Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:0713/19.3T8BJA.E1.S1
Data do Acordão:10/13/2021
Tribunal:CONFLITOS
Relator:MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Descritores:CONFLITO DE JURISDIÇÃO
Sumário:Cabe aos tribunais judiciais a apreciação dos pedidos de declaração de que entre o autor e a ré, pessoa colectiva pública de natureza associativa, vigorou um contrato de trabalho e foi ilícito o despedimento do autor, bem como a condenação da ré no pagamento das retribuições que considerada serem-lhe devidas.
Nº Convencional:JSTA000P28425
Nº do Documento:SAC202110130713
Recorrente:A.....
TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE BEJA – JUÍZO DO TRABALHO DE BEJA
TAF - TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE BEJA
Recorrido 1:CIMBAL – COMUNIDADE INTERMUNICIPAL BAIXO ALENTEJO
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Tribunal dos Conflitos


Acordam, no Tribunal dos Conflitos:


1. Em 9 de Maio de 2019, AA instaurou no Juízo do Trabalho de Beja, do Tribunal Judicial da comarca de Beja, contra CIMBAL – Comunidade Intermunicipal do Baixo Alentejo, uma acção na qual pediu que o tribunal declarasse
“que entre o Autor e Ré vigorou, no período compreendido entre 2 de Dezembro de 2010 e 31 de Janeiro de 2019, um contrato de trabalho;”
ser “ilícito o despedimento do Autor promovido pela Ré e, em consequência”, que a ré fosse condenada
“a pagar ao Autor as retribuições contabilizadas desde 26.02.2019 até ao trânsito em julgado da presente sentença, tendo por referência a retribuição mensal de € 2972,40 e ainda, desde a mesma data, as férias, subsídios de férias e de Natal, vencidos nesse mesmo período, contabilizados à mesma razão, no valor de e 47 558,40, aos quais acrescem os juros de mora vencidos, à taxa legal, desde a data de vencimento de cada uma das prestações”;
– a pagar ao autor “uma indemnização de 30 dias de retribuição base (…) por cada ano completo ou fracção de antiguidade, reportando-se esta a 02.12.2010, até ao trânsito em julgado da presente decisão judicial”;
– a pagar “juros de mora desde a data da citação, à taxa legal, desde a data da sentença”.
Invocou a “natureza laboral do vínculo” que o ligou à ré, “pessoa colectiva de direito público de natureza associativa e âmbito territorial” na qual foi integrada a Associação de Municípios do Baixo Alentejo e Alentejo Litoral, AMBAAL, entidade que lançou o concurso público para director do jornal “......”, funções que veio a desempenhar até 31 de Janeiro de 2019.
Na contestação, e por entre o mais, a ré veio sustentar ter sempre existido “uma verdadeira prestação de serviços”, que o primeiro contrato celebrado com o autor, em 2014, “foi assinado na sequência de um procedimento de contratação pública por ajuste directo, desencadeado e tramitado ao abrigo do disposto na alínea a), do n.º 1, do artigo 20.º, do Código dos Contratos Públicos”, que foi objecto de várias renovações.
A acção foi julgada procedente pela sentença de fls. 426, de 29 de Janeiro de 2020. Interessa agora notar que o tribunal entendeu que “desde 01 de Janeiro de 2011 (…) até final de Janeiro de 2019 o autor exerceu as funções de Director do Jornal ......, de forma ininterrupta, mediante contrato de trabalho celebrado com a AMBAAL e transmitido para a Ré nos termos do artigo 285.º do Código do Trabalho” e que o tribunal era competente para julgar a acção.
A sentença veio a ser revogada pelo acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 17 de Fevereiro de 2020, de fls. 548, que absolveu o réu da instância, por incompetência material: “Em face do alegado pelo autor, os contratos celebrados entre si e a ré constituem actos administrativos praticados pela ré para prosseguir os fins de interesse público para a qual foi criada. (…) A relação jurídica alegada pelo autor não configura um contrato individual de trabalho sujeito à disciplina do Código do Trabalho, mas um contrato de prestação de serviços, na modalidade de avença, celebrado ao abrigo da legislação sobre contratação pública. O tribunal administrativo é o competente, em razão da matéria, para conhecer do litígio destes autos e não o tribunal do trabalho, em face da relação jurídica alegada pelo autor na petição inicial”.
O autor interpôs recurso de revista. Nas alegações de recurso, apresentou as conclusões seguintes:
“1.º A decisão ora recorrida padece de um erado prius lógico, isto é, o de que o Autor alicerçou a sua causa de pedir nos contratos de avença por ajuste directo celebrados. Ora,
2.º O Autor alegou foi que, independentemente do formalismo jurídico dado, tinha mantido com a Ré uma relação de trabalho subordinada e sem qualquer poder público.
3.º Foi o que fez, ao alegar – e provar – que manteve a sua prestação mesmo quando inexistiu documento habilitante – artºs 3.º, 4,º, 4.º, 6.º, 7.º, 10.º e 11.º, todos da petição inicial – e também quando alegou – e igualmente provou – que a sua prestação se manteve inalterada quando lhe foi exigido que outorgasse recibos verdes à SPA, entidade externa à relação – artºs 8.º, 9.º e 10.º, da petição inicial.
Por seu turno,
4.º O Autor alegou – e provou – vários dos indícios que integram a presunção de laborabilidade constante do CT – artºs 15.º a 33.º, todos da petição inicial
Ou seja,
5.º Pois bem, é a partir da causa de pedir e do pedido, tal como o Autor expôs na petição inicial a relação material controvertida, que permite aferir a competência material do tribunal.
6.º Quer isto dizer, então, que o presente litígio está afastado da jurisdição administrativa e deve ser apreciado pelos tribunais comuns, designadamente, pelo Tribunal do Trabalho, atento o plasmado no artigo 4.º, n.º 3, alínea d), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, que preceitua o seguinte (…).
7.º Tal como se decidiu no Acórdão do tribunal dos Conflitos, de 17 de Novembro de 2016 (…). Sem nada conceder,
8.º Existe um outro motivo que impediria que a decisão ora recorrida tivesse o sentido que teve, já que o despacho saneador se pronunciou sobre esta questão, existindo caso julgado material.”.
Não houve contra-alegações.

2. Por decisão individual do relator no Supremo Tribunal de Justiça, posteriormente confirmada por acórdão da conferência, decidiu-se a questão suscitada na conclusão 8.ª, no sentido de não ocorrer caso julgado.
Pelo despacho de fls.621, foi determinada remessa do recurso para o Tribunal dos Conflitos.
Por despacho do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, foi determinado que se seguisse a tramitação prevista na Lei n.º 91/2019, de 4 de Setembro.
O Ministério Público proferiu parecer no sentido de caber à jurisdição administrativa a competência para conhecer da acção.

3. Os factos que vêm provados são os seguintes (transcrevem-se do acórdão recorrido):

1. A ré CIMBAL – Comunidade Intermunicipal do Baixo Alentejo é uma entidade intermunicipal, com a natureza de associação pública de autarquias locais, e visa a realização de interesses comuns aos municípios que a integram.
2. Por escritura pública outorgada em 18 de dezembro de 2017, foi incorporada na CIMBAL através de fusão, a ASSOCIAÇÃO DE MUNICÍPIOS DO BAIXO ALENTEJO E ALENTEJO LITORAL (adiante melhor identificada como AMBAAL), com transferência de todos os elementos do ativo e do passivo, de acordo com o Projeto de Fusão, por incorporação, elaborado em 30 de novembro de 2016. O qual foi aprovado pelos órgãos competentes da AMBAAL e da CIMBAL.
3. Os atuais órgãos dirigentes da CIMBAL tomaram posse em 31 de outubro de 2017.
4. A Associação de Municípios do Baixo Alentejo e Alentejo Litoral (Ambaal) era proprietária do único jornal público do país, denominado “......”, o qual passou a ser propriedade da ré CIMBAL.
5. No seguimento de concurso público para diretor do jornal “......”, lançado pela então entidade proprietária, a Associação de Municípios do Baixo Alentejo e Alentejo Litoral (Ambaal), em novembro de 2010, o A. foi admitido para exercer as referidas funções, tendo subscrito contrato denominado de “prestação de serviços” com data de 2 de dezembro do mesmo ano. Pese embora, efetivamente. Só tenha começado a exercer o cargo a 1 de janeiro de 2011.
6. Tal contrato, com a duração de um ano, foi sendo prorrogado por igual período, até 30 de novembro de 2013.
7. Em 16 de abril de 2014 o autor e a CIMBAL assinaram documento escrito denominado “Contrato de Prestação de Serviços” o qual foi assinado na sequência de um procedimento de contratação pública por ajuste direto.
8. Consta da Cláusula 1.ª do referido documento que o mesmo teve por objeto «...
prestar serviços de assessoria técnica na área do jornalismo e execução de trabalhos jornalísticos na CIMBAL. Designadamente: produção de textos, reportagem, edição.
revisão, produção fotográfica, planificação e desenvolvimento de estratégias de comunicação institucional, editor e gestor de conteúdos de website.».
9. Comprometendo-se a CIMBAL, de acordo com a cláusula 2.ªdo referido documento, a pagar ao autor, mensalmente, da quantia de € 2 615.71. acrescido de IVA.
10. O referido documento previa, como período de duração do acordo das partes, o período de 6 meses (de 16 de abril de 2014 a 15 de outubro de 2014. «eventualmente» renováveis.
11. Consta da Cláusula 4.a do mesmo documento que o autor (segundo outorgante) «não fica sujeito às ordens e direção do primeiro, mas obriga-se perante este a prestar as tarefas nos prazos e condições acordados e com perfeição e rigor.»
12. E da Cláusula 5ª. Que «para execução perfeita das tarefas referidas o segundo outorgante, embora não esteja sujeito à disciplina e hierarquia do primeiro, obriga-se a prestar os serviços referidos na cláusula primeira, de forma que melhor sirva os interesses do primeiro outorgante».
13. Este contrato foi objeto de sucessivas renovações, verificando-se a primeira, em 15 de outubro de 2014, por igual período de 6 meses, a segunda renovação, em 15 de abril de 2015, por igual período de 6 meses e a terceira renovação, em 15 de outubro de 2015. Por igual período de 6 meses.
14. Nas informações internas que antecediam os pedidos de renovação c\o aludido contrato constava como um dos pontos de fundamentação do pedido: «Demonstração que não se trata de trabalho subordinado: Considerando a especificidade da natureza do trabalho, o contratado não fica sujeito a hierarquia, disciplina e horário de trabalho da entidade patronal».
4. Em 21 de junho de 2016, foi assinado entre a CIMBAL e a SOCIEDADE PORTUGUESA DE AUTORES documento escrito denominado “Contrato de Assessoria na Área do Direito de Autor na Disciplina de Jornalismo”, na sequência de procedimento de aquisição por ajuste direto.
16. Consta da cláusula segunda do referido documento que o mesmo «tem por objeto a assessoria na Área do Direito de Autor na Disciplina de Jornalismo, a qual compreende a criação intelectual inerente à execução de trabalhos jornalísticos».
17. O prazo previsto para duração do referido acordo foi de 22 meses.
13. Por força desse acordo a CIMBAL obrigou-se a pagar à SOCIEDADE PORTUGUESA DE AUTORES o valor mensal de € 3 404,816, acrescido de IVA. Resultado da divisão do valor global de € 74 905.82.
19. Os serviços contratados entre a CIMBAL e a SOCIEDADE PORTUGUESA DE AUTORES foram concretizados através do autor, membro da referida sociedade, mediante o pagamento por parte desta ao autor da contrapartida mensal ilíquida de € 2 972.41.
20. Em 24 de abril de 2018 autor e ré assinaram novo documento escrito denominado “Contrato de Prestação de Serviços na Área Jornalística – Modalidade de Avença” o qual resultou de um procedimento de contratação pública, na modalidade de consulta prévia. Com a consulta a 3 pessoas distintas, e culminou com a adjudicação do serviço à proposta apresentada pelo autor.
21. Consta da Cláusula 1.ª do referido documento que o mesmo «tem por objeto a Prestação de Serviços na Área do Jornalismo, mais concretamente: Planificar, coordenar e orientar a redação ......, visando a qualidade do trabalho prestado pelos colaboradores na sua área de atuação. Preparar projetos visando a angariação de novos assinantes, participar na formação ação dos recursos humanos. Orientar abordagens editoriais e definir matérias jornalísticas, bem como a produção de textos, reportagem. Edição, revisão, produção fotográfica e o desenvolvimento de estratégias de comunicação institucional.»
22. Comprometendo-se a ré a pagar ao autor a quantia global de € 26 751.60. pagos de forma mensal, em prestações de € 2 972.40. acrescido de IVA. Pelo período de 9 meses sem previsão de renovação.
23. De janeiro de 2011 a 31 de janeiro de 2019 o A. exerceu, de fora ininterrupta funções de Diretor do Jornal “......”, e o A. sempre recebeu uma remuneração certa, paga 12 vezes por ano, a qual ultimamente ascendia a € 2 972.40/mensais.
24. Durante aquele período, o A. trabalhou num gabinete do edifício onde se encontravam as instalações do Jornal, disponibilizado pela ré.
25. Com os instrumentos de trabalho que eram propriedade da ré, como seja. Secretária, cadeira, telefone, consumíveis, papel, canetas, computador, programas informáticos, entre outros.
26. O autor usava o endereço de email que lhe era facultado em domínio da ré.
27. E tinha password para as impressoras.
28. Constando da listagem de extensões telefónicas, como os demais funcionários do jornal.
29. O autor tinha as chaves das instalações.
30. O autor gozava anualmente férias auferindo a remuneração correspondente a tal período, sem que lhe fossem pagos os respetivos subsídios, e dependia de autorização superior para marcar as férias.
31. Pelo menos até dezembro de 2017. O autor autorizava as férias e procedia à justificação das correspondentes faltas e folgas dos trabalhadores do Jornal.
32. A partir de então o autor coordenava e propunha ao 1.° secretário da ré as questões relacionadas com o pessoal e a organização da redação e era este que decidia e dava as ordens e instruções consideradas necessárias e pertinentes ao pessoal.
33. O A. sempre exerceu as suas funções, de segunda a sexta, num horário flexível, sem que tal horário lhe fosse imposto pela ré.
34. O A. obedecia ao plano estratégico definido pela ré para o Jornal e fazia parte da listagem de trabalhadores a quem eram transmitidas ordens e instruções gerais de serviço.
35. O autor dava ordens aos trabalhadores do Jornal, jornalistas e pessoal administrativo, quanto à distribuição do trabalho a executar, sem interferência na liberdade jornalística daqueles.
36. O autor pronunciava-se quanto às despesas de deslocação dos jornalistas e a aquisição de jornais.
37. Reportando-lhe quanto ao trabalho prestado e despesas realizadas, os jornalistas. Os fotógrafos, os paginadores e o pessoal administrativo, incluindo o paquete.
38. O A. constava como diretor do jornal na respetiva ficha editorial do Jornal disponibilizada ao público.
39. Sendo apresentado publicamente como tal.
40. E sendo reconhecido pela própria ré como Diretor. A qual lhe pediu contributos para a elaboração do Plano Estratégico.
41. Prevendo-se a cessação do contrato de prestação de serviços celebrado com o autor em 24 de abril de 2018. A CIMBAL. Através do Conselho Intermunicipal, tomou a decisão em reunião de 10 de dezembro de 2018 de proceder à contratação, através cia aquisição de uma prestação de serviços, de uma pessoa para assegurar as funções de diretor do jornal «......»
42. Nessa mesma reunião, foi determinado que essa aquisição de serviços fosse feita através de um procedimento de concurso público, tendo sido igualmente aprovados os respetivos termos e condições a que o mesmo deveria obedecer, assim como o Programa do Concurso e o Caderno de Encargos respetivos.
43. Foi feita a publicitação do procedimento, tendo sido o respetivo anúncio publicado na II Série, do Diário da República n.° 242, de 17 de dezembro de 2018.
44. O relatório final do júri propôs a adjudicação à proposta apresentada pelo concorrente BB, o que foi submetido á apreciação do Conselho intermunicipal da CIMBAL. Tendo sido aprovada, por unanimidade, em reunião realizada em !4 de janeiro de 2010 a adjudicação nos termos propostos pelo júri no relatório final..
45. O autor AA apresentou proposta com diversos elementos destinados ao concurso público acima descrito, a qual acabou por não ser admitida por alegada extemporaneidade, não ter sido veiculada por plataforma eletrónica e pelo facto do preço proposto ser superior ao preço base fixado nos termos do concurso.
5. O autor apresentou queixa-crime relativamente a este procedimento no Ministério Público junto do Tribunal Administrativo e Fiscal ....... A qual veio a ser arquivada.
47. Durante o período em que exerceu as funções de Diretor do Jornal ......- o autor prestou serviços na área dos projetos culturais para terceiros.
48. De 2012 a 2019 o autor exerceu funções de docente no Instituto Politécnico ....... Uma hora por semana, auferindo a remuneração de € 90/mês.
49. Ainda no ano de 2018 o autor candidatou-se a uma bolsa de investigação jornalística da Fundação …….. enquanto jornalista independente e autónomo, tendo-lhe sido atribuída uma bolsa no valor de € 15.000.
50. Para a prática dos referidos atos o autor nunca pediu autorização à ré CIMBAL.
51. O autor não questionou a ré sobre a possibilidade de integrar o quadro de pessoal quando foi aprovada a Lei 112/2017. De 29.12. nem reunia os requisitos para tanto.

6. Está apenas em causa determinar quais são os tribunais competentes para apreciar o pedido do autor, se os tribunais judiciais – nos quais se integram os tribunais do trabalho e que, no conjunto do sistema judiciário, têm competência residual (n.º 1 do artigo 211º da Constituição e n.º 1 do artigo 40º da Lei da Organização do Sistema Judiciário, a Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto) – , se os tribunais administrativos e fiscais, cuja jurisdição é delimitada pelo n.º 3 do artigo 212º da Constituição e pelos artigos 1.º e 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.
Como este Tribunal tem repetidamente recordado, esta forma de delimitação obriga a começar por verificar se a presente acção tem por objecto um pedido de resolução de um litígio “emergente” de “relações jurídicas administrativas e fiscais” (nº 2 do artigo 212º da Constituição, nº 1 do artigo 1º e artigo 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais), sendo certo que, segundo a al. b) do nº 1 deste artigo 4º, cabe “aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal” julgar os litígios relativos aos actos da Administração Pública praticados “ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal”.
Merece especial referência o n.º 4 deste artigo 4.º, cuja al. b) exclui da competência dos tribunais administrativos “a apreciação de litígios decorrentes de contratos de trabalho, ainda que uma das partes seja uma pessoa colectiva de direito público”, “com excepção dos litígios emergentes do vínculo de emprego público”, excepção introduzida como al. d) do n.º 3 do artigo 4.º pela Lei n.º 59/2008, de 11 de Setembro, e que está em consonância com a atribuição aos tribunais administrativos e fiscais da competência para apreciar “os litígios emergentes do vínculo de emprego público”, resultante do artigo 12.º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, aprovada pela Lei n.º 35/2014, de 20 de Junho.
Em qualquer dos casos, aferindo-se a competência pela lei vigente à data da propositura da acção, 9 de Maio de 2019, na falta de disposições de direito transitório aplicáveis, é por referência às versões da Lei que regula a organização dos Tribunais Judiciais então em vigor (a Lei de Organização do Sistema Judiciário, a Lei nº 62/2013, de 26 de Agosto) e do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (a Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro) que se determina a que jurisdição compete o respectivo julgamento (cfr. artigos 5.º, n.º 1, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais e 38.º, n.º 1 da Lei n.º 62/2013); recorda-se que a Lei n.º 114/2019, de 12 de Setembro, que alterou os artigos 1.º e 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, entrou em vigor em 11 de Novembro de 2019 e não regula a sua própria aplicação no tempo).
Como uniformemente se tem observado, nomeadamente na jurisprudência do Tribunal dos Conflitos, que se reitera, a competência determina-se tendo em conta os “termos da acção, tal como definidos pelo autor — objectivos, pedido e da causa de pedir, e subjectivos, respeitantes à identidade das partes (cfr., por todos, os acórdãos de 28 de Setembro de 2010, www.dgsi.pt, proc. nº 023/09 e de 20 de Setembro de 2011, www.dgsi.pt, proc. n.º 03/11” – acórdão de 10 de Julho de 2012, www.dgsi.pt, proc. nº 3/12 ou, mais recentemente, o acórdão de 18 de Fevereiro de 2019, www.dgsi.pt, proc. n.º 12/19, quanto aos elementos objectivos de identificação da acção).
Significa esta forma de aferição da competência, como por exemplo se observou no acórdão do Tribunal dos Conflitos de 8 de Novembro de 2018, www.dgsi.pt, proc. n.º 20/18, que “A competência em razão da matéria é, assim, questão que se resolve em razão do modo como o autor estrutura a causa, e exprime a sua pretensão em juízo, não importando para o efeito averiguar quais deveriam ser os correctos termos dessa pretensão considerando a realidade fáctica efectivamente existente, nem o correcto entendimento sobre o regime jurídico aplicável – ver, por elucidativo sobre esta metodologia jurídica, o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais do Tribunal de Conflitos de 01.10.2015, 08/14, onde se diz, além do mais, que «o tribunal é livre na indagação do direito e na qualificação jurídica dos factos. Mas não pode antecipar esse juízo para o momento de apreciação do pressuposto da competência…».”.
A mesma orientação se retira do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de Fevereiro de 2015, ww.dgsi.pt, processo n.º 1998/12.1TBMGR.C1.S1: “Como é sabido, a competência do Tribunal em razão da matéria é determinada pela natureza da relação jurídica tal como apresentada pelo autor na petição inicial, confrontando-se o respetivo pedido com a causa de pedir e sendo tal questão, da competência ou incompetência em razão da matéria do Tribunal para o conhecimento de determinado litígio, independente, quer de outras exceções eventualmente existentes, quer do mérito ou demérito da pretensão deduzida pelas partes”.
Com efeito, “saber como se qualifica a relação invocada pela autora, e se os efeitos que a autora pretende são ou não fundamentados, são questões que respeitam ao mérito da causa e à procedência ou improcedência da acção; interpretar o contrato invocado e retirar dessa interpretação consequências quanto à identificação do tribunal competente significa inverter a relação pressupostos/questão de fundo (acórdão do Tribunal dos Conflitos” (acórdão do Tribunal dos Conflitos de 24 de Fevereiro de 2021, www.dgsi.pt, proc. n.º 03143/19.3T8GMR.S1).

7. O Litígio desenrola-se entre o autor e uma pessoa colectiva de direito público.
Descrevendo a sucessão de relações entre o autor e a ré, o autor situa o seu início num concurso público, na sequência do qual “foi admitido para exercer as (…) funções [de director do jornal ‘......’], em contrato de prestação de serviços com data de 2 de dezembro do mesmo ano [2010]”. Alega que o contrato foi sendo mantido, com as vicissitudes que descreve, perdurando até 31 de Janeiro de 2019.
Do documento que junta como doc. n.º 1, e para o qual remete para demonstrar o contrato inicial, consta que foi celebrado um “contrato de avença, com recurso ao ajuste directo, nos termos da Portaria n.º 371-A/2010 de 23 de Junho e de acordo com o despacho do Presidente do Conselho Directivo de 18 de Novembro de 2020”.
Como explica José Carlos Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa, 18ª ed., Coimbra, 2020, págs. 109-110, foram integrados na jurisdição administrativa (al. e) do n.º 1 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais) os litígios (“questões de interpretação, validade e execução de contratos”) relativos não apenas aos “contratos administrativos, mas também [a] quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas colectivas públicas ou outras entidades adjudicantes. Trata-se de uma opção tomada na revisão de 2005, que tem a vantagem de sujeitar a generalidade dos contratos celebrados pela Administração à jurisdição administrativa (…)”. São excluídos os litígios decorrentes de contratos de trabalho (al. b) do n.º 4), salvo se estiver em causa uma relação de emprego público.
O autor alega que o contrato intitulado de prestação de serviços e que se foi mantendo, nos termos descritos na petição inicial, foi um contrato de trabalho – “(…) é claro que os descritos elementos (local de trabalho, instrumentos, horário, remuneração certa, existência de ordens) indiciam a existência de um contrato de trabalho”; ao qual foi posto termo ilicitamente pela ré.
Ora, saber se o contrato invocado pelo autor foi um contrato de trabalho ou um contrato de prestação de serviços é a questão de mérito essencial para resolver os pedidos formulados na acção. Determinar se a relação contratual apresentada pelo autor deve ser apreciada pelos tribunais de trabalho ou pelos tribunais administrativos não pode transformar-se numa qualificação do contrato que resolva essa questão de mérito; a qualificação é questão que deve ser apreciada pelos tribunais de trabalho, tendo em conta a forma como o autor define a causa de pedir (a cessação ilícita de um contrato de trabalho) e os pedidos que formula.
À mesma conclusão se chegou, numa situação semelhante à dos presentes autos, no acórdão deste tribunal de Conflitos de 11 de Abril de 2019, www.dgsi.pt , proc. n.º 45/81 (embora aí fosse aplicável a versão do artigo 4.º do ETF resultante da alteração introduzida pela Lei n.º 59/2008, de 11 de Setembro, a al. d) do n.º 3, equivalente à al. b) do n.º 4, resultante da Lei n.º 214-G/2015, de 2 de Outubro, aqui aplicável): “Afigura-se que a resolução do presente conflito negativo de jurisdição implica essencialmente que se proceda à interpretação e aplicação do regime da alínea d), do nº 3 do art. 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (na versão supra reproduzida), regime do qual resulta: (i) que estão excluídos da jurisdição administrativa e fiscal os litígios relativos a “contratos individuais de trabalho”, mesmo que a entidade empregadora seja uma pessoa colectiva de direito público; (ii) que, inversamente, estão abrangidas pela jurisdição administrativa e fiscal os litígios relativos a “contratos de trabalho em funções públicas. (…) Em conclusão, entende-se que a relação material controvertida, tal como configurada pelo A., não corresponde a uma situação de relação jurídica administrativa nos termos e para os efeitos do nº 1 do art. 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, nem a uma situação de contrato de trabalho em funções públicas nos termos e para os efeitos da alínea d), do nº 3 do art. 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (na redacção aplicável). Estando, pois, em causa um simples contrato individual de trabalho, a competência para conhecer a causa cabe aos tribunais de trabalho da jurisdição comum.”

8. Assim, nega-se provimento ao recurso.

Nos termos do disposto no n.º 5 do artigo 14.º, conjugado com o n.º 3 do artigo 18.º da Lei n.º 91/2019, e de acordo com os artigos 40.º, n.º 1 e 126.º, n.º 2 da Lei n.º 62/2013 e 14.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho, julga-se competente para a presente acção o Juízo do Trabalho de Beja, do Tribunal Judicial da comarca de Beja.

Sem custas (artigo (art. 5.º nº 2, da Lei n.º 91/2019, de 4 de Setembro).
Lisboa, 13 de Outubro de 2021. - Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (relatora) - Teresa de Sousa - Henrique Araújo.