Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:045/19
Data do Acordão:11/03/2020
Tribunal:CONFLITOS
Relator:MARIA DO CÉU NEVES
Descritores:CONFLITO DE JURISDIÇÃO.
CONTRATO DE FACTORING.
FORNECIMENTO DE BENS E SERVIÇOS.
PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO.
COMPETÊNCIA DOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS.
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P26668
Nº do Documento:SAC20201103045
Data de Entrada:09/30/2019
Recorrente:A…………….. – SOCIEDADE FINANCEIRA DE CRÉDITO, S.A, NO CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE A 5ª VARA CÍVEL DE LISBOA E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO DE CÍRCULO DE LISBOA – UNIDADE ORGÂNICA 1
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Acordam no Tribunal de Conflitos
Por Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa [TRL] proferido em 13.03.2014, transitado em julgado, foi declarada a incompetência absoluta, em razão da matéria, dos Tribunais Comuns para conhecer da acção declarativa com processo ordinário intentada pela ora recorrente A…………….-Instituição Financeira de Crédito, S.A. contra a B……………… EIM, na qual peticiona a condenação da Ré no pagamento da quantia de 2.402.615,36€, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, decorrentes do fornecimento de bens e da prestação de serviços no âmbito de contratos de empreitada para a construção do centro de triagem e edifício administrativo [com fornecimento e montagem da linha de triagem e de duas estações de recepção e armazenamento de recicláveis e ampliação de quatro estações de tratamento de resíduos sólidos urbanos, com financiamento garantido em 70€ pelo Programa Operacional Regional do Alentejo e em 10€ pelo Instituto de Resíduos].

Entendeu o TRL que apesar de os créditos decorrentes da execução dos contratos de empreitada terem sido cedidos por esta Sociedade à C…………..-Sociedade de Factoring, S.A., [que foi incorporada na “D……………… SGPS”, que transformada em INSTITUIÇÃO FINANCEIRA DE CRÉDITO, adoptou a Firma A……………… – INSTITUIÇÃO FINANCEIRA DE CRÉDITO S.A., ora autora e recorrente] através de contrato de factoring, celebrado em 17.07.2006, a causa de pedir não tem na sua origem exclusivamente no contrato de factoring, típico contrato de direito privado, antes resulta da relação jurídica que gerou os créditos assumidos pela Sociedade Autora/recorrente através de tal contrato de factoring, a este subjacente, para cujo conhecimento são competentes os Tribunais Administrativos.


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Por outro lado, por Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, proferido em 28.11.2018, transitado em julgado, que confirmou a sentença do TAC de Lisboa de 31.03.2018, em recurso jurisdicional dela interposto pela ora recorrente A………………. – Instituição Financeira de Crédito, S.A., foi declarada igualmente a incompetência absoluta, em razão da matéria dos Tribunais Administrativos para conhecimento da acção administrativa intentada em 07.07.2014 pela Recorrente A……………… – Instituição Financeira de Crédito, S.A., contra a B…………….., EIM, com o mesmo pedido e causa de pedir, por se entender que a respectiva petição inicial, foi configurada pela autora, como exclusivamente decorrente do contrato de factoring, de direito privado.

E deste modo, concluiu o TCAS que a competência para julgar a acção pertence aos Tribunais Judiciais.


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Nesta sequência veio a autora A…………….. – Instituição Financeira de Crédito, S.A. interpor recurso para este Tribunal de Conflitos para decisão do conflito negativo de jurisdição [artº 111º do CPC].

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FACTUALIDADE TIDA POR RELEVANTE:

1. A ré é uma Empresa Pública intermunicipal, pessoa colectiva de direito público, dotada de autonomia administrativa, financeira e patrimonial [A C……………. -Sociedade de Factoring, S.A., foi incorporada na “D………….., SGPS”, que transformada em INSTITUIÇÃO FINANCEIRA DE CRÉDITO, adoptou a Firma A…………….. – INSTITUIÇÃO FINANCEIRA DE CRÉDITO S.A., ora autora e recorrente] cujo objecto é assegurar o serviço público de gestão do sistema integrado de recolha, tratamento e valorização dos resíduos sólidos urbanos da área territorial dos Municípios associados, bem como o transporte desses resíduos.

2. No exercício da sua actividade, a autora, sociedade anónima cujo objecto é o exercício de factoring, celebrou em 21.05.2000 um contrato de factoring com a sociedade comercial E…………, S.A. através do qual adquiriu créditos da referida sociedade sobre a ré (a cedência à autora dos créditos titulados pelas facturas elencadas no artº 14º da p.i. ocorreu em 17.07.2006, ao abrigo do mesmo contrato de factoring) créditos esses emergentes dos contratos de empreitada celebrados com a ré.


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Estamos perante um conflito negativo de jurisdição motivado pela pronúncia de duas decisões judiciais, de sentido inverso, emitidas, primeiro, por um tribunal da jurisdição comum e, subsequentemente, por um tribunal da jurisdição administrativa, decisões que, mutuamente declinaram a competência material para dirimir o litígio submetido a juízo.

O poder jurisdicional, é sabido, encontra-se repartido por diversas categorias de tribunais, segundo a natureza das matérias das causas que perante eles se suscitam - cfr. arts. 209º e segs da Constituição da República Portuguesa (CRP).

Nos termos do disposto no artº 211º, nº 1 da CRP, os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria civil e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens jurídicas.

Estabelecendo o artº 40º, nº 1 da Lei nº 62/2013, de 26/8 – Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ) -, que “os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional” (também o artº 64º do CPC).

Por sua vez, o artº 212º, nº 3 da CRP estabelece que, “compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.

Também o artº 1º, nº 1 do ETAF, na redacção aplicável – Lei nº 59/2008 de 11.11, dado que a acção deu entrada no TAC de Lisboa em 07.07.2014 -, estatui que, “os tribunais administrativos e fiscais são órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações administrativas e fiscais”.

E no artº 4º do ETAF estabelece-se:

«(…)

Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente, por objecto:

(…)

e) Questões relativas à validade de actos pré-contratuais e à interpretação, validade e execução de contratos a respeito dos quais haja lei específica que os submeta, ou que admita que sejam submetidos, a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público;

f) Questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível de acto administrativo, de contratos especificadamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo, ou de contratos em que, pelo menos, uma das partes seja uma entidade pública (…);

Esta redacção foi mantida na versão actual dada pelo DL nº 214-G/2015 de 02.10, onde se prevê que “(…) Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas colectivas de direito público ou outras entidades adjudicantes (…)

(…)

e) Validade de actos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas colectivas de direito público ou outras entidades adjudicantes; (…)».

Ressuma do exposto que a definição da competência da jurisdição administrativa resulta do conceito de relações jurídicas administrativas e de função administrativa, entre entidades em que pelo menos um dos sujeitos, é uma entidade pública no exercício de um poder público, com vista à realização de um interesse público legalmente definido, e regulado por normas de direito público administrativo.

Por outro lado, é sabido que a competência em razão da matéria se afere nos termos propostos pelo autor em sede de petição inicial [independentemente da idoneidade do meio processual utilizado e do juízo de prognose quanto à viabilidade da acção], pois o que verdadeiramente releva é a natureza dos sujeitos processuais intervenientes.

Ou seja, a determinação do tribunal competente em razão de matéria, é aferida em função dos termos em que é formulada a pretensão do autor, incluindo os respectivos fundamentos; afere-se por referência à relação jurídica controvertida, tal como exposta na petição inicial, atendendo-se ainda à identidade das partes, pretensão formulada e respectivos fundamentos, sendo, no entanto, nesta fase, indiferente o juízo de prognose acerca da viabilidade ou não da acção, face à sua configuração - cfr. entre muitos outros, os acórdãos do Tribunal dos Conflitos de 28-09-2010, processo nº 2/10 de 29-03-2011, processo nº 2510, de 02-03-2011, processo 9/10 e de 09-09-2010, proc. 011/10.

No caso dos autos, a causa de pedir resulta da relação jurídica que gerou os créditos assumidos pela autora através do contrato de factoring que assenta em termos estruturais na cessão de créditos prevista no artº 577º do Código Civil [contrato de natureza tipicamente privada – cfr. DL nº 171/95 de 18.07] no qual a ré não participou.

No entanto, o contrato de factoring, como se tem vindo a entender, não constitui um negócio jurídico isolado e abstracto; antes tem por objecto a transmissão de uma obrigação de pagamento fundada numa relação negocial anterior que lhe dá causa, sendo-lhe aplicável o disposto no artº 585º do Cód. Civil – cfr Acórdão do STJ de 02.03.2017, onde se refere que embora a causa de pedir se baseie essencialmente no contrato de factoring «este tem sempre um outro negócio por trás dele, o negócio constitutivo do direito de crédito cedido, sendo permitido ao devedor, que lhe é alheio, arguir contra o factor (cessionário) todos os meios de defesa que poderia invocar contra o aderente (cedente) relativamente a este negócio como se a transmissão do crédito não tivesse operado».

Regressando de novo aos autos, temos por assente que a autora adquiriu os créditos através do contrato de factoring, créditos esses que resultaram da execução de contratos de empreitada promovidos pela ré, enquanto pessoa colectiva de direito público e entidade com a finalidade de prosseguir o interesse público.

São facturas que titulam a execução dos referidos contratos, os quais, pela natureza da entidade que os promove e do respectivo objecto - prestações de serviços e empreitadas sujeitas às regras da concorrência do mercado, devem ser enquadradas no procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público – cfr. artºs 1º, 2º e 16º do Código dos Contratos Públicos na redacção dada pelo DL nº 18/2008 de 29.01.

Ou seja, devem ser enquadrados no âmbito das alíneas e) e f) do nº 1 do artº 4º do ETAF [na redacção dada pela Lei nº 59/2008 de 11.09 e na alínea e) do nº 1 do mesmo diploma na redacção dada pelo DL nº 214-G/2015 de 02.10.

Aliás esta tem sido a posição assumida pela jurisprudência deste Tribunal dos Conflitos, sendo manifesto que a competência para decidir do mérito da presente acção pertence à jurisdição administrativa, in casu, ao Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa


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Pelo exposto, julga-se que a competência para a acção cabe aos tribunais administrativos.

Sem custas.

Lisboa, 03 de Novembro de 2020

[A relatora consigna e atesta, que nos termos do disposto no art. 15º-A do DL nº 10-A/2020, de 13.03, aditado pelo art. 03.º do DL nº 20/2020, de 01.05, têm voto de conformidade com o presente Acórdão os restantes integrantes da formação de julgamento, Conselheiros António José Moura de Magalhães, Jorge Artur Madeira dos Santos, Raimundo Manuel e Silva Queirós, Ana Paula Portela e Maria Paula Moreira Sá Fernandes].