Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:06/23
Data do Acordão:07/05/2023
Tribunal:CONFLITOS
Relator:TERESA DE SOUSA
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
ACÇÃO DE INDEMNIZAÇÃO
LINHA DE MUITO ALTA TENSÃO
Sumário:Compete aos tribunais judiciais conhecer e decidir as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional, pelo que não se inscrevendo a presente acção em nenhuma das alíneas do nº 1 do art. 4º do ETAF, que permitam submeter o litígio ao âmbito da jurisdição administrativa, a competência material para conhecer desta acção cabe à jurisdição comum.
Nº Convencional:JSTA000P31172
Nº do Documento:SAC2023070506
Data de Entrada:03/17/2023
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE PENAFIEL DO TRIBUNAL DA COMARCA DO PORTO ESTE, E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE PENAFIEL
AUTOR: AA E OUTROS
RÉU: A..., S.A.
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral:
Conflito nº 6/23

Acordam no Tribunal dos Conflitos

1. Relatório
AA, BB e CC, identificados nos autos, intentaram no Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel (TAF de Penafiel), acção administrativa contra A... (doravante A...) pedindo “I – Declarar-se que: 1- Está a Ré obrigada a indemnizar os Autores pelos prejuízos por danos patrimoniais decorrentes do estabelecimento da LINHA DE MUITO ALTA TENSÃO, que causaram uma desvalorização no prédio identificado nos artºs 1º a 4º desta p.i. no montante global de 750.000€, acrescidos de juros à taxa legal desde a citação até integral e efectivo pagamento.
2 – Está a Ré obrigada a indemnizar os Autores pelos prejuízos por danos não patrimoniais decorrentes do estabelecimento da LINHA DE MUITO ALTA TENSÃO, que causaram uma desvalorização no prédio identificado nos artºs 1º a 4º desta p.i. no montante global de 50.000€, para cada um dos Autores, no total de 150.000€ acrescidos de juros à taxa legal desde a citação até integral e efectivo pagamento, assim distribuída:
II –Condenar-se a Ré a:
1 – pagar aos Autores o montante global de 50.000€ acrescidos de juros à taxa legal desde a citação até integral e efectivo pagamento, pelos prejuízos por danos patrimoniais decorrentes do estabelecimento da LINHA DE MUITO ALTA TENSÃO, que causaram uma desvalorização no prédio identificado nos artºs 1º a 4º desta p.i..
2 - pagar aos Autores a quantia de 50.000€, para cada um dos Autores, no total de 100.000€ acrescidos de juros à taxa legal desde a citação até integral e efectivo pagamento, por danos não patrimoniais decorrentes do estabelecimento da LINHA DE MUITO ALTA TENSÃO, que causaram uma desvalorização no prédio identificado nos artºs 1º a 4º desta p.i..
Em síntese alegam que são proprietários de um prédio onde edificaram a sua habitação. Em 2016 a Ré construiu e instalou linhas de alta tensão suportadas por postes junto ao prédio e casa de habitação dos Autores, sendo largamente ultrapassados, nesta habitação, os valores de referência para o campo magnético e para o campo eléctrico, previstos na lei e nos regulamentos técnicos. A instalação da Linha de Muito Alta Tensão a cerca de 20 metros da casa de habitação dos AA. teve impacto visual e estético, degradação da qualidade ambiental, impactos territoriais, efeitos adversos para a saúde, risco ao conforto e segurança das pessoas, que afastam o interesse de potenciais compradores e investidores na propriedade dos autores. Os Autores nunca teriam adquirido o lote de terreno ou edificado a sua casa de habitação se soubessem que a Ré iria implementar poste e fios de alta tensão junto da sua residência. Os Autores começaram a sofrer de mal-estar, decorrente de sensações de queimaduras, calores e irritação da pele ao nível da cabeça, face, pescoço e braços e inflamação na garganta, sentindo náuseas e dores de cabeça, ossos e articulações. Vivem num estado de ansiedade e inquietação e sofrem perturbações do sono e repouso.
A estrutura em causa ofende os direitos a um ambiente e qualidade de vida sadios, à protecção da sua saúde, na vertente física e psíquica, bem como o direito à tranquilidade.
A construção das linhas em causa origina menor procura das propriedades por elas atravessadas pelo perigo potencial para a saúde e desvalorização estética da propriedade. A passagem de tais linhas diminui o valor de uma propriedade pelo seu atravessamento por aquelas, sendo tal actividade considerada como uma actividade perigosa.
Concluem pela condenação da Ré a pagar-lhes indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais nos termos supra mencionados.
Em 27.01.2023 o TAF de Penafiel julgou-se materialmente incompetente para a apreciação do presente litígio, determinando a absolvição da Ré da instância.
Nesta decisão, tendo-se em consideração que os autos têm como antecedente uma acção prévia instaurada no Juízo Central Cível de Penafiel, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este, que correu termos sob o n.º 993/21.4T8PNF, no qual foi proferida igualmente decisão de incompetência material, suscitou o TAF o conflito negativo de jurisdição (cfr. fls. 193 e 194).
Concluso o presente processo foi por despacho de 04.05.2023, determinada a devolução do mesmo ao TAF, a fim de serem juntos os elementos referentes ao processo nº 993/21.4T8PNF os quais constando do SITAF, não estavam juntos ao presente processo físico (cfr. fls. 207 e 208).
Neste processo que correu termos no Juízo Central Cível de Penafiel, Juiz 4, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este, foi proferida decisão em 28.06.2021, na qual se julgou aquele Tribunal incompetente, em razão da matéria, para conhecer da causa, absolvendo-se a Ré da instância (cfr. fls. 217 verso a 223 dos presentes autos).
Neste Tribunal dos Conflitos, as partes foram notificadas para efeitos do disposto no nº 3 do art. 11º da Lei nº 91/2019, nada tendo dito.
A Exma. Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de que a competência para conhecer da acção deverá ser atribuída aos tribunais judiciais (cfr. fls. 204 a 206).

2. Os Factos
Os factos relevantes para a decisão são os constantes do relatório.

3. O Direito
O presente Conflito Negativo de Jurisdição vem suscitado entre o Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel e o Juízo Central Cível de Penafiel, Juiz 4, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este.
O Juízo Central Cível da Penafiel, Juiz 4 declarou-se incompetente em razão da matéria considerando competente a jurisdição administrativa por entender que “Assim, embora o Estado conceda a outrem, a um particular, o transporte/exploração das linhas de electricidade, através da celebração de contratos administrativos, ainda assim afirma a supremacia do interesse público, disciplinando e controlando o exercício dessa atividade, através dos seus órgãos administrativos, sendo tais instalações eléctricas de utilidade pública (DL n.º 29/2006, de 15/02) e aplicando-se, como se referiu, normas de interesse e ordem públicas, tendo sempre subjacente o Sistema Elétrico Nacional (SEM), sendo a concessão exercida em regime de serviço público, e as suas actividades consideradas de utilidade pública (DL nº 172/2006, de 23/08).
A conjugação de todos estes diplomas legais citados, reconduzem-nos, sem dúvida, à aplicação de normas de direito público, para as quais este Tribunal não tem competência na sua apreciação e aplicação.
(…) É essa precisamente a situação dos autos, em que o A. alega danos patrimoniais e não patrimoniais, por força da responsabilidade extracontratual, pela proximidade (e não de servidão) da linha de muita alta tensão da sua habitação.”.
Assim, entendendo estar em discussão nos autos a responsabilidade civil extracontratual da Ré, considerou que a competência para conhecer do objecto da acção cabia aos Tribunais Administrativos, nos termos do disposto no art. 4º, nº 1, alínea h) do ETAF.

Por sua vez o TAF de Penafiel também se declarou incompetente para conhecer a acção considerando queEfetivamente, e embora não seja o regime invocado pelos autores que apenas aludem a normas do CC, certo é que à indemnização como a que está em discussão nos presentes autos é aplicável o Decreto-Lei n.º 43 335 de 19 de novembro de 1960, cujo artigo 37º estabelece expressamente que “Os proprietários dos terrenos ou edifícios utilizados para o estabelecimento de linhas elétricas são indemnizados pelo concessionário ou proprietário dessas linhas sempre que daquela utilização resultem redução de rendimento, diminuição de áreas das propriedades ou quaisquer prejuízos provenientes da construção das linhas.”
No caso em apreço, os autores invocam expressamente a existência de prejuízos provenientes da construção da linha de muito alta tensão e da passagem dos cabos elétricos.
E a lei prevê uma tramitação específica para apurar o valor dessa indemnização, o que significa que está em causa o apuramento de uma responsabilidade civil extracontratual a que não é aplicável, pela existência de legislação especial, o Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, aprovada pela Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro, o que exclui o âmbito da jurisdição administrativa.
(…) Não estão em causa, nem os autores o mencionam, a legalidade dos atos administrativos praticados pelo Estado, designadamente a Direção Geral de Energia e Geologia – licença de estabelecimento – e da Agência Portuguesa do Ambiente – declaração de impacte ambiental – o que levaria à aplicação do art.º 4, n.º 1, alínea d) do ETAF, mas antes o impacto que a construção e passagem das linhas de condução de eletricidade tem sobre a sua propriedade e saúde.
In casu, parece-nos afastar-se, assim, a aplicação do art.º 4, n.º 1, alínea h) do ETAF, que plasma que é da competência dos Tribunais Administrativos as ações relativas à responsabilidade civil extracontratual dos demais sujeitos aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas coletivas de direito público, dado que os direitos subjetivos aqui violados decorrerão do facto de os cabos de muita alta tensão passarem a uma distância de 20 metros da casa dos autores, afectando assim a sua propriedade e o seu direito à saúde, daí invocarem a lesão do seu património (propriedade) e da sua pessoa e ter, por isso, sofrido prejuízos (danos).
Repare-se que os autores não peticionam nem uma indemnização decorrente de factos ilícitos nem a condenação da ré a remover ou desativar as linhas, mas antes uma indemnização pelo sacrifício imposta ao seu património dos autores (desvalorização do imóvel onde está edificada a casa de habitação) e à sua saúde.
Não se discute aqui nem se pretende questionar, pois, a legalidade da atuação da ré na qualidade de concessionária, ou o ato de licenciamento e outorga da concessão, nem o problema contende diretamente com o âmbito do exercício da atividade concessionada, ou seja, a construção, manutenção e vigilância da rede de distribuição de energia elétrica.
(…) o que está em causa é, na verdade, uma alegada consequência que a implementação dos cabos de muita alta tensão que sobrepassam a propriedade dos autores (e que estes aceitam e não querem colocar em causa), tem sobre o seu património e saúde.
Tal indemnização está prevista em legislação especial e é apurada em função do regime do Código das Expropriações. Efetivamente, o apuramento de indemnizações decorrentes quer da desvalorização de bens quer da oneração de direitos dos particulares é da competência dos Tribunais Comuns – cf. acórdão do Tribunal de Conflitos n.º 26/16.”.

Vejamos.
Cabe aos tribunais judiciais a competência para julgar as causas «que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional» [arts. 211º, nº1, da CRP, 64º do CPC e 40º, nº1, da Lei nº 62/2013, de 26/8 (LOSJ)], e aos tribunais administrativos e fiscais a competência para julgar as causas «emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais» [arts. 212º, nº 3, da CRP e 1º, nº 1, do ETAF].
A competência dos tribunais administrativos e fiscais é concretizada no art. 4º do ETAF (Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro) com delimitação do “âmbito da jurisdição” mediante uma enunciação positiva (nºs 1 e 2) e negativa (nºs 3 e 4).
Tem sido reafirmado por este Tribunal, e constitui entendimento jurisprudencial e doutrinário consensual, que a competência material do tribunal se afere em função do modo como o autor configura a acção e que a mesma se fixa no momento em que a acção é proposta.
Como se afirmou no Ac. deste Tribunal de 01.10.2015, Proc. 08/14, “A competência é questão que se resolve de acordo com os termos da pretensão do Autor, aí compreendidos os respectivos fundamentos e a identidade das partes, não importando averiguar quais deviam ser os termos dessa pretensão, considerando a realidade fáctica efectivamente existente ou o correcto entendimento do regime jurídico aplicável. O Tribunal dos Conflitos tem reafirmado constantemente que o que releva, para o efeito do estabelecimento da competência, é o modo como o Autor estrutura a causa e exprime a sua pretensão em juízo".
Os Autores alegam na sua petição inicial que “a [sua] propriedade foi no seu conjunto afectada pela passagem da LMAT”; que “Depois da instalação da LMAT o valor do prédio dos Autores depreciou e desvalorizou 25%, portanto, vale actualmente 750.000€”; “os AA. vivem num permanente estado de ansiedade e inquietação resultante do mal-estar e lesões de saúde; “sofrem de perturbações do sono e repouso, sofrendo esta incomodidade permanentemente”; “ocorre, pois, ofensa do direito à tranquilidade dos AA.”.
Resulta da petição inicial que os Autores não formulam qualquer pretensão decorrente de eventual apreciação da validade dos procedimentos de implantação da linha de muito alta tensão (que não questionam), nem de qualquer ilegalidade decorrente do exercício da actividade concessionada, que estejam sujeitas a normas de direito público.
Face aos termos em que os Autores configuraram a acção não estamos perante actividade da R. que resulte do exercício de prerrogativas de poder público ou seja regulada por disposições ou princípios de direito administrativo de molde a que os eventuais danos causados possam ser ressarcidos através de acção de competência dos tribunais administrativos por via da alínea h) do nº 1 do art. 4º do ETAF.
Com efeito, a causa de pedir e os pedidos respeitam apenas à invocada desvalorização do imóvel face à proximidade da linha de muito alta tensão e à perda de saúde e qualidade de vida face a essa proximidade.
Assim, face à forma como a acção vem configurada, estamos perante danos indemnizáveis equiparáveis aos previstos nos arts. 37º e 38º do DL nº 43335, de 19.11.1960, o qual constitui legislação especial, que afasta o regime jurídico da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas colectivas de direito público, constante da Lei nº 67/2007, de 31/12, como expressamente decorre do seu art. 1º, nº 1.
É certo que, no presente caso, não estamos perante situação totalmente correspondente à prevista nos arts. 37º e 38º do DL nº 43335, visto que a linha de alta tensão não passa sobre o prédio do Autores, mas sim, conforme alegam, a 20 metros do mesmo, sendo certo, no entanto, que estes consideram existir uma oneração do seu direito de propriedade por ocorrer uma desvalorização do valor do imóvel e danos para a sua saúde e tranquilidade.
Certo é que em situações semelhantes à que aqui está em causa este Tribunal dos Conflitos já se pronunciou no sentido de ser atribuída a competência aos tribunais comuns, no acórdão de 19.06.2014, Proc. nº 09/14 (cfr. igualmente o acórdão do STJ de 10.11.2011, Proc. nº 1168/06.8TBMCN.P1.S1 no qual não esteve sequer em causa a competência da jurisdição comum).
Sumariou-se naquele acórdão o seguinte: «São da competência material da ordem dos tribunais judiciais as acções que – independentemente da forma de processo e da circunstância de ter ou não havido um prévio juízo arbitral, impugnado em via de recurso pelo interessado – têm como objecto o arbitramento da justa indemnização devida ao proprietário pela oneração do seu direito, determinante da desvalorização do bem pela constituição lícita de uma servidão administrativa por acto de entidade concessionária de serviço público, mesmo que aquela não seja decorrência de um precedente processo expropriativo.».
No presente caso não está sequer em causa qualquer servidão administrativa, mas afiguram-se estar presentes as mesmas razões de direito naquele acórdão referidas, ao expender-se, nomeadamente, “tal como ocorre na fase do processo expropriativo tradicionalmente atribuída aos tribunais judiciais, o objecto da presente acção visa apurar e efectivar a obrigação de indemnização de uma entidade que exerce funções administrativas por acto lícito, que determinou a ablação ou oneração da propriedade em nome da realização de um interesse público, gerando uma desvalorização do bem – que carece de ser ressarcida, de modo a assegurar-se a tutela efectiva do direito de propriedade.
Deste modo, não se inscrevendo a acção em nenhuma das alíneas do nº 1 do art. 4º do ETAF, que permitam submeter o litígio ao âmbito da jurisdição administrativa, e sendo da competência dos tribunais judiciais conhecer e decidir as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional, conclui-se que a competência material para conhecer da presente acção cabe à jurisdição comum.

Pelo exposto, acordam em julgar competente para apreciar a acção o Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este - Instância Central Cível de Penafiel, Juiz 4.
Sem custas.

Lisboa, 5 de Julho de 2023. – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa (relatora) – Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza.