Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:03446/19.7T8ALM-A.L1.S1
Data do Acordão:09/13/2021
Tribunal:CONFLITOS
Relator:MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Descritores:CONFLITO DE JURISDIÇÃO
Sumário:I - Cabe à jurisdição administrativa e fiscal a competência para julgar uma execução instaurada pela Ordem dos Solicitadores e Agentes de Execução contra um agente de execução, destinada a obter a cobrança coerciva de contribuições a que os associados estão obrigados por virtude de normas administrativas que as impõem, e que tem por base a liquidação das quantias que a Ordem considera estarem em falta.
II - Está em causa o exercício de poderes públicos, traduzido na prática de “actos administrativos necessários ao desempenho das suas funções” e na aprovação de regulamentos exigidos pela prossecução das atribuições que lhe são cometidas.
Nº Convencional:JSTA000P28154
Nº do Documento:SAC2021091303446
Recorrente:ORDEM DOS SOLICITADORES E DOS AGENTES DE EXECUÇÃO
TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LISBOA – JUÍZO DE EXECUÇÃO DE ALMADA – JUIZ 1
TRIBUNAL ADMINISTRATIVO DE CÍRCULO DE LISBOA
Recorrido 1:...........
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Tribunal dos Conflitos


Acordam, no Tribunal dos Conflitos:

1. A Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução instaurou no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa uma ação executiva para pagamento de quantia certa contra AA, requerendo o pagamento coercivo das dívidas do executado perante a Caixa de Compensações, no valor global, em 1 de Março de 2019, de € 935 709,25 (€ 733 990,25 de capital e € 201 719,12 de juros de mora vencidos em 1 de Março de 2019), acrescido dos juros vincendos calculados à taxa legal desde 2 de Março de 2019 até efectivo e integral pagamento.
Como título executivo, juntou uma certidão de dívida emitida pelo Conselho Geral da referida Ordem (n.º 4 do artigo 84.º dos respectivos Estatutos, aprovados pela Lei n.º 154/2015, de 14 de Setembro).
Pelo requerimento de fls. 26, v.º, o executado invocou a excepção de incompetência em razão da matéria, sustentando tratar-se de execução da competência dos tribunais administrativos, uma vez que “As relações jurídicas entre a OSAE e os seus associados são relações de natureza administrativa, entre as quais se incluem as questões relativas à Caixa de Compensações” (ponto 6).
A exequente veio sustentar que o requerimento devia ser indeferido, por ser competente o tribunal onde a execução foi instaurada.
Pelo despacho de fls. 56, v.º, o tribunal julgou-se “materialmente competente”; AA interpôs recurso de apelação e o Tribunal da Relação de Lisboa, pelo acórdão de fl. 97, de 14 de Julho de 2020, revogou o despacho recorrido e rejeitou a execução, decidindo que os tribunais comuns são incompetentes, “por ser competente o tribunal administrativo”.

2. A exequente interpôs recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, defendendo a revogação do acórdão recorrido e a prossecução dos termos da execução no Juízo de Execução. Nas alegações que apresentou, formulou as conclusões seguintes:
«A. Constitui título executivo bastante a certidão de dívida passada pelo conselho geral da OSAE no que se refere a quotas, e às taxas devidas à Caixa de Compensações, aplicando-se à cobrança coerciva de taxas ou outras quantias as regras do Código de Processo Civil (n.º 3 e n.º 4 do artigo 84.º do seu Estatuto).
B. É fundamental assentar na distinção das soluções estabelecidas no n.º 2 do artigo 207.º do Estatuto da OSAE, que determina que das decisões definitivas tomadas em matéria disciplinar cabe recurso contencioso para os tribunais administrativos e no n.º 3 do artigo 84.º, onde se optou por omitir remissão similar.
C. É que, com as referências que introduziu, no n.º 3 do artigo 84.º da OSAE, às regras do Código de Processo Civil – que não é o mesmo que o conceito de “lei processual civil”, contido no n.º 5 do artigo 157.º do ETAF – quis o legislador, não apenas determinar a aplicação do regime geral do processo de execução, mas também submeter estas situações ao bloco de legalidade do Código de Processo Civil e, portanto, à jurisdição dos tribunais cíveis.
D. Até porque, se a sua intenção fosse, apenas, a de subordinar esta categoria de processos de execução, no quadro da jurisdição administrativa e fiscal, às normas em matéria de tramitação no domínio processual civil, bastar-lhe-ia o silêncio, uma vez que tal solução já decorreria de quanto estatui o n.º 5 do artigo 157.º do CPTA.
E. É muito relevante, para o esforço interpretativo requerido, sublinhar que o nº 4 do artigo 43.º da Lei n.º 2/2013, de 10 de Janeiro, estabelece que a cobrança coerciva dos créditos resultantes provenientes das quotas e das taxas cobradas pelos serviços prestados pelas associações públicas profissionais segue o processo de execução tributária.
F. E que disposição de idêntico teor é replicada, v. g., pelo n.º 1 do artigo 155.º do Estatuto da Ordem dos Médicos e pelo artigo 120.º do Estatuto da Ordem dos Enfermeiros.
G. Ora, no caso da OSAE, o legislador quis expressamente consagrar uma solução distinta daquela, o que resulta claro da comparação entre a solução constante do n.º 3 do artigo 84.º do Estatuto da OSAE e aquela que é acolhida naquelas normas.
H. Uma solução diferenciada em termos de normas procedimentais – o Código de Processo Civil em vez do Código do Procedimento e Processo Tributário –, mas também em termos de competência material de apreciação – os tribunais cíveis, em vez dos tribunais fiscais.
I. As relações estabelecidas entre a OSAE e os seus associados, que sejam devedores da Câmara das Compensações, não devem reconduzir-se, sem mais, à categoria de relações jurídico-administrativas.
J. As associações públicas profissionais constituem, em simultâneo, manifestação de vontade do poder público, que as institui, e do princípio da liberdade de associação, pelo que, em tudo quanto não for incompatível com a natureza pública que apresentam, compartilham do regime comum das associações.
K. Daí que, nos termos do n.º 1 do artigo 4.º da Lei n.º 2/2013, de 10 de Janeiro, as suas decisões estão sujeitas ao contencioso administrativo, apenas, quando em causa estejam o exercício de poderes públicos.
L. Diferentemente, o controlo da juridicidade das demais decisões, que não apresentem essa marca distintiva, caberá a outras categorias de tribunais, isto é, os comuns.
M. Em matéria de cobrança de dívidas dos associados, OSAE não exerce poderes de autoridade, encontrando-se numa situação jurídica similar à de outras associações privadas (ou entidades comparáveis), uma vez que não dispõe de poderes coercivos para tornar a cobrança efectiva, no caso de não ocorrer o pagamento voluntário das mesmas.
N. E o facto de as certidões de dívida emitida pelo Conselho Geral da OSAE constituírem título executivo não é, por si só, sinal da presença de uma relação jurídica administrativa, pois que isso também ocorre com entidades de direito privado, sujeitas ao processo de execução da competência dos tribunais cíveis, como no caso, v.g., das actas das reuniões de condomínio.
O. Não tem qualquer relevância, para a questão “sub judicio”, a invocação da jurisprudência sobre as relações entre a CPAS e os seus beneficiários, já que esta, diferentemente da OSAE, não tem natureza associativa – não sendo, portanto, subsumível ao conceito de associação pública profissional –, uma vez que resulta, em exclusivo, de uma decisão unilateral do Estado, assumindo a natureza de instituição de previdência.
P. Pelo que todos os actos praticados pela CPAS traduzem, “ex natura”, o exercício de poderes públicos, sujeitos, por isso, à necessária apreciação dos tribunais administrativos e fiscais.
Q. Assim sendo, a decisão recorrida violou o disposto no n.º 3 do artigo 84.º do Estatuto da OSAE, que dispõe que à cobrança das dívidas à Caixa de Compensações se aplicam as regras do Código do Processo Civil e, consequentemente, a sua subordinação à jurisdição dos tribunais comuns, violação que se invoca nos termos e para os efeitos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 639.º do CPC, aplicável ex vi do artigo 852.º, também do CPC.»
O executado AA contra-alegou, sustentando o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa e a improcedência do recurso, concluindo desta forma:
«a) O presente recurso pugna pela revogação do acórdão que decidiu serem os tribunais administrativos competentes para a tramitação de acção executiva relativa a alegadas dívidas à OSAE.
b) Sucede que, visando este recurso revogar o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, teria de ser interposto para o Tribunal dos Conflitos, nos termos do art.º 102.º, n.º 2, do CPC.
c) Tendo sido erradamente interposto para o Supremo Tribunal de Justiça, o acórdão ora sindicado transitou em julgado, quer se aplique o prazo de 15 dias, quer o prazo de 30 dias.
d) Trata-se de questão que não pode ser objecto de correcção oficiosa pelo tribunal, como decorre da aplicação da doutrina do Assento do Proc. N.º 2964/90 porque se formou caso julgado material sobre esta questão dentro destes autos.
e) Igual conclusão será aplicada por respeito aos princípios da autorresponsabilidade das partes e princípio da preclusão, bem como o facto de não existir norma que permita tal correcção ex officio, já que não se trata de usar os poderes do tribunal sobre alteração da espécie, regime ou efeito do recurso (tal remessa oficiosa sempre seria uma violação do princípio da imparcialidade, ao fazer actuar o tribunal para superar erro da parte sem expressa consagração, na lei, de norma para o efeito).
f) Daí que o presente recurso deva ser rejeitado por ser inadmissível e ter já transitado em julgado o acórdão do TRL de 14.07.2020, devendo ser declarada, com força de caso julgado, a extinção destes autos.
g) Subsidiariamente, caso improceda a argumentação supra propugnada, a incompetência, em razão da matéria, dos tribunais judiciais decorre, desde logo, do facto de estarmos na presença de cobrança coerciva, através dos tribunais, do pagamento de uma putativa taxa que se sustenta na relação jurídico-administrativa entre a exequente e o executado.
h) A norma do art.º 212.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa é clara:
“Compete aos tribunais administrativos e Fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações administrativas e fiscais”.
i) Acresce que a norma da alínea n) do n.º 1 do art.º 4.º do ETAF é inequívoca ao determinar:
– “Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a: (…) n) Execução da satisfação de obrigações ou respeito por limitações decorrentes de actos administrativos que não possam ser impostos coercivamente pela Administração”.
j) Tampouco, no contexto das competências em razão da matéria fixadas, no ETAF ou na Lei da Organização do Sistema Judiciário, haveria base legal – em rigor, constitucional – para dirimir, no contexto de uma execução, como a destes autos, um incidente de embargos.
k) Um incidente de embargos onde se suscitassem questões exclusivamente do foro jurídico-administrativo e/ou tributário, como, entre outras, (i) a ilegalidade e inconstitucionalidade a vários níveis da legislação que suporta as “taxas” cujo pagamento a exequente persegue ou (i) a caducidade do direito de exigir o pagamento das taxas e prescrição de tal pagamento.
l) São matérias notoriamente de direito administrativo e tributário.
m) A norma do art.º 84.º, n.º 3 do EOSAE apenas esclarece que no processo de cobrança coerciva se aplicarão as regras do processo civil, em linha com a norma do próprio CPTA, no art.º 157.º, n.º 5, o que identicamente ocorre com o CPPT, onde se encontram inúmeras remissões expressas para o CPC [além da aplicação subsidiária do mesmo, nos termos do art.º 2.º, alínea e)].
n) Mais, as normas de processo civil, mesmo que em bloco aplicadas, não têm uma única norma de atribuição de competência em razão da matéria.
o) O Código de Processo Civil regula a tramitação das ações que correm nos tribunais, questão significativamente diversa da determinação de quais as ações que correm nos tribunais.
p) Ou seja, mesmo fazendo uma aplicação literalíssima da remissão do art.º 84.º, n.º 3 do EOSAE teríamos como conclusão, no que tange à competência em razão da matéria, o mesmíssimo resultado, já que o âmbito e objeto do CPC não visam definir a competência, em razão da matéria, das acções que decorrem nos tribunais judiciais.
q) A jurisprudência dos nossos tribunais superiores, em consonância com o que resulta da doutrina, tem sido clara na conclusão de que este tipo de litígios está sujeito à ordem jurisdicional dos tribunais administrativos.
r) Entre outros, os seguintes arestos:
(i) Acórdão do Tribunal dos Conflitos de 20.09.2012, Proc. n.º 07/12;
(ii) Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 16.01.2018, Proc. n.º 6611/17.8T8CBR.C2;
(iii) Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 28.03.2019, Proc. n.º 19570/17.8T8LSB.L1-6;
(iv) Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 09.03.2017, Proc. n.º 17398/15.9T8LRS.L1-2.

a) Em suma, são competentes para dirimir quaisquer questões, entre ordens profissionais e respetivos associados, os tribunais administrativos e fiscais, por clara determinação legal da Constituição (art.º 212.º, n.º 3 da CRP) e da lei ordinária [alínea n) do n.º 1 do art.º 4.º do ETAF], aqui se incluindo a tramitação da presente ação executiva.
b) Devem por isso improceder todas as conclusões do recurso da exequente.»

Notificada para se pronunciar sobre a questão da inadmissibilidade do recurso, a exequente concluiu a sua resposta requerendo que a questão da admissibilidade do recurso fosse decidida “da forma que melhor acautelar os interesses e direitos das partes”

Pelo despacho de 5 de Janeiro de 2021, a relatora no Tribunal da Relação de Lisboa decidiu não admitir o recurso, por incompetência do Supremo Tribunal de Justiça; decidiu ainda não haver que remeter o recurso para o Tribunal dos Conflitos, “desde logo porque o acórdão que se pretende impugnar já havia transitado em julgado quando veio à apreciação da sua admissão”.
A exequente reclamou para o Tribunal dos Conflitos, invocando o disposto no artigo 643.º do Código de Processo Civil (reclamação por não admissão do recurso). Sustentou, em síntese, que o recurso devia ser convolado para recurso para o Tribunal dos Conflitos, de acordo com os artigos 6º (dever de gestão processual) e 193.º, n.º 3, do mesmo Código (correcção da via processual erradamente utilizada).
A reclamação foi deferida, tendo sido requisitado o processo principal ao tribunal recorrido.
O executado veio requerer a junção do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido no processo n.º 9919/19.4T8LSB.L1.S1, proferido “no contexto de execução idêntica à presente”.
O processo foi enviado ao Tribunal dos Conflitos e o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça proferiu o despacho previsto no artigo 18.º da Lei n.º 91/2019, de 4 de Setembro.
Notificado para o efeito, o Ministério Público pronunciou-se no sentido de dever ser confirmado o acórdão recorrido, por se tratar de uma execução da competência dos tribunais administrativos e fiscais, em particular, do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa.

3. Os factos relevantes constam do relatório.
Estando em causa a questão de competência que foi decidida no acórdão deste Tribunal dos Conflitos de 24 de Fevereiro de 2021, proferido no processo n.º 9919/19.4T8LSB.L1.S1, segue-se o referido acórdão, que se transcreve.
Está apenas em causa determinar se a execução de que se trata é da competência dos Tribunais Judicias – que, no conjunto do sistema judiciário, têm competência residual (n.º 1 do artigo 211º da Constituição e n.º 1 do artigo 40º da Lei de Organização do Sistema Judiciário, a Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto) –, como sustenta a recorrente, ou dos Tribunais Administrativos e Fiscais, cuja jurisdição é delimitada pelo n.º 3 do artigo 212º da Constituição e pelo artigo 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, como entende o recorrido e se decidiu no acórdão recorrido.
Tendo em conta que a execução foi instaurada em Maio de 2019, a versão do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais a considerar é a anterior à entrada em vigor da Lei n.º 114/2019, de 12 de Setembro, relevando a que resultou das alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 2 de Outubro.
O sentido geral dessas alterações encontra-se claramente exposto na Exposição de Motivos que acompanhou a Proposta de Lei n.º 331/XII, da qual viria a resultar a Lei n.º 100/2015, de 19 de Agosto, que autorizou o Governo a alterar, entre outros diplomas, o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais: “No domínio das alterações introduzidas ao Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), a inovação mais significativa incide sobre a definição do âmbito da jurisdição administrativa, no artigo 4.º. Com efeito, a partir do entendimento de que o quadro legislativo deve evoluir no sentido de atribuir aos tribunais administrativos a competência para julgar os litígios que, pela sua natureza, têm por objeto verdadeiras relações jurídico-administrativas, mas também numa perspetiva equilibrada, que salvaguarde ponderosas razões de ordem prática (…)”. É com esta intenção que deve ser interpretado o acrescentamento da al. o) ao n.º 1 do artigo 4º do Estatuto – “Compete à jurisdição administrativa e Fiscal a apreciação de litígios que tenham por objecto questões relativas a 1. (…) o) Relações jurídicas administrativas e Fiscais que não digam respeito às matérias previstas nas alíneas anteriores”.
Está em causa uma execução baseada numa Certidão de Dívida emitida pelo Conselho Geral da Ordem dos Solicitadores e Agentes de Execução, que constitui o título executivo, no qual se atesta que o executado “não procedeu ao pagamento das facturas” relativas às “taxas liquidadas a título de permilagem sobre os valores recebidos no âmbito das suas funções de Agente de Execução, e devidas a título de Caixa de Compensações” da referida Ordem – cfr. n.º 4 do artigo 84.º do Estatuto da Ordem dos Solicitadores e Agentes de Execução, aprovado pela Lei n.º 154/2015, de 14 de Setembro.
Não resulta do Estatuto da Ordem dos Solicitadores e Agentes de Execução se uma execução instaurada pela Ordem contra um seu associado, baseada num título executivo extra-judicial emanado da própria Ordem, no qual se atesta uma dívida de contribuições devidas à Ordem, se incluiu ou não no âmbito da jurisdição administrativa e fiscal; nem tão pouco da Lei n.º 2/2013, de 10 de Janeiro, que estabelece o regime jurídico de criação, organização e funcionamento das associações públicas profissionais.
Decorre, todavia, do disposto no n.º 5 do artigo 157.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos que as execuções contra particulares, baseadas em títulos executivos (que não sejam sentenças) “produzidos no âmbito de relações jurídico-administrativas que careçam de execução jurisdicional, correm nos tribunais administrativos, mas, na ausência de legislação especial, regem-se pelo disposto na lei processual civil”. O n.º 3 do artigo 84.º dos Estatutos da Ordem, ao remeter para “as regras do Código de Processo Civil” a “cobrança coerciva de taxas ou outras quantias devidas à Ordem”, apenas repete esta regra para as execuções assentes em títulos executivos extrajudiciais emitidos “no âmbito de relações jurídico-administrativas”; desta definição das regras aplicáveis à execução nada resulta quanto à determinação da jurisdição competente.
Cumpre, portanto, determinar se está em causa um litígio cujo objecto respeita a uma relação jurídica administrativa entre a Ordem e os seus associados, condição necessária para que o litígio pertença à jurisdição administrativa e fiscal (artigo 1.º e al. o) do n.º 1 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais) e seja da competência dos tribunais administrativos (n.º 5 do artigo 157.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos).

4. A Ordem dos Solicitadores e Agentes de Execução é expressamente qualificada por lei como uma pessoa colectiva pública (n.º 2 do artigo 2.º dos Estatutos), de natureza associativa, representativa dos solicitadores e agentes de execução (n.º 1 do mesmo artigo 1.º). É uma associação pública profissional, na acepção do artigo 2.º da Lei n.º 2/2013.
Sempre cumpriria, aliás, os requisitos exigidos para se ter como pessoa colectiva pública: é criada por lei, prossegue interesses públicos (cfr. o artigo 3.º do Estatuto) e as competências dos seus órgãos são de exercício necessário, estando-lhe cometido o exercício de poderes públicos (cfr. novamente o n.º 2 do artigo 1.º do Estatuto) – cfr. Vital Moreira, Administração Autónoma e Associação Autónoma e Associação, Coimbra, 1997, pág. 476 e segs. e 485 e segs. Referindo a natureza dualista das Associações Públicas, diz a págs. 490: “(…) estão sujeitos ao direito público pelo menos os aspectos que integram a vida institucional da corporação (…) Cabem aí nomeadamente os seguintes aspectos: (…) a função certificativa, a função normativa, a fixação de tarifas e honorários ”.
Ora o presente litígio desenrola-se entre a Ordem e um particular no âmbito de relações jurídicas administrativas, ou seja, de relações disciplinadas por normas de Direito Administrativo – o Estatuto da Ordem dos Solicitadores e Agentes de Execução e os regulamentos que definem a “forma de cálculo, liquidação e pagamento” das “receitas da Caixa de Compensações” (ponto 7. do requerimento executivo, que identifica os regulamentos pertinentes). Como escreve Vieira de Andrade (A Justiça Administrativa – Lições”, 17ª Edição, Almedina 2019, pág. 47), «A consideração da dimensão substancial revela-se na medida em que a justiça administrativa tem, por determinação constitucional, uma matéria própria: integra os processos “que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes de relações jurídicas administrativas.
Esta noção de “relação jurídica administrativa”, para efeitos de delimitação do âmbito material da jurisdição administrativa, deve abranger a generalidade das relações jurídicas externas ou intersubjectivas de carácter administrativo, seja as que se estabeleçam entre os particulares e os entes administrativos, seja as que ocorram entre sujeitos administrativos”.
O mesmo entendimento se pode ver, a título de exemplo, no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 28 de Outubro de 2009, www.dgsi.pt, proc. 0484/09: “III - Para efeito de inclusão no contencioso administrativo, devem considerar-se relações jurídicas administrativas externas ou interpessoais: a) as relações jurídicas entre a Administração e os particulares, incluindo: i) as relações entre as organizações administrativas e os cidadãos (ditas «relações gerais de direito administrativo»), mas também; ii) as relações entre as organizações administrativas e os membros, utentes ou pessoas funcionalmente ligados a essas organizações (as chamadas «relações fundamentais» no contexto das «relações especiais de direito administrativo») e; iii) as relações entre entes que actuem em substituição de órgãos da Administração (no contexto do exercício privado de poderes públicos, por exemplo, os tradicionais concessionários, capitães de navios ou de aeronaves, federações de utilidade pública desportiva, a que se juntam hoje múltiplas entidades credenciadas para o exercício de funções de autoridade) e os particulares; b) as relações jurídicas administrativas, incluindo: i) as relações entre entes públicos administrativos, mas também,; ii) as relações jurídicas entre entes administrativos e outros entes que actuem em substituição de órgãos da Administração, e ainda; iii) certas relações jurídicas entre órgãos de diferentes entes públicos (quando a circunstância de se tratar de órgãos de pessoas colectivas distintas puder ser considerada decisiva ou dominante para a caracterização da relação, como, por exemplo, no caso da delegação de atribuições.” (transcrição do ponto III do sumário), ou no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26 de Março de 2019, www.dgsi.pt, processo n.º 2468/15.1T8CHV-A.G1.S1: “Do exposto, pode concluir-se, na senda de Gomes Canotilho e Vital Moreira, que para podermos afirmar que estamos ante uma relação jurídica administrativa temos de isolar dois elementos: (i) por um lado, um dos sujeitos há-de ser uma entidade pública ou se for privada deve atuar como se fosse pública; e (ii) por outro lado, os direitos e os deveres que constituem a relação hão-de emergir de normas legais de direito administrativo ou referir-se ao âmbito substancial da própria função administrativa. Será, pois, à luz do conceito de relação administrativa acima delineado que as diversas alíneas do artigo 4.º do ETAF devem ser lidas e interpretadas, posto que, conforme se deixou dito, face aos artigos 212.º, n.º 3, da CRP, e 1.º, n.º 1, do referido Estatuto, essencial para que a competência seja deferida aos tribunais administrativos é que o litígio se insira no âmbito de uma relação dessa natureza, o mesmo é dizer numa relação onde a Administração é, típica ou nuclearmente, dotada de poderes de autoridade para cumprimento das suas principais tarefas de realização do interesse público”.
A presente execução tem por objecto a cobrança coerciva pela Ordem de contribuições a que os associados estão obrigados por virtude de normas administrativas que as impõem e tem por base a liquidação das quantias que a Ordem considera estarem em falta. Está em causa o exercício de poderes públicos, traduzido na prática de “actos administrativos necessários ao desempenho das suas funções” e na aprovação de regulamentos exigidos pela prossecução das atribuições que lhe são cometidas (cfr. ainda o n.º 1 do artigo 4.º da Lei n.º 2/2013).

5. A presente execução corresponde assim a um litígio que respeita a “relações jurídicas administrativas” e é, por isso, do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal (al. o) do n.º 1 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais) e, dentro desta jurisdição, da competência dos tribunais administrativos (n.º 5 do artigo 157.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.
O recurso não pode, pois, ter provimento.

Nos termos do disposto no n.º 5 do artigo 14.º e no n. º 3 do artigo 18.º da Lei n.º 91/2019, de 4 de Setembro, especifica-se que é competente o Juízo Administrativo Comum do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa (artigos 9.º e 16.º, n.º 1, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 174/2019, de 13 de Dezembro, artigo 1.º da Portaria n.º 121/2020, de 22 de Maio).

6. Assim, decide-se:
a) Negar provimento ao recurso;
b) Determinar que é competente para a presente execução o Juízo Administrativo Comum do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa.

Sem custas (n.º 2 do artigo 5.º da Lei n.º 91/2019, de 4 de Setembro).

A relatora atesta que a adjunta, Senhora Vice-Presidente do STA, Conselheira Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa, votou favoravelmente este acórdão, não o assinando porque a sessão de julgamento decorreu em videoconferência.

Lisboa, 13 de Setembro de 2021

Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Henrique Araújo