Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:048/14
Data do Acordão:04/22/2015
Tribunal:CONFLITOS
Relator:MARIA BENEDITA URBANO
Descritores:DIVIDAS HOSPITALARES
Sumário:Compete à jurisdição administrativa, ex vi do disposto na alínea e) do n.º 1, do artigo 4.º do ETAF, o conhecimento de acções em que as dívidas hospitalares cujo pagamento é reclamado têm como fonte contratos que foram submetidos a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público.
Nº Convencional:JSTA00069175
Nº do Documento:SAC20150422048
Data de Entrada:09/18/2014
Recorrente:A..., S.A., NO CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO ENTRE A 6ª VARA CÍVEL DE LISBOA E OS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS E FISCAIS
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:CONFLITO NEGATIVO
Objecto:SENT VARA CIVEL LISBOA - AC TRL
Decisão:DECL COMPETENTE JURISDIÇÃO ADMINISTRATIVA.
Área Temática 1:DIR ADM CONT - CONFLITO NEGATIVO.
Legislação Nacional:DL 185/2002 ART9.
DL 218/99.
CONST76 ART211 N1 ART212 N3.
ETAF ART1 N1 ART4 N1 E
DL 111/02 ART3
CCP ART1 N6.
Jurisprudência Nacional:AC TCF PROC028/09 DE 2011/03/11.; AC TCF PROC021/11 DE 2012/02/16.
Referência a Doutrina:MÁRIO AROSO ALMEIDA E CARLOS CADILHA - COMENTÁRIO AO CÓDIGO PROCESSO NOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS 2007 PAG20.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam no Tribunal de Conflitos:

1. Relatório

1. A…………… SA, devidamente identificada nos autos, intentou na então 7.ª Vara Cível do Tribunal de Comarca de Lisboa acção com processo ordinário contra B………….., S.A., Região Autónoma dos Açores (RAA) e Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo, IP (ARS Lisboa e Vale do Tejo, IP).

Nela foi peticionada, a título principal, a condenação da Ré B………. a pagar-lhe a quantia de € 73.644,38, acrescida dos juros de mora comerciais vencidos até à propositura da acção, no valor de € 9.841,52, bem como dos juros que se vencerem a partir de tal data até ao efectivo pagamento.
Admitindo a possibilidade de ocorrerem dúvidas quanto à responsabilidade da Ré B…………. pelo pagamento da quantia devida, subsidiariamente considera que deverá a RAA assumir a responsabilidade do pagamento das quantias mencionadas.

A A. deduziu ainda pedido subsidiário contra a 3.ª Ré, a ARS Lisboa e Vale do Tejo, IP, no montante de € 42.213,53 e juros de mora comerciais vencidos até à propositura da acção, no valor de € 5.807,46, alegando ser esta entidade pública parte contratante no contrato de gestão celebrado com a autora, “e cabendo ao Estado a responsabilidade perante os estabelecimentos integrados no SNS pelos encargos da prestação de cuidados de saúde no quadro institucional do SNS, quando não existam terceiros responsáveis e deduzida a parte que corre por conta do utente” (fl. 1049).

A autora, que gere o C…………. em regime de parceria público-privada, estando integrada no Serviço Nacional de Saúde (SNS) e obrigada a garantir o acesso universal às prestações de saúde aos beneficiários do SNS, alega ter prestado cuidados de saúde, no período de 14.09.09 a 21.11.11, a utentes do Serviço Regional de Saúde da RAA (SRSRAA).

As Rés, nas respectivas contestações, invocaram, para o que agora especialmente releva, a incompetência material do tribunal, por se tratar de uma acção da competência dos tribunais administrativos, nos termos do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF).

A autora, em resposta, sustentou a improcedência da excepção de incompetência em razão da matéria (incompetência absoluta), afirmando a competência dos tribunais cíveis.

O tribunal de primeira instância considerou que a competência para o conhecimento da acção é dos tribunais administrativos, pelo que julgou verificada a excepção de incompetência absoluta, absolvendo as Rés da instância.

Esta decisão foi confirmada pelo acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa (7.ª Secção), de 06.05.14, de fl. 1067.

Através do requerimento de fls 1073 e ss, a autora, inconformada, veio interpor recurso para o Tribunal dos Conflitos, ao abrigo dos artigos 101.º, n.º 2, e 638.º, n.º 1, do CPC, da decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa que “manteve a sentença de 15 de Novembro de 2013 que julgou em primeira instância procedente a excepção de incompetência absoluta do tribunal em razão da matéria suscitada pelas três Rés, ora Recorridas, e as absolveu todas da instância, e condenou a autora, ora Recorrente, em custas” (fls 1073-4).

A ora “Recorrente não se conforma com a decisão contida nesse acórdão, uma vez que a mesma resulta de um erro de julgamento acerca do âmbito de aplicação do Decreto-Lei n.º 218/99, de 15 de Junho, do n.º 3 do artigo 212.º da CRP, das alíneas f) e j) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF e do artigo 64.º do CPC” (fl. 1074).

2. O Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, concluindo pela competência da jurisdição comum (fl. 1135).

3.Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

2. Enquadramento e apreciação do conflito

1. A A., entidade gestora integrada no SNS (art. 9.º do DL n.º 185/2002, de 20.08, e Cláusula 32.ª do Contrato de Gestão do C……….), invoca que detém um crédito sobre as rés. Mais concretamente, reclama a cobrança de dívidas hospitalares relativas a cuidados de saúde prestados a utentes beneficiários do Serviço Regional de Saúde da Região Autónoma dos Açores (SRSRAA). Uma vez que entende tratar-se de uma situação de mera cobrança de dívidas, pretende fazê-lo ao abrigo do DL n.º 218/99, tendo considerado o SRSRAA um subsistema de saúde, e, em função do teor deste decreto-lei, intentou uma acção num tribunal cível – optou, portanto, pela jurisdição comum.

Já as rés B………….. e RAA salientam que não existe uma qualquer relação contratual de prestação de serviços estabelecida entre elas e a A., não sendo elas as devedoras de tais créditos, antes o sendo o SNS; e entendem estar em causa uma questão que envolve aquela outra mais ampla do financiamento e distribuição de encargos entre o Estado e, no caso concreto, a RAA. Assim sendo, sustentam ser a jurisdição administrativa a competente para dirimir o conflito que as opõe.

Como se pode constatar, A. e rés delimitam de forma distinta a questão controvertida, designadamente quanto ao seu objecto, e, em função disso, discordam quanto à questão prévia da atribuição da competência: à jurisdição comum (como pretende a A.) ou à jurisdição administrativa (como pretendem as rés). É esta última questão que compete, nesta sede e agora, apreciar e decidir.

2. Neste particular domínio, há que considerar, a título de enquadramento genérico da questão sub judice, alguns preceitos, como, desde logo, o artigo 211.º, n.º 1, da CRP, o qual dispõe que “Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais”.

Por sua vez, o artigo 212.º, n.º 3, da CRP, estipula que “Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.

No plano legislativo, interessa mencionar, antes de mais, o artigo 64.º do CPC, segundo o qual “São da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”.

A mencionar, ainda, artigo 1.º, n.º 1, do ETAF, nos termos do qual “Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.

3. Feito este enquadramento prévio e genérico, há que dizer que se mostra consensual o entendimento de que a competência do tribunal em razão da matéria se afere de harmonia com a relação jurídica controvertida, em princípio, tal como definida pelo autor no que se refere aos termos em que propõe a resolução do litígio, a natureza dos sujeitos processuais, a causa de pedir e o pedido. Em nada releva, para o caso, saber se a pretensão formulada é ou não procedente ou se as partes são ou não legítimas.

Importa aqui, essencialmente, ter em consideração a relação jurídica controvertida.

No presente caso, o Estado português, representado pela Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo, IP (ARSLVT, IP), celebrou um contrato de gestão com a A. (A………… – entidade responsável pela prestação dos cuidados de saúde) e com a D………. (entidade responsável pela gestão do edifício) – sobre a possibilidade de celebração de contratos de gestão no sector da saúde ver o n.º 1 da Base XXXVI (Gestão dos hospitais e centros de saúde) da Lei n.º 48/90, de 24.08, com a redacção dada pela Lei n.º 27/2002, de 08.11.

Esse contrato foi submetido a um procedimento pré-contratual, regulado por normas de direito público, no caso, o DL n.º 185/2002, de 20.08 (que define o regime jurídico das parcerias em saúde com gestão e financiamento privados) – actualmente valem, no que se refere ao procedimento prévio à contratação, as normas constantes do DL n.º 111/2012, de 23.05 (que revogou o DL n.º 86/2003, de 26.04), que estabelece o regime aplicável às Parcerias Público Privadas (PPP), e cujas normas prevalecem sobre todas as outras normas relativas a parcerias público-privadas (art. 3.º). Na sequência do concurso realizado foi assinado, em 22.02.08, o contrato de gestão entre os referidos contraentes, nos termos do qual foi adjudicada à Autora a gestão do C………..

No mencionado contrato de gestão, de natureza administrativa, e que, como se disse, foi objecto de um procedimento pré-contratual, estão definidos, entre outros, aspectos como o da delimitação dos beneficiários do SNS para efeitos de acesso às prestações de saúde (cláusula 28.ª); o da identificação dos utentes e dos terceiros pagadores (cláusula 31.ª); o da remuneração anual da entidade gestora do estabelecimento (cláusula 44ª); o dos termos em que se dá o pagamento da remuneração anual da entidade gestora do estabelecimento (cláusula 46.ª); e o do pagamento da parcela a cargo do SNS (cláusula 47.ª).

Independentemente das considerações que possam ser feitas sobre o conteúdo do contrato de gestão em causa, é conveniente sublinhar que o mesmo foi submetido a um procedimento pré-contratual específico, regulado por normas constantes de diploma legislativo. Interessa, então, para o efeito, convocar a alínea e) do n.º 1, do artigo 4.º do ETAF, que assim determina: “1 – Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto: (…) e) Questões relativas à validade de actos pré-contratuais e à interpretação, validade e execução de contratos a respeito dos quais haja lei específica que os submeta, ou que admita que sejam submetidos, a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público” (itálico nosso). O caso dos autos cai, assim, no âmbito da referida alínea e) do n.º 1, do artigo 4.º do ETAF. Como se extrai do Acórdão do Tribunal de Conflitos, de 11.03.11, Proc. n.º 028/09, que é citado pelo também Acórdão do Tribunal de Conflitos, de 16.02.12, Proc. n.º 021/11, que agora transcrevemos, “essa disposição do ETAF «abstrai da natureza das normas que materialmente regulam o contrato, colocando-o na órbita dos tribunais administrativos, desde que a lei preveja a possibilidade da sua submissão a um procedimento pré-contratual de direito público. O acento tónico indiciador da natureza administrativa da relação jurídica é aqui colocado, não no conteúdo do contrato, nem na qualidade das partes, mas nas regras de procedimento pré-contratuais potencialmente aplicáveis». No mesmo sentido pronunciam-se Mário Aroso de Almeida e C. A. Fernandes Cadilha quando afirmam: «Sem prejuízo de outros casos que possam resultar de legislação especial, inscreve-se ainda nas competências dos tribunais administrativos, por força do art. 4.º, n.º 1 – que, deste modo, amplia o âmbito da jurisdição administrativa (…) a apreciação de litígios: b) relativos à interpretação, validade e execução de qualquer tipo de contratos, desde que haja lei especial que diga que esse tipo específico de contrato (ou que um contrato com esse objecto) deve ser obrigatoriamente precedido (ou pode sê-lo) de um procedimento pré-contratual (concurso público, concurso limitado, negociação ou ajuste directo) regulado por normas de direito público (art. 4.º, n.º 1, alínea e), segunda parte) (Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 2007, p. 20)”. Em edição posterior do seu Comentário, os mesmos autores referem o seguinte: “Merece relevância autónoma o regime aplicável em matéria de contratos. Com efeito, parece dever entender-se que o âmbito dos litígios em matéria contratual, relativos à interpretação, validade ou execução de contratos, que estão submetidos à apreciação dos tribunais administrativos, tal como ele resulta delimitado pelas alíneas e) e f) do n.º 1, do artigo 4.º do ETAF, pode ser desdobrado em dois grandes grupos: a) os contratos públicos, que, independentemente da sua designação e natureza, são celebrados pelas entidades adjudicantes a que se refere o CCP e cujo procedimento de formação está sujeito a um regime de direito público: é o que resulta da previsão da alínea e) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF, que compreende a situação dos contratos administrativos previstos na alínea d) do n.º 6 do artigo 1.º do CCP, mas não se esgota nela, porque se estende a todos os contratos submetidos a regras pré-contratuais públicas, independentemente da natureza das prestações que eles possam ter por objecto” (Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 2010, p. 23).

4. Em suma, na base da obrigação de prestação de cuidados de saúde a utentes do SNS está um contrato de gestão, de cunho claramente administrativo, que a A. celebrou com o Estado, representado pela ARSLVT, IP (entidade pública responsável pela gestão do contrato), e no qual se definem os termos em que devem ser prestados tais cuidados de saúde.

Estamos perante um contrato de gestão no sector hospitalar em que confluem normas de direito público, designadamente, para o que agora interessa, aquelas que respeitam ao respectivo procedimento pré-contratual. Deste modo, os litígios a ele relativos devem ser dirimidos nos tribunais administrativos, nos termos da alínea e) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF.

3. Decisão

Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso, julgando-se, tal como no acórdão recorrido, que os tribunais administrativos são os competentes para a presente acção.

Sem custas neste Tribunal de Conflitos


Lisboa, 22 de Abril de 2015. – Maria Benedita Malaquias Pires Urbano (relatora) – António Jorge Fernandes de Oliveira Mendes – Alberto Augusto Andrade de Oliveira – Fernanda Isabel de Sousa Pereira – Vítor Manuel Gonçalves Gomes – João Moreira Camilo.