Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:020/22
Data do Acordão:02/15/2023
Tribunal:CONFLITOS
Relator:TERESA DE SOUSA
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO.
CONCESSÃO DE JAZIGO.
TRIBUNAIS JUDICIAIS
Sumário:I – Pedindo os autores da presente acção que lhes seja reconhecida a titularidade da concessão do jazigo e que o réu seja condenado a reconhecê-lo e a abster-se de perturbar o seu exercício, bem como a devolver as chaves necessária ao acesso às urnas; invocam o alvará de concessão e as regras de sucessão.
II – O principal efeito prático-jurídico pretendido pelos autores desta acção – que se desenrola entre particulares – é a possibilidade de acesso ao jazigo, sem que o réu a perturbe ou impeça.
III – Interpretando os termos da acção, não pode concluir-se que se possa fundar a competência dos tribunais administrativos em qualquer das alíneas do nº 1 do artigo 4º do ETAF, sendo certo que seria condição de atribuição da competência à jurisdição administrativa que o litígio se desenrolasse no âmbito de uma relação administrativa, o que não é o caso.
IV – Assim, a apreciação da acção cabe aos tribunais judiciais.
Nº Convencional:JSTA000P30591
Nº do Documento:SAC20230215020
Data de Entrada:05/31/2022
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE BRAGANÇA, JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE VILA FLÔR E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE MIRANDELA UO
AUTOR: AA E OUTROS
RÉU: BB
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Conflito nº: 20/22

Acordam no Tribunal dos Conflitos

1. Relatório
CC e esposa AA e DD, melhor identificados nos autos, intentaram contra BB no Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela (TAF de Mirandela), acção declarativa (de apreciação/condenação), acção de reivindicação em processo comum, pedindo que se declare que os Autores são os únicos concessionários, os titulares inscritos no Alvará de concessão do jazigo sito no Cemitério de Castanheiro, freguesia do concelho de Carrazeda de Ansiães emitido pela Junta de Freguesia de Castanheiro em 21.09.1994, bem como os seus herdeiros e abstendo-se o Réu da ocupação e esbulho a que procedeu, bem como condenar o mesmo a uma indemnização de €3.000,00.

Nesta acção administrativa, com o nº 122/22.7BEMDL, por despacho liminar de 07.04.2022, o TAF de Mirandela entendendo que a matéria invocada na acção estava excluída da competência dos Tribunais Administrativos, atento o disposto no art. 4º, nº 1, alínea o) do ETAF, tendo ainda em conta o disposto no art. 37º, nºs 1, alíneas a) a n) e 3 do CPTA, decidiu o seguinte:
Ora, o objecto da presente ação não se inscreve em nenhuma das hipóteses acima enunciadas nem em qualquer forma de processo urgente ou especial, já que está em causa uma relação jurídico-civil, como flui do acima exposto.
E ainda que incidentalmente se possa ter que apreciar um contrato administrativo, designadamente o contrato de concessão do referido jazigo, para aferir da respetiva titularidade invocada pelos Autores, essa questão é instrumental em relação à sua pretensão e não envolve a Junta de Freguesia.
Donde, dúvidas não restam quanto à incompetência material deste Tribunal para apreciar e decidir o presente processo cautelar (sic), conduzindo ao seu indeferimento liminar. (…)
Nestes termos, declaro o Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela incompetente em razão da matéria para apreciar e decidir a presente ação, indeferindo liminarmente a petição inicial”.

Notificado desta decisão vieram os Autores pedir a remessa dos autos ao Presidente do Tribunal dos Conflitos, nos termos do disposto no art. 10º, nº 1 e 2 da Lei nº 91/2019, de 4/9, juntando cópia da sentença proferida na Acção de Processo Comum nº 42/20.0T8VFL, proferida em 25.02.2022, pelo Juízo de Competência Genérica de Vila Flor, do Tribunal Judicial da Comarca de Bragança.
Este requerimento veio a ser deferido por despacho do TAF de Mirandela de 27.05.2022, sendo ordenada a remessa dos autos à Exma. Senhora Presidente do Supremo Tribunal Administrativo para efeitos de resolução do conflito negativo de jurisdição - cfr. fls. 32 e verso.

Na referida Acção de Processo Comum nº 42/20.0T8VFL, intentada pelos aqui Autores contra o mesmo Réu formularam aqueles o seguinte pedido “declarando-se únicos concessionários os titulares inscritos no Alvará bem como os seus herdeiros e abstendo-se o réu da ocupação e esbulho a que procedeu bem como condenar o réu a uma indemnização de 3000,00€ (três mil euros) e respeitar a memória dos falecidos aí sepultados”.
Foi proferida sentença em 25.02.2022 – cuja cópia consta dos autos a fls. 24 a 27 -, onde foi julgada procedente a excepção dilatória de incompetência material dos Tribunais Judiciais, absolvendo-se o réu, BB, da instância.

Neste Tribunal dos Conflitos as partes foram notificadas para efeitos do disposto no nº 3 do art. 11º da Lei n.º 91/2019.
A Exma. Procurador Geral Adjunta, emitiu parecer, pronunciando-se no sentido de que a competência material para julgar a acção deverá ser atribuída aos tribunais administrativos, concretamente TAF de Mirandela.

2. Os Factos
Os factos relevantes para a decisão são os enunciados no Relatório.

3. O Direito
O presente Conflito Negativo de Jurisdição vem suscitado entre o Tribunal Judicial da Comarca de Bragança, Juízo de Competência Genérica de Vila Flor e o TAF de Mirandela.
Considerou o Juízo de Competência Genérica de Vila Flor, mormente, tendo em conta o disposto no art. 4º, nº 1, al. a) do ETAF, que: “Nos presentes autos, alegam os autores que são titulares de um alvará de concessão de um jazigo em cemitério público, pertencente à Junta de Freguesia de Castanheiro.
Os cemitérios constituem domínio público, permitindo a lei que as autarquias cedam a título vitalício parcelas daquele terreno a particulares, o que não significa que tal cedência constitua uma transferência definitiva de propriedade sobre o jazigo, uma vez que, os bens do domínio público, encontram-se, pela sua natureza, excluídos do comércio jurídico nos termos do artigo 202º, n.º 2 do Código Civil. Sobre tais parcelas existe cedência do gozo de um bem que integra o domínio público, o que significa que não pode existir nem posse nem a constituição de quaisquer outros direitos reais. (…)
Do alegado pelos autores resulta que o réu tem adotado comportamentos que perturbam o direito de gozo que aqueles alegam ter sobre o jazigo, direito de gozo esse legitimado por um alvará (documento exarado pela administração pública) e que, por isso, configura um direito real de natureza administrativa.”.
Assim, entendeu estar em causa uma relação jurídica administrativa, a existente entre os autores e o réu, “porquanto, em causa está a discussão de um direito real administrativo. Destarte, a competência para dirimir esta questão pertence aos tribunais administrativos e fiscais. – (vide em sentido idêntico decidiu o Tribunal dos Conflitos em acórdão proferido em 17-05-2015, processo 013/15, (…)”.

Por sua vez o TAF de Mirandela (no processo nº 122/22.7BEMDL) também se considerou incompetente em razão da matéria, nos termos acima indicados.

Vejamos.
Cabe aos tribunais judiciais a competência para julgar as causas «que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional» [arts. 211º, nº 1, da CRP, 64º do CPC e 40º, nº1, da Lei nº 62/2013, de 26/8 (LOSJ)], e aos tribunais administrativos e fiscais a competência para julgar as causas «emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais» [artigos 212º, nº 3, da CRP, 1º, nº 1, do ETAF].
A competência dos tribunais administrativos e fiscais está concretizada no art. 4º do ETAF (Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro, na redacção introduzida pela Lei nº 114/2019, de 12 de Setembro) com delimitação do “âmbito da jurisdição” mediante uma enunciação positiva (nºs 1 e 2) e negativa (nºs 3 e 4).
Tem sido reafirmado por este Tribunal, e constitui entendimento jurisprudencial e doutrinário pacífico, que a competência material do tribunal se afere em função do modo como o autor configura a acção e que a mesma se fixa no momento em que a mesma é proposta.
Como se afirmou no Ac. deste Tribunal de 01.10.2015, Proc. nº 08/14 “A competência é questão que se resolve de acordo com os termos da pretensão do Autor, aí compreendidos os respectivos fundamentos e a identidade das partes, não importando averiguar quais deviam ser os termos dessa pretensão, considerando a realidade fáctica efectivamente existente ou o correcto entendimento do regime jurídico aplicável. O Tribunal dos Conflitos tem reafirmado constantemente que o que releva, para o efeito do estabelecimento da competência, é o modo como o Autor estrutura a causa e exprime a sua pretensão em juízo”.
Analisados os termos e o teor da petição inicial constata-se estarmos perante um litígio no qual os autores pretendem que se declare serem “únicos concessionários os titulares inscritos no Alvará bem como os seus herdeiros e abstendo-se o réu da ocupação e esbulho a que procedeu”.
No caso dos autos, os Autores alegaram, em síntese, o seguinte:
- Os Autores são donos e legítimos titulares do jazigo sito no Cemitério de Castanheiro, a cuja compra procederam, e que foi titulado por um alvará emitido pela Junta de Freguesia de Castanheiro, concelho de Carrazeda de Ansiães, em 21.09.1994, constando desse alvará como titulares o autor CC e EE que faleceu no estado de divorciada, deixando como única e universal herdeira a sua filha, DD, sua única descendente.
- Há 25 anos que, ininterruptamente o jazigo sempre foi detido e fruído pelos autores, pois nele repousam os seus pais e sogros, à vista de toda a gente com conhecimento da generalidade dos vizinhos, sem oposição de ninguém, convencidos de que exercem direito que lhe é permitido e ignorando, desde sempre lesar direito alheio.
- O Réu que foi casado com a pré falecida EE e da qual se divorciou em 01.02.2011, e em consequência do que se procedeu a partilha, inventário do qual nunca constou aquele imóvel, pois o réu tinha consciência de que a concessionária era a ex-esposa do R., tendo esta concessão sido intuitu personae, para além de não se encontrar no jazigo qualquer familiar do mesmo.
- O Réu decidiu proceder à mudança de fechadura do mesmo jazigo, por várias vezes, inibindo a família directa dos de cujus, cujos corpos lá se encontram, fazendo finca pé de que o jazigo em questão é sua propriedade.
- A família já por diversas vezes o instou a proceder à entrega das mesmas chaves, coisa que nunca fez.
- Situação que tem desgastado a família dos mortos lá sepultados, aqui autores, não entendendo o porquê deste esbulho e deste desrespeito pelas suas memórias.
No recente acórdão deste Tribunal dos Conflitos, proferido em 31.01.2023, processo nº 3205/22.0T8MAI, respeitante a matéria em tudo semelhante à dos presentes autos, o qual merece a nossa inteira concordância, escreveu-se o seguinte:
«6. É sabido que os cemitérios públicos integram o domínio público das autarquias que os possuem e administram (cfr., apenas a título de exemplo, o acórdão do Tribunal dos Conflitos de 25 de Junho de 2020, www.dgsi.pt, proc. n.º 034/19, e a jurisprudência nele citada).
É igualmente sabido que a implantação de construções (sepulturas e jazigos) nesses terrenos, cujo uso privativo tenha sido concedido a particulares, mediante o correspondente alvará, cria uma sobreposição de direitos reais de diferente natureza, semelhante ao direito de superfície: privada, quanto à construção (direito de propriedade, como no caso a autora alega), pública, quanto ao direito decorrente da concessão de uso privativo, cujos termos são definidos pelo alvará.
Sendo controversa a titularidade do conjunto, pode naturalmente ser necessário ajuizar da validade do alvará, ou das condições e termos em que foi concedido o uso privativo da parcela de terreno que estiver em causa, uso esse que é pressuposto necessário da constituição do direito de propriedade sobre as construções nela edificadas; mas a controvérsia pode incidir sobre a modalidade de aquisição do conjunto – por exemplo, por sucessão mortis causa, como alega a autora, ou por compra, como sustenta a ré -, que será então a questão central da acção: tudo depende do pedido e da causa de pedir formulados pelo autor. Em qualquer dos casos, a competência do tribunal a quem caiba julgar a acção pode vir a ser estendida à apreciação de questões incidentais que, isoladamente consideradas, não lhe competiria conhecer (cfr. artigos 92.º do Código de Processo Civil e 15.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos) – aspecto considerado relevante, para efeitos de aferição da competência, quando houver controvérsia sobre a titularidade do jazigo, pelo acórdão do Tribunal dos Conflitos de 17 de Setembro de 2015, www.dgsi.pt, proc. n.º 013/15, bem como no parecer do Ministério Público apresentado na presente acção.
Saber se cabe à jurisdição administrativa e fiscal ou aos tribunais judiciais conhecer de uma acção na qual se discuta a titularidade do referido conjunto depende, como se disse já, dos termos em que deveria ter sido formulada (por exemplo, para assegurar a legitimidade das partes ou para ser julgada procedente) - , sendo certo que, como atrás se recordou já, os litígios só se encontram abrangidos no âmbito da jurisdição administrativa e fiscal se forem “emergentes de relações administrativas e fiscais” (n.º 3 do artigo 212.º da Constituição), como tal tendo de se interpretar “a enumeração contida no n.º 1 do artigo 4.º” do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (Vieira de Andrade, op. e loc. citados).
7. A autora desta acção pede que lhe seja reconhecida “a titularidade da concessão perpétua do direito real administrativo de uso privativo do jazigo” e que a ré seja condenada a reconhecê-lo e a abster-se de perturbar o seu exercício, bem como a devolver as chaves necessárias ao acesso às urnas; e invoca como causa de pedir a aquisição por sucessão mortis causa e os actos de perturbação já referidos. Invoca, simultaneamente, o alvará de concessão eas regras de sucessão legal.
Entende-se que o principal efeito prático-jurídico pretendido pela autora desta acção – que se desenrola entre particulares – é a possibilidade de acesso ao jazigo, sem que a ré o perturbe ou impeça.
Assim interpretados os termos da acção, não pode concluir-se que se possa fundar a competência dos tribunais administrativos em qualquer das alíneas do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, nomeadamente na al. a) do respectivo n.º 1. Citando de novo Vieira de Andrade, op. e loc. citados, “a tutela de direitos fundamentais e das outras posições jurídicas substantivas referidas na alínea a), só cabe aos tribunais administrativos no âmbito das relações de direito administrativo (…)”.
Dito por outra forma: sempre seria condição da atribuição de competência à jurisdição administrativa que o litígio entre autora e ré se desenrolasse no âmbito de uma relação administrativa, o que não é o caso.
8. Entende-se, assim, que a apreciação da presente acção cabe aos tribunais judiciais.»
É este também o caso nos presentes autos.
Com efeito, os Autores pedem que se declare serem “únicos concessionários os titulares inscritos no Alvará bem como os seus herdeiros” [no caso é titular inscrito no alvará o primeiro A. e a A. FF, sucessora mortis causa, enquanto única herdeira da outra concessionária, a falecida EE] e que o réu seja condenado a reconhecê-lo e a abster-se de perturbar o exercício do direito dos autores, bem como a devolver as chaves necessárias ao acesso ao jazigo; e invocam como causa de pedir a aquisição pelo alvará de concessão do direito real administrativo de uso do jazigo e a aquisição do direito por sucessão e os actos de perturbação referidos.
São, pois, de acordo com a jurisprudência que vimos de citar deste Tribunal dos Conflitos, os tribunais judiciais, os competentes para conhecer da acção.

Pelo exposto, acordam em julgar competente para apreciar a presente acção o Tribunal Judicial da Comarca de Bragança - Juízo de Competência Genérica de Vila Flor.
Sem custas.

Lisboa, 15 de Fevereiro de 2023. - Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa (relatora) – Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza.