139/95]” – acórdão do Tribunal dos Conflitos de 8 de Novembro de 2018, www.dgsi.pt, proc. n.º 020/18).


Esta forma de delimitação recíproca obriga a verificar se o presente requerimento se pode reconduzir uma medida cautelar “emergente” de “relações jurídicas administrativas e fiscais” (n.º 2 do artigo 212º da Constituição, n.º 1 do artigo 1.º e artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais); essa verificação, todavia, só será realmente necessária se não resultar de uma disposição específica a determinação da jurisdição competente – para a medida cautelar ou para a acção principal. Com efeito, tratando-se de uma medida cautelar requerida antes de instaurada a acção principal, a relação de instrumentalidade que a liga à acção de que depende implica que a competência para decidir uma e outra caiba ao mesmo tribunal.


Recorde-se, ainda, que está excluída do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto “a impugnação de atos relativos ao inquérito e instrução criminais, ao exercício da ação penal e à execução das respetivas decisões” (art. 4.º, n.º 3, al. c), do ETAF).


4. Como uniformemente se tem observado, nomeadamente no Tribunal dos Conflitos, a competência determina-se tendo em conta os “termos da acção, tal como definidos pelo autor — objectivos, pedido e da causa de pedir, e subjectivos, respeitantes à identidade das partes (cfr., por todos, os acórdãos de 28 de Setembro de 2010, www.dgsi.pt, proc. nº 023/09 e de 20 de Setembro de 2011, www.dgsi.pt, proc. n.º 03/11” – acórdão de 10 de Julho de 2012, www.dgsi.pt, proc. nº 3/12 ou, mais recentemente, o acórdão de 18 de Fevereiro de 2019, www.dgsi.pt, proc. n.º 12/19, quanto aos elementos objectivos de identificação da acção; ou, ainda, no acórdão do Tribunal dos Conflitos, de 8 de Novembro de 2018, www.dgsi.pt, processo n.º 020/18, “como tem sido sólida e uniformemente entendido pela jurisprudência deste Tribunal de Conflitos, a competência dos tribunais em razão da matéria afere-se em função da configuração da relação jurídica controvertida, isto é, em função dos termos em que é deduzida a pretensão do autor na petição inicial, incluindo os seus fundamentos (…). A competência em razão da matéria é, assim, questão que se resolve em razão do modo como o autor estrutura a causa, e exprime a sua pretensão em juízo, não importando para o efeito averiguar quais deveriam ser os correctos termos dessa pretensão considerando a realidade fáctica efectivamente existente, nem o correcto entendimento sobre o regime jurídico aplicável – ver, por elucidativo sobre esta metodologia jurídica, o AC do Tribunal de Conflitos de 01.10.2015, 08/14, onde se diz, além do mais, que «o tribunal é livre na indagação do direito e na qualificação jurídica dos factos. Mas não pode antecipar esse juízo para o momento de apreciação do pressuposto da competência…»].”.


5. No caso dos autos, como se viu, a requerente insurge-se contra o despacho do Senhor Subdiretor Geral da Reinserção e Serviços Prisionais que ordenou a sua transferência imediata e a título definitivo do EP de ... (Feminino) para o EP de .... Aludindo à previsão constante do artigo 22.º do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade (CEPMPL), aprovado pela Lei n.º 115/2009, de 12 de Outubro, a requerente sustenta, em suma, que tal despacho viola os fundamentos legalmente previstos para a transferência dos reclusos.


6. A competência material dos Tribunais de Execução de Penas vem definida no artigo 138.º do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade. De acordo com o respectivo n.º 1, “Compete ao tribunal de execução das penas garantir os direitos dos reclusos, pronunciando-se sobre a legalidade das decisões dos serviços prisionais nos casos e termos previstos na lei.”; e, segundo a al. g) do n.º 4, “Sem prejuízo de outras disposições legais, compete aos tribunais de execução das penas, em razão da matéria: (…) Decidir processos de impugnação de decisões dos serviços prisionais”.


Recorde-se, ainda, o artigo 200.º do CEPMPL, que dispõe que “As decisões dos serviços prisionais são impugnáveis, nos casos previstos no presente Código, perante o tribunal de execução das penas.”.


A transferência de reclusos, em especial, é disciplinada pelo artigo 22.º do CEPMPL: quanto ao objectivo (n.º 1 - O recluso pode ser transferido para estabelecimento prisional ou unidade diferente daquele a que está afecto, para favorecer o seu tratamento prisional, a aproximação ao meio familiar e social, a execução do plano individual de readaptação, o tratamento médico e por razões de ordem e segurança”), quanto ao direito de audição prévia (n.º 2) e quanto à competência para determinar a transferência, seja ou não da iniciativa do próprio, à necessidade de comunicação ao tribunal competente e, salvo razões de segurança, ao próprio e a quem ele indicar (n.º 3).


O Decreto-Lei n.º 51/2011, de 11 de Abril, aprovou o Regulamento Geral dos Estabelecimentos Prisionais, em cumprimento do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade.


No respectivo preâmbulo pode ler-se que «O presente decreto-lei aprova o Regulamento Geral dos Estabelecimentos Prisionais, que visa regulamentar o Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade, concretizando os princípios fundamentais neste definidos. Segundo a exposição de motivos da proposta de lei que lhe deu origem, o Código “contém os princípios fundamentais da execução das penas e medidas privativas da liberdade, pretendendo-se que venha a ser regulamentado por um Regulamento Geral dos Estabelecimentos Prisionais, apto a garantir uma aplicação homogénea da lei em todo o sistema prisional». (…) A aprovação de um regulamento geral dos estabelecimentos prisionais era de há muito proposta pela doutrina penitenciária. Por um lado, com um regulamento geral, aplicável a todos os estabelecimentos prisionais, garante-se uniformidade e igualdade na aplicação da regulamentação penitenciária no conjunto do sistema prisional. Por outro lado, reunir e sistematizar num só documento matérias actualmente muito dispersas por numerosos regulamentos, circulares e despachos apresenta importantes vantagens, tanto para os aplicadores do direito penitenciário como para os seus destinatários, por tornar de mais fácil apreensão o direito aplicável.


O Regulamento Geral dos Estabelecimentos Prisionais ocupa-se, nomeadamente, de matérias como os procedimentos de ingresso no estabelecimento prisional, a transferência de reclusos entre estabelecimentos prisionais, saídas e transporte, define quais os equipamentos e objectos existentes nos espaços de alojamento e as condições da sua utilização, as condições de utilização das instalações para actividades da vida diária, o tipo, quantidade e conservação do vestuário, o tipo, quantidade, acondicionamento e frequência da recepção de alimentos do exterior, as condições das visitas a reclusos e as condições de recepção e expedição de encomendas.”.


O artigo 22.º deste Regulamento regula a iniciativa de transferência:


1 - A transferência pode ser da iniciativa do director do estabelecimento prisional, dos serviços centrais ou a pedido do recluso.


2 - Quando seja da iniciativa do director do estabelecimento prisional, a proposta é fundamentada e acompanhada dos pareceres dos serviços responsáveis pelo acompanhamento da execução da pena, dos serviços de vigilância e segurança e, caso se justifique, dos serviços clínicos.


3 - Quando seja da iniciativa do recluso, o pedido é fundamentado e entregue ao director do estabelecimento prisional, que o remete, no prazo de 15 dias, ao director-geral, acompanhado do seu parecer e das informações dos serviços referidos no número anterior.


4 - Quando a transferência não seja da iniciativa do recluso, este é previamente ouvido sobre a proposta de transferência, especialmente quando esta vise favorecer a aproximação ao meio familiar e social, o tratamento prisional, a execução do plano individual de readaptação ou o tratamento médico, ressalvados os casos em que fundadas razões de ordem e segurança se oponham à audição.(…)”.


De todo o exposto deve concluir-se que a decisão de transferência do recluso tomada pelo director-geral dos Serviços Prisionais tem de ser formal e materialmente conforme com as regras primariamente definidas pelo artigo 22.º do CEPMPL.


Ora a decisão, cuja legalidade é agora posta em causa, embora a título cautelar, insere-se no âmbito da execução das penas e é sindicável pelo Tribunal de Execução das Penas, integrado na jurisdição comum, nos termos do art. 138.º, n.ºs 1 e 4.º, al. g), e do art. 200.º do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade.


7. Nestes termos, compete aos Tribunais Judiciais a apreciação do presente pedido; concretamente, e de acordo com o disposto no n.º 5 do artigo 14.º da Lei n.º 91/2019 e com o Anexo III (a que se refere o n.º 4 do artigo 83.º) à Lei n.º 63/2013, ao Tribunal de Execução das Penas de Lisboa.


Sem custas (art. 5.º nº 2, da Lei n.º 91/2019, de 4 de Setembro)


Lisboa, 22 de novembro de 2023. – Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza (relatora) – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa.