Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:01/03
Data do Acordão:07/08/2003
Tribunal:CONFLITOS
Relator:MANUEL DE SIMAS SANTOS
Descritores:COMPETÊNCIA DOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS.
CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS.
MÉDICO.
MATERNIDADE JÚLIO DINIZ.
FINS DE IMEDIATA UTILIDADE PÚBLICA.
Sumário:I - A determinação do tribunal materialmente competente para o conhecimento da pretensão deduzida pelo autor ou requerente deve partir do teor desta pretensão e dos fundamentos em que se estriba, sendo, para este efeito, irrelevante o juízo de prognose que se possa fazer relativamente à viabilidade da mesma (por se tratar de questão atinente ao mérito da pretensão), mas sendo igualmente certo que o tribunal não está vinculado às qualificações jurídicas efectuadas pelo requerente ou autor.
II - Perante a cláusula aberta de definição de contrato administrativo constante, primeiro, do art. 9º do ETAF, e, depois, do art. 178º do CPA, o que é agora decisivo é que através do contrato se constitua, modifique ou extinga uma relação jurídica administrativa e que, no que aos contratos de prestação de serviços concerne, estes sejam celebrados "para fins de imediata utilidade pública".
III - No presente caso, estamos perante contrato em que uma das partes é a Administração e a outra se vincula a exercer típicas actividades administrativas, correspondentes ao conteúdo funcional de uma determinada categoria de uma carreira da função pública, exercida por esta antes da sua aposentação (médica numa Maternidade Pública).
Nº Convencional:JSTA00062145
Nº do Documento:SAC2003070801
Data de Entrada:01/08/2003
Recorrente:A... NO CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO ENTRE A 1ª VARA CÍVEL DA COMARCA DO PORTO E O TAC DO PORTO
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC PRE CONFLITO.
Objecto:AC RP PROC847/2002 DE 2002/07/08.
Decisão:NEGA PROVIMENTO.
Área Temática 1:DIR ADM CONT - CONTRATO.
Área Temática 2:DIR JUDIC - ORG COMP TRIB.
Legislação Nacional:CONST ART20 N1 ART64 ART212 N3.
ETAF84 ART3 ART51 N1 G ART9 N1 N2.
LOFTJ99 ART18 ART77.
CPA91 ART178.
Jurisprudência Nacional:AC STJ PROC709/01 DE 2002/02/20.; AC CONFLITOS PROC6/02 DE 2003/02/05.
Referência a Doutrina:MANUEL DE ANDRADE NOÇÕES ELEMENTARES DE PROCESSO CIVIL 1979 PAG91.
SÉRVULO CORREIA LEGALIDADE E AUTONOMIA CONTRATUAL NOS CONTRATOS ADMINISTRATIVOS PAG775.
Aditamento:
Texto Integral: Tribunal de Conflitos
I
1.1.
No Tribunal Civil da Comarca do Porto intentou A... acção ordinária contra a "B...", pedindo a sua condenação no pagamento da quantia de 18.395.660$00, acrescida dos juros de moratórios vincendos até efectivo e integral pagamento, invocando para tanto o incumprimento de um contrato de prestação de serviços de natureza privada com a R. celebrado e reivindicando a diferença entre as remunerações pagas e as efectivamente contratadas e respectivos juros de mora.
Contestou a R. invocando a incompetência absoluta do tribunal em razão da matéria (a competência, para a causa pertence aos tribunais administrativos), e reclamando a improcedência da acção (cumpriu o contrato administrativo celebrado com a A.).
Na réplica, a A. pugnou pela improcedência dessa excepção de incompetência e reiterou o pedido.
A A., convidada, apresentou nova petição em que confirmou toda a alegação da petição inicial, acrescentando factos no sentido de melhor definir o contrato alegadamente celebrado com a R, ao que se seguiu nova contestação e nova réplica.
Foi então, por despacho, julgada procedente a excepção de incompetência material deduzida e absolvida a R. da instância.
1.2.
Recorreu a A. para a Relação do Porto, concluindo que não se está perante um contrato administrativo, mas sim um contrato de prestação de serviços do que resulta a competência material do tribunal da 1ª Instância (artº 4º, nº 1, alínea f) do ETAF e artºs 18 a 77, nº 1, alínea a) da Lei 3/99, 13-1, devendo a decisão recorrida ser revogada e declarar-se a competência material da 1.ª instância, com baixa dos autos para aí prosseguirem os seus termos até final.
II
2.1.
Por acórdão de 8-7-2002, a Relação do Porto (Agravo n. º 847/2002) julgou improcedente o recurso e confirmou a decisão recorrida, concluindo que o contrato alegado pela A. tem natureza administrativa, pelo que são os tribunais administrativos os competentes para conhecer da causa, estando pois correcta aquela decisão recorrida de procedência da invocada excepção de incompetência absoluta do Tribunal em razões de matéria, e consequente absolvição da R. da instância - artºs 101, 102, 103 e 105, nº 1 do CPC.
2.2.
Ainda inconformada, recorreu a A. para este Tribunal de Conflitos, concluindo na sua alegação:
1ª Dos documentos 2 e 4 juntos à petição, resulta que, em 11.01.1995, a agravada autorizou a prestação de serviços na urgência na área de anestesiologia à médica agravante e que a relação entre as partes não foi objecto de contrato escrito;
2ª À data da contratação a agravante era funcionária pública aposentada tendo-se o contrato entre as partes estabelecido nos termos alegados nos artigos 1º a 8º, 10º e 14º a 24º da petição;
3ª A noção de contrato administrativo tal como o definem o artigo 9º do ETAF e o artigo 178º do CPA, implica um acordo de vontades, portanto bilateral, tendo a agravada alegado que o conteúdo do contrato foi definido unilateralmente por ela (cfr. artº 3º da contestação) e, também por ela, totalmente modelado (cfr. artº 6º da contestação), desde logo coloca tal contrato da essência da definição do conceito legal do contrato administrativo;
4ª Para que a relação entre as partes configurasse um contrato administrativo, necessário seria a existência de uma relação jurídica administrativa para fins de imediata utilidade pública, de tal modo que o fim de interesse público se encontrasse compreendido no objecto do contrato, fazendo parte integrante dele, sendo certo que a prática de actos médicos tanto pode servir um fim de interesse público como um fim de interesse privado;
5ª Por outro lado, necessário seria também que entre as partes houvesse uma associação duradoura e estável da agravante (particular) à realização do fim administrativo prosseguido pela agravada, associação e vinculação que não se verificam no caso dos autos, uma vez que a agravante apenas se comprometeu com a agravada a fazer-lhe unicamente as prestações solicitadas no exercício da sua actividade profissional livre, o que não retirou à profissão liberal (médica anestesista) o seu carácter, nem conferiu à agravante o carácter de agente administrativa;
6ª A relação entre as partes não configura um contrato administrativo de provimento porquanto este estaria sujeito a formalidades que, claramente, não sucederam "in casu", nomeadamente a obrigatoriedade da sua redução a escrito, a celebração pelo prazo de um ano, passível de renovação até três anos, a submissão ao visto do Tribunal de Contas, a publicação no DR e a tomada de posse (artigo 9º DL 33/80 e DL 49 397 de 24.11.69);
7ª A relação entre as partes também não pode consubstanciar-se num "contrato de tarefa" tal como o define o artigo 17º do DL 41/84, 03.02., que apenas permite a celebração de tais contratos, por escrito e em situações muito excepcionais e “caracteriza-se por ter como objecto a execução de trabalhos específicos, de natureza excepcional, sem subordinação hierárquica, não podendo exceder o termo de prazo contratual inicialmente previsto”;
8ª Acresce que, mesmo desconsiderando as conclusões 6ª e 7ª, os contratos de tarefa e avença não confeririam ao particular outorgante a qualidade de agente (artº 6º DL 41/84, 03.02.) ;
9ª A relação jurídica de emprego na função pública cessa com a desligação do serviço por efeito de aposentação (artº 28º, 1, DL 427/89, 07.12.);
10ª À data do início do contrato a agravada conhecia que a agravante era aposentada da função pública, o que, nos termos dos artigos 78º e 79º do Estatuto da Aposentação (DL 498/72, 09.12.), gera a incompatibilidade para o exercício de funções públicas;
11ª Das anteriores conclusões resulta que na relação contratual entre as partes não foram cumpridas as formalidades legais inerentes à criação de um vínculo de natureza administrativa, quer seja por contrato administrativo de provimento, quer seja como contrato de tarefa ou de avença, que seriam os únicos enquadramentos juridicamente possíveis em face da aposentação da agravante e do disposto nos artigos 78º e 79º do Estatuto da Aposentação, sendo certo que, mesmo que a relação contratual entre as partes configurasse um contrato de tarefa e avença, ainda assim tal configuração não teria conferido à particular outorgante a qualidade de agente (artº 6º DL 41/84, 03.02);
12ª Entre agravante e agravada estipulou-se um contrato de prestação de serviços (não de trabalho por virtude da ausência de subordinação) que dura desde 11.01.1995, oneroso, de natureza privada, nos termos disposto no artigo 1154º CCivil;
13ª O entendimento que defendemos encontra sustentação no Acórdão nº 1/2001, in DR I série A, 112, 15.05.2002;
14ª Do exposto resulta a competência material do tribunal comum (artº 4º, 1, f) do ETAF e artºs 18º e 77º, 1. a) da Lei 3/99, 13.01.);
15ª Foram violados os comandos insertos nas disposições legais indicadas.
Termos em que deve ser dado provimento ao agravo, revogando-se a decisão proferida e declarando-se a competência material do tribunal comum, devendo os autos baixar à 1ª instância para nela prosseguirem os seus termos até final.
III
Neste tribunal, teve vista o Ministério Público que emitiu parecer no sentido de ser mantido o acórdão recorrido que considerou competentes para a acção os tribunais administrativos.
Cumpridas as formalidades legais, teve lugar a conferência, pelo que cumpre conhecer e decidir.
IV
E conhecendo.
4.1.
A questão colocada no presente recurso consiste em saber se para conhecer da presente causa são competentes os tribunais administrativos, se os tribunais comuns, sendo certo que na decisão recorrida se entendeu que são competentes do ponto de vista material para conhecer da causa os Tribunais administrativos.
Como vem sendo entendido e também o foi pela decisão recorrida, a determinação do tribunal materialmente competente para o conhecimento da pretensão deduzida pelo autor ou requerente deve partir do teor desta pretensão e dos fundamentos em que se estriba, sendo, para este efeito, irrelevante o juízo de prognose que se possa fazer relativamente à viabilidade da mesma (por se tratar de questão atinente ao mérito da pretensão), mas sendo igualmente certo que o tribunal não está vinculado às qualificações jurídicas efectuadas pelo requerente ou autor (cfr. Acs. do STJ (cfr. Ac. do S.T.J. de 9-2-94, Acs. do STJ, I, 288 e de 19-2-98, Acs. do STJ, I, 263 e de 20.2.2002, proc. n.º 709/01 e Ac. do Tribunal de Conflitos de 5-2-2003, Conflito n.º 6/02).
O termo decisivo para efeitos de fixação da competência em razão da matéria deve ser encontrado na estruturação da causa, apresentada pela parte que recorre ao Tribunal e que se traduz no pedido e seus fundamentos.
Como se refere no falado acórdão de 5-2-2003 do Tribunal de Conflitos (Conflito n.º 6/02), a jurisdição dos tribunais administrativos e fiscais é genericamente definida pelo n.º 3 do art. 212.º da C.R.P., em que se estabelece que «compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais», norma esta que adoptou, no essencial, a regra que já constava do art. 3.º do ETAF.
A jurisdição dos tribunais judiciais é constitucionalmente definida por exclusão, sendo-lhe atribuída em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais (art. 211.º, n.º 1, da CRP) (Disposição esta que é reproduzida, na sua essência, no art. 18.º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (Lei 3/99, de 13 de Janeiro).
No entanto, a competência dos tribunais é aferida em função dos termos em que a acção é proposta, «seja quanto aos seus elementos objectivos (natureza da providência solicitada ou do direito para o qual se pretende a tutela judiciária, facto ou acto donde teria resultado esse direito, bens pleiteados, etc.), seja quanto aos seus elementos subjectivos (identidade das partes). A competência do tribunal – ensina REDENTI – "afere-se pelo quid disputatum (quid decidendum, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum)", é o que tradicionalmente se costuma exprimir dizendo que a competência se determina pelo pedido do Autor. E o que está certo para os elementos objectivos da acção está certo ainda para a pessoa dos litigantes.»(MANUEL DE ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, página 91.)
«A competência do tribunal não depende, pois, da legitimidade das partes nem da procedência da acção. É ponto a resolver de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do Autor (compreendidos aí os respectivos fundamentos), não importando averiguar quais deviam ser as partes e os termos dessa pretensão» (Obra e local citados.).
Esta posição está em sintonia com a essência do direito dos cidadãos acederem aos tribunais para verem apreciados os seus direitos (art. 20.º, n.º 1, da C.R.P.), que reclama que os particulares possam ver apreciados por um órgão jurisdicional os direitos que entendam arrogar-se.
Aquele entendimento doutrinal tem vindo a ser aceite, como já vimos, no essencial, pela jurisprudência (Neste sentido, cita o Ac. de 5-2-03 do T. Conflitos, os seguintes acórdãos: do STJ, de 6-6-78, BMJ 278-122, de 11-5-93, recurso n.º 83452; de 20-10-93, ADSTA, 386-227; de 9-2-94, Acs do STJ II, 1, 288; de 15-5-96, recurso nº 4398; de 19-2-98, recurso nº 117/97; de 9-2-99, recurso nº 1250/98; de 21-4-99, recurso n.º 373/98; do STA de 16-1-1992, recurso n.º 29125, Apênd. DR de 29-12-95, 211; de 8-7-1997, recurso n.º 41990, Apênd. DR de 12-8-2001, 5650; de 24-11-1998, Apênd. DR de 6-6-2002, 7364; de 23-3-1999, recurso n.º 43973, Apênd. DR de 12-7-2002, 2027; do T. de Conflitos, de 31-1-91, processo n.º 217; de 7-5-91, processo n.º 231; de 6-5-91, processo n.º 230; de 26-9-96, processo n.º 267 de 4-5-2000, processo n.º 346; de 27-2-2002, proferido no recurso n.º 371/02; de 11-7-2002, Apênd. DR de 24-8-2001, 59.) incluindo a deste Tribunal de Conflitos.
Assim, à face daquela doutrina e desta jurisprudência e das referidas normas delimitadoras da competência jurisdição administrativa e da dos tribunais judiciais, para decidir se incumbe aos tribunais administrativos ou aos "tribunais judiciais do trabalho o conhecimento da acção, importa caracterizar a relação estabelecida entre a Autora e a "B..." tal como é apresentada por aquele.
4.2.
Concordando com essa doutrina e jurisprudência, apreciar-se-á o caso dos autos, à face dos princípios indicados, atendendo à factualidade invocada pela A. na petição, designadamente aos factos constantes da nova petição apresentada a fls. 113 e seguintes procurando saber se, perante essa matéria de facto, são os tribunais comuns materialmente competentes para a acção instaurada por uma particular contra a B..., pessoa colectiva de direito público, se a relação contratual prefigurada, na petição consubstancia um contrato administrativo [sendo competente o Tribunal Administrativo de Círculo do Porto – art. 51.º, nº 1, al. g) do ETAF] ou um contrato de natureza civilista [sendo competente o Tribunal Civil do Porto – art.ºs 18.º e 77.º, nº 1 al. a) da Lei 3/99, de 13 de Janeiro].
Em causa está o invocado incumprimento pela R. de um contrato celebrado entre A. e A., não escrito e apelidado pela Autora de prestação de serviços.
De acordo com a versão da recorrente, ela desempenhou as funções na Ré de médica anestesista, como chefe de serviço, até à sua aposentação (31-1-1995) e manteve depois, mediante contrato verbal, o exercício das mesmas funções que até ali vinha desempenhando, emitindo os denominados "recibos verdes".
A R. incumbiu-a então da prática de actos médicos da especialidade de anestesista, a exercer nos seus serviços de urgência, com determinado salário, sem estar enquadrada na estrutura organigranica da R. não devendo obediência, nem reportando a nenhum superior hierárquico (maxime no que concerne ao exercício dos actos médicos de analista para que foi contratada), podendo faltar livremente (devendo, contudo, avisar a R. em caso de ausência previsível com a máxima antecedência possível, e sempre, que ausente por motivo imprevisto, de imediato) e tendo o direito de suspender a prestação de serviços durante 30 dias por ano, em período à sua escolha para efeito de gozo de férias, tendo a sua retribuição deixado de ser mensal para passar a ser por hora.
4.3.
Andou bem a Relação do Porto em negar provimento ao agravo e confirmar a decisão que julgada procedente a excepção de incompetência material deduzida e absolvida a R. da instância, por ser o alegado contrato de natureza administrativa?
«O contrato administrativo há-de definir-se em função da sua subordinação a um regime jurídico de direito administrativo: e serão administrativos ou contratos cujo regime jurídico seja traçado pelo direito administrativo; serão civis ou comerciais os contratos cujo regime jurídico seja traçado pelo direito civil ou comercial» (Freitas do Amaral, Direito Administrativo III, 1989.).
Considera-se como contrato administrativo, para efeitos de competência contenciosa – art. 9.º, n.º 1 do ETAF, o acordo de vontades pelo qual é constituída, modificada ou extinta uma relação jurídica de direito administrativo (ou de uma "relação jurídica administrativa" – art. 178.º do CPA): a que confere poderes de autoridade ou impõe restrição de interesse público à Administração perante os particulares, ou que atribui direitos ou impõe deveres públicos aos particulares perante a Administração.
A ausência de redução a escrito do contrato, cuja análise permitira determinar a existência de "cláusulas exorbitantes" indiciadoras de uma relação jurídica dessa natureza, dá maior relevo ao seu objecto, eventualmente completado pelo seu fim, como critério distintivo.
O contrato é administrativo se visar um fim de imediata utilidade pública ou se o seu objecto mediato respeita ao contrato da função administrativa traduzindo-se, em regra, em prestações referentes ao funcionamento de serviços públicos.
No caso, a actividade da A. ficou vinculada à regularidade e continuidade do serviço público de prestação de cuidados de saúde à população em geral, que a R. como, qualquer valência hospitalar, visa assegurar mediante o desenvolvimento de diversas actividades, como actividade médica, solidárias na realização daquele fim institucional.
Com efeito, a R. encarregou a A. de desempenhar funções próprias e inerentes à sua função de prestador de serviços públicos de saúde, numa associação duradoura e especial do particular à realização do fim administrativo: exercitar atribuições que visam fim de imediato utilidade pública, pois incumbe ao Estado assegurar aos cidadãos a protecção da saúde – art. 64.º da Constituição.
Deve ter-se também presente que a A. continuou a prestar os mesmos serviços que antes vinha prestando como funcionária pública, subordinada, pois, às mesmas directrizes da Administração do Hospital que anteriormente regiam a sua actividade. Como se refere no douto acórdão recorrido, «a agravante não passou, segundo a factualidade alegada, a exercer clínica privada no hospital público, pelo que ocorre no a supra falada vinculação».
Subordinação que não é afectada pelo não enquadramento da A. na estrutura organigranica da R., pois seguramente só se pode interpretar essa afirmação como significando que a A. não pertence aos quadros da R, nem pela alegação de que podia faltar livremente ao serviço, pois logo são referidas as consequências dessas faltas e a necessidades de comunicar.
Por outro lado, já relevam do mérito da causa, não devendo ser equacionadas no domínio em que nos colocamos, questões relacionadas como a ausência de forma, a violação do princípio da legalidade na contratação, a publicação, a submissão ao visto do Tribunal de Contas, a ausência de poderes da R. para celebrar o contrato, a eventual incompatibilidade inerente a situação de aposentação da A.
Assim, e em síntese, elementos como a qualidade da R., o objecto mediato do contrato e a finalidade prosseguida, prossecução directa de um fim de interesse público, consubstanciado na participação da A. na actividade de interesse público prosseguida pela R., permitem qualificá-lo como contrato administrativo. E não se deve esquecer que a colaboração da A. na prestação do serviço de saúde é assegurada mediante prestações de conteúdo material idêntico às que efectuava antes da aposentação, enquanto funcionária ao serviço da R.
Como refere a Ex.ma Magistrada do Ministério Público no seu douto parecer, «o contrato celebrado se integra na modalidade de "contratos de colaboração", segundo a classificação dos contratos administrativos adoptada pelo Prof. Sérvulo Correia e que são "aqueles pelos quais uma das partes se obriga a prestar à outra uma colaboração temporária no desempenho das atribuições administrativas desta, mediante remuneração" (Legalidade e Autonomia Contratual nos Contratos Administrativos, pag. 775.), aos quais respeita o elenco de contratos administrativos nominados, que a título exemplificativo consta do nº 2 do artigo 9º do ETAF e do nº 2 do artigo 178º do CPA. O contrato celebrado entre a A. e a R. insere-se, a meu ver, nesta previsão, enquanto contrato de prestação de serviços para fins de imediata utilidade pública.»
Não merece, assim, censura a decisão recorrida.
V
Termos em que acordam neste Tribunal de Conflitos em confirmar o acórdão recorrido e declarar competente o Tribunal Administrativo de Círculo do Porto para o conhecimento da acção.
Sem custas.
Lisboa, 8 de Julho de 2003
Manuel de Simas Santos – Relator – Reis Figueira – João Magalhães – Rosendo José – Vítor Gomes – Santos Botelho