Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:016/06
Data do Acordão:11/29/2006
Tribunal:CONFLITOS
Relator:CÂNDIDO DE PINHO
Descritores:RECURSO PARA O TRIBUNAL DE CONFLITOS.
EXECUÇÃO FISCAL.
HIPOTECA.
CANCELAMENTO DE REGISTO.
INDEMNIZAÇÃO.
COMPETÊNCIA DOS TRIBUNAIS TRIBUTÁRIOS.
Sumário:Instaurada uma execução fiscal contra o devedor originário, posteriormente revertida contra aquele que a Administração Fiscal considera ser o devedor subsidiário, se este, com fundamento na ilegalidade da reversão e da hipoteca legal constituída sobre bens imóveis seus, pretender a condenação do Estado no cancelamento do registo da referida garantia e no pagamento de indemnização pelos prejuízos que ela lhe vem causando, deverá mover a correspondente acção na jurisdição administrativa e fiscal, a cujo tribunal tributário da área onde corre a execução caberá a respectiva competência.
Nº Convencional:JSTA00063805
Nº do Documento:SAC20061129016
Data de Entrada:09/05/2006
Recorrente:A... NO CONFLITO NEGATIVO JURISDIÇÃO ENTRE TRIB JUDICIAL SANTO TIRSO E OS TAFS
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC PRÉ-CONFLITO.
Objecto:AC RP.
Decisão:NEGA PROVIMENTO.
Área Temática 1:DIR ADM CONT - RESPONSABILIDADE EXTRA.
DIR PROC TRIBUT CONT - EXEC FISCAL.
Legislação Nacional:CPC97 ART66 ART116.
ETAF02 ART1 ART4 ART49.
CONST97 ART211 ART213.
CPPTRIB99 ART148 ART151 ART195.
Jurisprudência Nacional:AC TCF PROC318 DE 2000/07/11.; AC TCF PROC316 DE 1997/12/01.; AC TCF PROC9/02 DE 2003/07/09.; AC TCF PROC3/04 DE 2004/10/12.; AC TCF PROC2/03 DE 2003/12/18.
Referência a Doutrina:ANTUNES VARELA E OUTROS MANUAL DE PROCESSO CIVIL PAG197.
CASTRO MENDES DIREITO PROCESSUAL CIVIL PAG646.
ANSELMO DE CASTRO LIÇÕES DE PROCESSO CIVIL V2 PAG400.
MANUEL DE ANDRADE NOÇÕES ELEMENTARES DE PROCESSO CIVIL PAG90-91.
SOARES MARTINEZ DIREITO FISCAL PAG161-275.
BRAZ TEIXEIRA PRINCÍPIOS DE DIREITO FISCAL 3ED V1 PAG23.
MARCELLO CAETANO MANUAL DE DIREITO ADMINISTRATIVO V1 PAG45-49.
PIRES DE LIMA E OUTRO NOÇÕES FUNDAMENTAIS DE DIREITO CIVIL V1 PAG45.
FREITAS DO AMARAL DIREITO ADMINISTRATIVO V2 PAG36.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam no Tribunal de Conflitos
I- A…, inconformada com o teor do acórdão da Relação do Porto que, em sede de recurso de agravo da decisão proferida em 7/11/2005 do Tribunal Judicial de Santo Tirso nos autos de acção de condenação sob a forma ordinária intentada contra o Estado Português, manteve a incompetência em razão da matéria daquele tribunal para conhecer dos pedidos ali formulados - entre os quais o da condenação em pagamento de indemnização - reconhecendo-a, por outro lado, aos Tribunais Administrativos e Fiscais, recorre para este Tribunal de Conflitos, ao abrigo do disposto no art. 107º, nº2, do CPC.
Nas alegações, concluiu da seguinte maneira:
«lª A Recorrente alegou, na conclusão 7ª das alegações de recurso para o Tribunal da Relação do Porto, que "o direito violado tem a natureza de direito absoluto, e, como tal, a sua tutela efectiva faz-se nos tribunais comuns".
2ª O Tribunal recorrido não se pronunciou sobre esta matéria; por isso o douto acórdão recorrido é nulo (art°. 668°.1, d) ex vi art°, 716°,1, ambos do CPC).
Sem prescindir:
3ª Os tribunais administrativos e fiscais apreciam e julgam os conflitos emergentes de relações jurídicas administrativas ou fiscais, mas não as de direito penal ou civil.
4ª Os tribunais comuns são os tribunais competentes para o cidadão aí se defender de factos praticados pela A.F., mesmo que estes se baseiem numa relação jurídica fiscal, por ela alegada mas inexistente.
5ª Nos tribunais administrativos e fiscais o cidadão pode pedir a revogação desse acto, mas isso não impede que ele, pela via da acção e dos procedimentos cautelares cíveis, defenda a posse e propriedade dos seus bens nos tribunais comuns.
6ª Os direitos patrimoniais, tal como os direitos de natureza de personalidade, são direitos absolutos, com a natureza de direitos fundamentais do cidadão (art°. 1305°. do CC e actos. 62°, 17° e 16°, 2 da CRPP, com referência ao art. 17°. da Decl. Univ. dos Dtos do Homem).
7ª Os direitos patrimoniais, mormente o direito de propriedade, são direitos de natureza civi1, competindo aos tribunais comuns assegurar a defesa dos interesses emergentes desses direitos, quando violados (arts. 1311°. e segts. do CC e arts. 202°.2 e 211°,1, lª parte da CRP).
8ª O disposto no art. 4°. do ETAF, mormente na al. a) do seu nº 1, terão que ser interpretados de harmonia com o princípio da interpretação das leis conforme a Constituição e os princípios da unidade do sistema jurídico, este imanente ao princípio de direito, consagrado no art. 1°, da Constituição e reconhecido no art° 8°,1 do CC, bem como com o disposto nos já aludidos arts. 62°, 17º, 16°, 2, 202°,2 e 211°,1 da Constituição, e ainda com o disposto no nº 3 do art. 212°, da Lei Fundamental.
9ª Assim, aos tribunais administrativos e fiscais compete apreciar os conflitos emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais, mas não retira aos tribunais comuns o dever de apreciar os factos praticados pela Administração Pública que violem direitos absolutos cuja defesa seja da competência dos tribunais comuns, sob pena de violar o disposto no art°. 13° da CRP, mormente quando a AF inventa relações tributárias inexistentes.
10ª Doutro modo, com o pretexto da existência de uma relação jurídica administrativa ou fiscal, invocando normas jurídicas administrativas ou fiscais, com total despropósito, ao contrário do que poderiam fazer os sujeitos de direito provado, e abusando assim dos inconstitucionais princípios da presunção de legalidade dos seus actos e do benefício da execução prévia, a A.F. ficava com o campo aberto para criar situações de facto altamente gravosas para os cidadãos, que assim ficavam impedidos de reagir pela via da acção e meios cautelares comuns.
11ª Esta dualidade não é suprida com o recurso aos tribunais administrativos e fiscais, nomeadamente quando estão em causa factos praticados pela A.F., pois, na jurisdição fiscal, não existem para os sujeitos de direito privado os meios pertinentes, p. ex., os procedimentos cautelares de defesa reivindicação e defesa da posse e da propriedade.
12ª Os direitos dominiais têm pois a natureza de direito civil, competindo aos tribunais comuns a apreciação das questões relativas à defesa dos interesses protegidos por esses direitos, mesmo quando o facto violador vem enroupado com a capa de uma relação jurídica administrativa ou fiscal. Por isso os tribunais comuns, como tribunais de jurisdição plena, não podem deixar de averiguar se, por baixo da capa, está coisa séria ou coisa ilícita.
13ª Deste modo de ver as coisas resulta que o disposto na al. a) do nº, 1, do art. 4°, do ETAF não foi interpretado de harmonia com as normas constitucionais aqui invocadas; mas se o seu sentido é aquele que lhe foi dado nas interpretações recorridas, então essa norma é inconstitucional porque viola as normas e princípios constitucionais invocados nestas conclusões.
14ª. Pese o muito respeito que lhes é devido, pelas razões e direito aduzidos nestas conclusões, as doutas decisões recorridas deverão ser revogadas».
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A entidade recorrida pugnou pelo improvimento do recurso.
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Cumpre decidir.
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II- Os Factos

Considera-se assente a seguinte factualidade:
1- A recorrente, A…, é dona e possuidora dos prédios rústicos “terreno de cultura e Mato”, “…”, “…” e “campo da …”, todos sitos no lugar de …, freguesia de Monte Córdova, concelho de Santo Tirso, inscritos na matriz sob os nºs 2501, 2500, 2490 e 2498, descritos na Conservatória do Registo Predial daquele concelho sob os nos 01799/281201, 01800/281201, 00812/071196 e 00811/071196, respectivamente (docs. Fls. 8 a 22).
2- Estes prédios foram objecto de hipoteca legal a favor da Fazenda Nacional, no âmbito de uma acção executiva fiscal intentada contra “B…”, como garantia de pagamento de créditos fiscais de IVA relativo aos anos de 2001 a 2002 e coima fiscal do ano de 2003 e respectivos juros e custas, no valor de 51,499,79 euros (docs. loc. cit. e ainda fls. 56), hipoteca que viria a ser registada ao abrigo dos arts. 195º, nº3 do CPPT e 687º e 693º do Código Civil (fls. 57).
3- Alegando nada dever ao Fisco, nem sequer subsidiariamente a título de reversão por dívidas de “B…”, sociedade de que nunca foi gerente, nem de direito, nem de facto, intentou acção declarativa de condenação no Tribunal Judicial de Santo Tirso (fls. 1/6).
3- O Tribunal Judicial de Santo Tirso julgou procedente a excepção de incompetência material arguida pelo Estado Português na referida acção, absolvendo-o da instância (fls. 71/73).
4- O Tribunal da Relação do Porto, em sede de recurso jurisdicional, acolheu esta posição, por considerar que a competência para a acção pertencia à jurisdição administrativa e fiscal (fls. 102/107).
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III- O Direito
1- Da nulidade do acórdão da Relação
O presente recurso é típico para a fixação de competência. E porque incide sobre uma decisão do Tribunal de Relação que confirma a decisão da 1ª instância (de julgar o tribunal judicial incompetente para a acção), ele não consubstancia um conflito de competência entre tribunais ou de jurisdições distintas, mas representa aquilo a que vulgarmente se designa “pré-conflito” ou, na expressão de Alberto dos Reis, a “prevenção de conflito futuro”, (C.P.Civil Anotado), obrigatoriamente dirigido ao Tribunal de Conflitos.
De qualquer maneira, sempre visa a solução para a excepção de competência, o que nos leva a concluir que por aí haverá de ficar a parcela de jurisdição que ao TC cabe, o que, de resto, nos parece obter acolhimento pleno no disposto no art. 116º, nº1, do CPC e, ainda mais especificamente, no art. 107º, nº2 do mesmo Código, “in fine”, quando estabelece que o recurso interposto para este tribunal é «…destinado a fixar a competência». Por isso, aí se esgota, portanto, o nosso poder decisório, o que impede o Tribunal de Conflitos, por exemplo, de conhecer de questões que transcendem o seu específico objecto, como é, por exemplo, o caso da nulidade do acórdão recorrido.
Na verdade, a nulidade de sentença por omissão de pronúncia suscitada (art. 668º, nº1, al. d), do CPC) não cabe no âmbito deste tipo de recurso, o qual, mesmo ordinário (Ac. do TC de 1//12/97, Proc. nº 000316), apenas tem por missão a “resolução dos conflitos”, quando existam (cfr. art. 98º da LPTA) ou “fixar a competência” para decidir o mérito da questão submetida ao tribunal.
Eis por que não apreciaremos a arguida nulidade.
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2- Do mérito do recurso
Como é sabido, o requisito da competência resulta de necessidade de se repartir o poder jurisdicional pelos vários tribunais segundo critérios diversos.
No plano interno, à frente de todos, surge o critério da especialização. A lei, em função do reconhecimento da vantagem em reservar para cada um dos tribunais aquelas matérias que constituem o núcleo preferencial da sua actividade, fixa a regra da competência (Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio Nora, in Manual de Processo Civil, 1987, pag. 197).
Ora, no que respeita à jurisdição administrativa e fiscal o art. 1º do novo ETAF estatui que «os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça…nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais».
Numa fórmula semelhante, a Constituição da República Portuguesa comete «aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais» (art. 212º, nº3), ao mesmo tempo que, por exclusão, estabelece que «tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais» (art. 211º, nº1).
O que quer dizer que o primado na determinação da competência vai inteiro para a lei. De tal modo que se a lei não atribuir competência a alguma jurisdição especial, então a causa cai na alçada do tribunal judicial (art. 66º do CPC).
O ETAF, a este propósito, aponta em alguns dos seus preceitos a fracção do poder jurisdicional que pode ser exercida pelos tribunais administrativos, fixando-lhes o espaço jurisdicional da actividade a desenvolver no pleito. Mas essa é a competência abstracta, de que destacamos em matéria contenciosa administrativa, v.g., os arts. 24º, 37 e 43º.
Resta saber se o tribunal concreto pode julgar a causa que as partes lhe submetem, tarefa que cai já sob o domínio da competência concreta de cada tribunal.
Pode dizer-se que o tribunal administrativo é competente para a acção se entre esta e aquele (tribunal) existir um nexo jurídico de competência (Castro Mendes, in Direito Processual Civil, pag. 646), ou, para utilizar as palavras de outro autor, se entre ambos for possível configurar uma conexão relevante e decisiva por lei (Anselmo de Castro, in Lições de Processo Civil, II, pag. 400).
Para o efeito importa perscrutar os índices de competência, olhando para a acção de acordo com os termos em que ela foi proposta, seja quanto aos seus elementos objectivos (natureza da providência solicitada, natureza do direito para o qual pretende a tutela judiciária, facto ou acto donde teria resultado esse direito, etc), seja quanto aos elementos subjectivos (identidade e natureza das partes).
O pedido do autor é, neste aspecto, o limite da competência. A competência, ensina Redenti, «afere-se pelo quid disputatum (quid decidendum, em antítese com aquilo a que será mais tarde o quid decisum)». Costuma dizer-se, neste caso, que a competência se determina pelo pedido do autor (Manuel de Andrade, in Noções Elementares de Processo Civil, pags. 90/91; Acs. do STA de 26/05/1999, Rec. nº 40 648; de 30/06/1999, Rec. nº 46 161. Também do Tribunal de Conflitos, de 11/07/2000, Proc. Nº 318, in AD nº 468/1630; 5/02/2003, Proc. Nº 6/02; 8/07/2003, Rec. nº1/03 e de 9/07/2003, Proc. Nº 9/02, entre outros).
Tivéssemos nós unicamente presente que, afinal de contas, o que se discutia era um direito de propriedade do A., pretensamente violado, numa perspectiva unicamente civilista, teríamos já a solução para a controvérsia, pois que os tribunais administrativos não são especialmente aptos para resolução de questões emergentes de conflitos de direitos de propriedade sobre imóveis.
Se, no entanto, virmos mais de perto os termos em que a acção foi proposta, quer quanto aos elementos objectivos, quer quanto aos subjectivos, até mesmo quanto à essência dos pedidos formulados, já a solução se nos afigura, necessariamente, outra. É que, a alegada “violação” do direito de propriedade só surge “ex vi” do accionamento de uma garantia patrimonial em ordem ao pagamento de uma dívida fiscal. Isto é, não está em discussão nos autos se a propriedade sobre determinados bens pertence por direito à autora, pois sobre isso não há conflito que urja composição, mas sim, se a hipoteca legal accionada sobre aqueles bens assenta em pressuposto de facto existente e válido, quer dizer, se houve reversão válida contra a autora e se esta é ou não devedora, mesmo subsidiariamente, à Administração Fiscal de alguma soma de dinheiro. Sejamos, portanto, rigorosos: o que a autora quer é ver afastada a hipoteca sobre os seus bens. Só que isso conduz-nos logo para outro campo de estudo, que acabará por desaguar em conclusão contrária àquela por que a autora se bate.
Mas vejamos em mais pormenor.
Recordemos que em causa estava um crédito tributário de IVA, de coima e juros respectivos e que, por falta de pagamento voluntário, viria a ser alvo de um processo de execução fiscal. Crédito que o Fisco detinha sobre o devedor originário, “B…”, mas cuja execução viria a ser revertida contra a autora por despacho de fls. 58, ao abrigo dos arts. 24º, nº1, al.b) da Lei Geral Tributária e 8º, nº1 do Regime Geral das Infracções Tributárias.
Ora, a execução fiscal é o mecanismo posto à disposição da Administração Fiscal tendente à cobrança coerciva de tributos e de coimas (entre outras dívidas: art. 148º,CPPT). Nasce, assim, de uma relação jurídico-fiscal, que mesmo sendo obrigacional (obrigação fiscal), não deixa de ser de direito público (Soares Martinez, in Direito Fiscal, Almedina, pag. 161). O direito fiscal, ou direito tributário, é, de resto, ele mesmo um ramo de Direito Público (António Braz Teixeira, Princípios de Direito Fiscal, Vol. I, 3ª ed., pag. 23).
Mas, além de disciplinada pelo direito público aquela relação, serão, por outro lado, públicos os interesses que o Estado nela defende? A importância da resposta decorre do facto de, segundo o critério da natureza dos interesses, a relação ser de direito administrativo se em causa estiver um interesse da colectividade (M. Caetano, in Manual de Direito Administrativo, I, pag. 45; Pires de Lima e Antunes Varela, Noções Fundamentais de Direito Civil, 1973, I, pag. 45).
Por nossa parte, desde já adiantaremos, sem esforço, que o interesse subjacente era, efectivamente, público.
Como se costuma dizer, público é aquele que respeita à existência, conservação e desenvolvimento da colectividade política e socialmente organizada, daí que esteja presente em todas as normas jurídico-administrativas (M. Caetano, ob. cit., I, pag. 49). É o interesse colectivo, o interesse geral de uma comunidade, é o bem comum (bem comum que representa «aquilo que é necessário para que os homens vivam, mas vivam bem», segundo São Tomás de Aquino) que se associa à satisfação de necessidades colectivas (F. Amaral, in Direito Administrativo, II, pag.36). Sendo assim, trata-se de uma noção que acentua a ideia de interesse geral ou interesse comum, de modo a favorecer a totalidade ou pelo menos uma parte importante de uma comunidade. Um interesse público, geral, colectivo, comum, é assim um interesse objectivo, insusceptível de individualização: por pertencer a um grupo indiferenciado, não se identifica com os interesses próprios dos seus membros.
Ora, não se duvida que o interesse da Administração Fiscal na cobrança da obrigação tributária deriva de um interesse público: o interesse do Estado na obtenção de receitas públicas para levar a cabo as múltiplas funções e tarefas que lhe incumbem e que dele demandam avultados meios económicos. Na medida em que a despesa que o Estado efectua assenta no dever de promover o desenvolvimento do país e o bem estar dos seus cidadãos, a receita que o direito fiscal lhe proporciona serve para atingir esse fim e, assim, realizar o interesse geral e colectivo.
E é precisamente nesse pressuposto que a natureza dos interesses impõe que os litígios verificados a esse nível se dirimam nos tribunais tributários, dentro da ordem dos tribunais administrativos, como este mesmo tribunal já concluiu (neste sentido, v.g., Ac. do Tribunal de Conflitos, de 12/10/2004, Proc. nº 03/04).
Mas, se por fim quisermos levar em linha de conta a posição dos sujeitos da relação jurídica estabelecida entre a Administração e o contribuinte, é bem claro que aquela intervém com uma qualidade que lhe confere, por lei, e em razão do interesse publico que prossegue, uma posição de “potestas” e de supremacia sobre o outro sujeito da relação, impondo-lhe unilateralmente a sua vontade, por via da necessidade de realização do referido fim (Ac. do Tribunal de Conflitos, 18/12/2003, Proc. nº 02/03).
Essa posição de sujeito activo está patente não só na criação do imposto, do tributo, isto é, no poder de instituir impostos tout court - e que não exorbita de um poder tributário de feição legislativa (mas não é esse o poder que aqui interessa evidenciar) -, mas ainda na titularidade do crédito tributário no âmbito de uma relação tributária material e, finalmente, com particular ênfase e especial interesse para o caso que nos ocupa, na relação tributária formal no quadro já de um poder instrumental de aplicação da norma tributária e, assim, no uso concreto de um processo tendente à cobrança da dívida (Soares Martinez, in Manual de Direito Fiscal, 1990, Almedina, pag. 275 e sgs.).
Tudo se passa, por conseguinte, numa ambiência publicística.
Como se diz no citado aresto do Tribunal de Conflitos «O Estado actuou no exercício de um poder público, apreendendo judicialmente o bem, para se garantir de uma divida de que é credor, ou nessa qualidade.
Usou das “armas de Estado”, como Administração fiscal e como titular do poder tributário sobre os seus cidadãos – pessoas singulares ou jurídicas (…). Tanto é dizer que, a qualidade em que intervém o Estado, na relação conflituosa donde emerge o recurso, não é idêntica a um qualquer exequente particular, a requerimento do qual se fizesse judicialmente a penhora de um determinado bem, para garantir uma divida privada, que atingisse esfera jurídica de outrem, não devedor. A divida é fiscal, (Por outras palavras, trata-se de “um crédito emergente de relação juridico-tributária proveniente de tributo fiscal”».
Já agora, “ex abundanti”, por nos parecer de particular utilidade à hermenêutica em apreço, importa olhar para o que dispõe o art. 151º do CPTT:
«1.Compete ao tribunal tributário de 1ª Instância da área onde correr a execução, depois de ouvido o Ministério Público nos termos do presente Código, decidir os incidentes, os embargos, a oposição, incluindo quando incida sobre os pressupostos da responsabilidade subsidiária, a graduação e verificação de créditos e as reclamações dos actos materialmente administrativos praticados pelos órgãos de execução fiscal.
2. O disposto no presente artigo não se aplica quando a execução fiscal deva correr nos tribunais comuns, caso em que cabe a estes tribunais o integral conhecimento das questões referidas no número anterior».
Também para o art. 4º, nº1, do ETAF:
«1. Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto:
a) Tutela de direitos fundamentais, bem como direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares directamente fundados em normas de direito administrativo ou fiscal ou decorrentes de actos jurídicos praticados ao brigo de disposições de direito administrativo ou fiscal».
Tanto basta. Se tudo isto é assim, e se o que a autora pretende é afastar a hipoteca e respectivo registo legal sobre seus prédios no âmbito de um processo de execução fiscal (e apensos) instaurado no Serviço de Finanças de Paços de Ferreira – hipoteca, de resto, constituída ao abrigo do art. 195º, nº1, do CPTT (DL nº 433/99, de 26/10) – com o argumento de que nada deve ao Fisco e de que, por isso, ela fora ilegal, também por atentar contra o seu direito de propriedade, então a reacção que o presente processo patenteia, independentemente da forma de processo utilizada e da nomenclatura mais adequada - impugnação de actos lesivos (art. 49º, nº1, al.a), iii, e d) do ETA), oposição (cit. art. al. d)), impugnação da sua legitimidade enquanto responsável subsidiária (cit. art, al. d)), até mesmo reclamação (art. 276º do CPTT) - é própria de um processo a correr perante os tribunais tributários, pois que assim o impõem os arts. 151º do CPTT e 4º e 49 do ETAF (no mesmo sentido, ver citado acórdão do Tribunal de Conflitos de 12/10/2004, Proc. nº 03/04).
O que tudo significa, sem adicionais e escusadas delongas, que a jurisdição apropriada ao conhecimento da acção em que é pedido o cancelamento do registo da hipoteca, com fundamento na ilegalidade da reversão e da garantia, e bem assim o pagamento de indemnização pelos prejuízos que a hipoteca vem causando ao revertido é a administrativa e fiscal, a cujo tribunal tributário da área onde corre a execução caberá a respectiva competência.
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IV- Decidindo
Face ao exposto, acordam os juízes deste Tribunal de Conflitos em negar provimento ao recurso, confirmando o acórdão recorrido e declarando o tribunal tributário da área onde pende a execução o competente para a acção.
Sem custas (art. 97º do Dec. nº 19243, de 16/01/1931).
Lisboa, Tribunal de Conflitos, 29 de Novembro de 2006. – José Cândido de Pinho (relator) – João Manuel de Sousa FonteRui Manuel Pires Ferreira Botelho – José Amílcar Salreta Pereira – Jorge Artur Madeira dos Santos – Maria Laura de Carvalho Leonardo.