Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:055/14
Data do Acordão:03/25/2015
Tribunal:CONFLITOS
Relator:TERESA DE SOUSA
Descritores:CONFLITO DE JURISDIÇÃO. RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL. COMPETÊNCIA DOS TRIBUNAIS JUDICIAIS.
Sumário:I – Cabe aos tribunais judiciais julgar todas as causas cujo conhecimento a lei não atribua a outras espécies de tribunais, cabendo aos tribunais administrativos dirimir os conflitos emergentes de relações jurídicas administrativas.
II – À luz do disposto no DL nº 48051, de 21.11.67, a competência dos tribunais administrativos para conhecerem de acções fundadas em responsabilidade civil extracontratual supõe que as pessoas colectivas demandadas sejam o Estado ou outra pessoa colectiva pública.
III – Assim, visto que à data dos factos geradores da eventual responsabilidade (2005/2006) vigorava ainda o regime de responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas colectivas de direito público previsto no DL nº 48051, cabe aos tribunais comuns a competência para conhecer de acção.
Nº Convencional:JSTA000P18788
Nº do Documento:SAC20150325055
Data de Entrada:12/18/2014
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE AS VARAS DE COMPETÊNCIA MISTA DE GUIMARÃES E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE BRAGA
AUTOR: A............ E OUTROS
RÉU: EP - ESTRADAS DE PORTUGAL - EPE E OUTROS
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: CONFLITO Nº 55/14

Acordam no Tribunal dos Conflitos:

1. Relatório

A…………, B…………, C…………, D…………, E………… e F………… instauraram, no Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, a presente acção declarativa, com processo ordinário, contra G………… S.A. e H………… ACE (a acção também foi instaurada contra EP Estradas de Portugal SA, mas esta veio a ser julgada parte ilegítima e absolvida da instância) formulando os pedidos de:
“A-) Ser declarado e reconhecido o direito de propriedade do autor da herança e da 1.ª A. sobre os prédios supra descritos no art.º 5.º;
B-) Ser declarada a existência dos caminhos supra descritos nos art.ºs 29.º a 33.º;
C-) Ser declarada a existência do direito dos AA. sobre as águas supra descritas nos art.ºs 52.º e 56.º;
D-) Ser declarada a existência das servidões de aqueduto e presa a favor dos prédios dos AA. supra descritas sob os art.ºs 56.º a 63.º;
E-) Serem as Rés condenadas a construírem um caminho de acesso às partes sobrantes dos prédios das parcelas de terreno expropriadas com os n.ºs 696, 700 e 703, supra descritos sob o art. 5.º, alíneas f), g) e h) e nos termos também acima mencionados nos art.ºs 39.º e 40.º;
F-) Serem as Rés condenadas a procedem à demarcação daqueles prédios nos termos supra descritos nos art.ºs 41.º a 43.º;
G-,) Serem as Rés condenadas a taparem o aqueduto supra descrito no art.º 44.º ou a pagarem uma indemnização aos AA. pela constituição da servidão no valor a calcular em execução de sentença;
H-) Serem as Rés condenadas a construírem um acesso carral aos prédios dos AA. e nos termos supra descritos nos art.ºs 48.º a 51.º;
l-) Serem as Rés condenadas a limparem o poço e a instalarem o tubo condutor das águas nos termos supra descritos nos art.ºs 52.º a 55.º;
J-) Serem as Rés condenadas a construírem o aqueduto de rego a céu aberto e para conduzir as águas da Poça das Sortes, nos termos supra descritos nos art.ºs 56.º a 63.º;
L-) Serem as Rés condenadas a construírem a poça supra descrita no art.º 65.º;
M-) Serem as Rés condenadas a pagarem aos AA. uma indemnização pelos prejuízos que estes estão a suportar, nos termos supra descritos nos art.ºs 47.º, 51.º, 55.º, 64.º e 68.º e a melhor calcular em execução de sentença”.
Alegam, em síntese, que são herdeiros de I…………, falecido a 26.04.1992, de cuja herança fazem parte os seguintes imóveis:
“a-) ………, sito no lugar da ………, freguesia de ………, da comarca de Guimarães, descrito na Conservatória sob o n.º 586 e inscrito na matriz sob o artigo 457;
b-) ………, sita nos ditos lugar da ………, freguesia de ………, descrita na Conservatória sob o n.º 580 e inscrita na matriz sob o artigo 459;
c-) ………, sito nos ditos lugar da ………, freguesia de ………, não descrito na Conservatória e inscrito na matriz sob o artigo 464;
d-) ………, sito no lugar de ………, daquela freguesia de ………, descrito sob o n.º 581 e inscrito na matriz sob o artigo 478;
e-) ………, sito no lugar do ………, daquela freguesia de ………, não descrito na Conservatória e inscrito na matriz sob o artigo 460;
f-) ………, sito no lugar de ………, daquela freguesia de ………, descrito na Conservatória sob o n.º 330 e inscrito na matriz sob o artigo 18;
g-) ………, sito no lugar de ………, daquela freguesia de ………, descrito na Conservatória sob o n.º 328 e inscrito na matriz sob o artigo 6;
h-) ………, sito naqueles lugar da ………, freguesia de ………, descrito na Conservatória sob o n.º 329 e inscrito na matriz sob o artigo 9.”
Por despachos do Secretário de Estado das Obras Públicas, publicados no Diário da República, foi declarada a utilidade pública com carácter de urgência de parcelas de terreno, desanexadas dos prédios acima descritos.
No exercício da sua actividade, a EP Estradas de Portugal SA (que se alega ser uma pessoa colectiva de direito público que tem a função de prestação de serviço público no planeamento, gestão, desenvolvimento e execução da política de infra-estruturas rodoviárias referidas no Plano Rodoviário Nacional), para a execução da obra de construção da auto-estrada denominada A11/IP9 Braga-Guimarães, IP4/A4 Lanço Guimarães-Fafe, Sublanço Selho/Calvos, Sublanço Calvos/Vizela, concessionou a concepção, projecção, construção, financiamento e conservação de vários lanços da referida auto-estrada à ré G………… e esta entregou à ré H………… a realização dos trabalhos de concepção, projecção e construção daquele lanço de auto-estrada.
A construção dos sublanços foi concluída no final de 2006.
Com as obras que as rés efectuaram, naquelas parcelas de terreno expropriadas, para a construção dos indicados lanços, causaram aos autores diversas lesões “nos seus direitos de propriedade e de servidões”.

As Rés deduziram a excepção de incompetência absoluta do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga.

Os autores responderam defendendo o entendimento de que, neste ponto, assiste razão às Rés, pelo que pediram a remessa dos autos para o Tribunal Judicial da Comarca de Guimarães.

A Meritíssima Juíza do TAF de Braga proferiu despacho em que decidiu o seguinte:
“Com os fundamentos supra expostos, declaro este Tribunal Administrativo de Braga, incompetente em razão da matéria para conhecer do mérito da causa e, consequentemente, absolvo os Réus da instância (Artigos 288.º, n.º 1 al. a) do CPC).
Determino que, após trânsito, os presentes autos sejam remetidos às Varas Mistas do Tribunal Judicial da Comarca de Guimarães, deferindo ao requerido, pelas Autoras.”

Nas Varas de Competência Mista de Guimarães, o Meritíssimo Juiz proferiu decisão em que conclui que:
“Pelo exposto, julga-se verificada a excepção de incompetência material de Tribunal e, consequentemente, declara-se este tribunal materialmente incompetente para conhecer dos pedidos formulados pelos autores e competente o Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga.”

Os autores interpuseram recurso desta decisão, para o Tribunal da Relação de Guimarães que por acórdão de 29.04.2014 decidiu pela improcedência do recurso, mantendo a decisão recorrida, “de que são competentes para conhecer do litígio em causa, tal como os Autores o formulam na petição inicial, os tribunais da ordem administrativa.

Os autos baixaram às Varas de Competência Mista de Guimarães (entretanto extintas) nas quais, por despacho de 25.06.2014, foi ordenada a remessa do processo a este Tribunal dos Conflitos, por estar “instaurado um conflito – negativo – de jurisdição que importa resolver – cfr. art.º 111.º, n.º 1 do C.P.Civil.
Notificadas as partes e o Ministério Público para se pronunciarem, vieram os Autores dizer que não se opõem à remessa do processo ao Tribunal dos Conflitos, a fim de ser resolvido o presente conflito negativo de jurisdição. Também o MºPº junto da agora Instância Central Cível de Guimarães, Comarca de Braga veio requerer a remessa dos autos a este Tribunal dos Conflitos para que o presente conflito seja decidido.

Neste Tribunal o Exmº Magistrado do Ministério Público emitiu parecer a fls. 1035 a 1037, no sentido de que o presente conflito de jurisdição deve ser resolvido com a atribuição de competência aos tribunais comuns, uma vez que à data dos factos geradores de responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público estava em vigor o DL nº 48051, de 21.11.1967, que apenas era aplicável a entidades, funcionários ou agentes e não a entidades privadas.

2. Fundamentação
Tendo em atenção os factos já referidos em sede de relatório, cumpre decidir.
Através da presente acção os Autores pretendem a condenação das Rés a reconhecer o respectivo direito de propriedade sobre determinados prédios e águas, a repor o estado das coisas, na medida do possível, como existia nos imóveis em causa, antes da intervenção das rés, na sequência da expropriação, e, ainda, no pagamento de indemnização pelos danos causados com tal intervenção ocorrida no âmbito da construção de lanços de auto-estrada, concessionada pela EP Estradas de Portugal, SA (que, como já se disse, não é parte na acção) à Ré G………… e tendo esta entregue à ré H………… a realização dos trabalhos no âmbito da empreitada.
Nos termos do disposto no art. 211º, nº 1 da CRP os Tribunais Judiciais são os tribunais comuns em matéria civil e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens jurídicas.
Estabelecendo o art. 40º, nº 1 da Lei nº 62/2013, de 26/8 – Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ) -, que “os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional” (também o art. 64º do CPC).
Por sua vez, art. 212º, nº 3 da CRP estabelece que, “compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.
Também o art. 1º, nº 1 do ETAF estatui que, “os tribunais administrativos e fiscais são órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações administrativas e fiscais”.
E a respeito do âmbito da jurisdição administrativa e, no que interessa para o caso dos autos, são da competência dos tribunais administrativos, segundo a alínea i) do art. 4º do ETAF os litígios sobre a responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados, aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público.
Refere C. A. Fernandes Cadilha, in Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, pág. 49: “tal como de resto sucede em relação a órgãos e serviços que integram a Administração Pública, o regime da responsabilidade administrativa é apenas aplicado no que se refere às acções ou omissões em que essas entidades tenham intervindo investidas de poderes de autoridade ou segundo o regime de direito administrativo, ficando excluído os actos de gestão privada e, assim, todas as situações em que tenham agido no âmbito do seu estrito estatuto de pessoas colectivas privadas".
Como se diz no Acórdão deste Tribunal dos Conflitos de 30.05.2013, nº 17/13, consultável in www.dgsi.pt, “são dois os factores determinativos do conceito de actividade administrativa. O primeiro refere-se ao exercício de prerrogativas de poder público, que equivale ao desempenho de tarefas públicas para cuja realização sejam outorgados poderes de autoridade. O segundo respeita a actividades que sejam reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo.”.
Segundo a definição de J.C. Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa (Lições), 8ª ed., págs. 57/58, são relações administrativas “aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido”. Igualmente neste sentido vai a jurisprudência, v.g., nos acórdãos deste Tribunal dos Conflitos de 04.11.2009, proc. 06/09, de 20.01.2010, proc. 25/09, de 09.09.2010, proc. 11/10, de 28.09.2010, proc. 10/10 e de 12.01.2012, proc. 08/11).
Actualmente, para delimitar a competência material dos tribunais administrativos em matéria de responsabilidade civil extracontratual, há que ter presente a Lei nº 67/2007 de 31 de Dezembro sobre o regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas.
Neste diploma a respeito do âmbito de aplicação do referido regime preceitua o art. 1º, nº 5, o seguinte: “As disposições que, na presente lei, regulam a responsabilidade das pessoas colectivas de direito público, bem como dos titulares dos seus órgãos, funcionários e agentes, por danos decorrentes do exercício da função administrativa, são também aplicáveis à responsabilidade civil de pessoas colectivas de direito privado e respectivos trabalhadores, titulares de órgãos sociais, representantes legais ou auxiliares, por acções ou omissões que adoptem no exercício de prerrogativas de poder público ou que sejam regulados por disposições ou princípios de direito administrativo.”
Na prática, e tal como se refere no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães proferido nos autos, o nº 5 do art. 1º da Lei nº 67/2007 concretiza o princípio previsto no art. 4º, nº 1, alínea i) do ETAF, de que compete aos tribunais administrativos apreciar as questões atinentes à responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público.
A circunstância de se referir nas próprias bases do contrato de concessão aprovadas pelo DL nº 248-A799, de 6/7, no respectivo capítulo XII, atinente à “Responsabilidade extracontratual perante terceiros”, base LXXIII, sob a epígrafe “Pela culpa e pelo risco”, que: “A Concessionária responderá, nos termos da lei geral, por quaisquer prejuízos causados a terceiros no exercício das actividades que constituem o objecto da concessão, pela culpa ou pelo risco, não sendo assumido pelo Concedente qualquer tipo de responsabilidade neste âmbito”, não é decisiva para determinar o tribunal competente em razão da matéria.
Tal referência à “lei geral”, no contexto do diploma que estabelece a concessão significa apenas que a responsabilidade pelos prejuízos resultantes da responsabilidade civil extracontratual não está regulada por normas constantes do contrato de concessão, mas pelas normas gerais que regulam tal matéria, sem determinar sobre a sua natureza administrativa ou comum (cfr. neste sentido o acima citado acórdão deste Tribunal dos Conflitos de 30.05.2013).
O que quer dizer que a competência dos tribunais administrativos e fiscais abrangerá as questões respeitantes à responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados desde que a estes deva ser aplicado o regime próprio da responsabilidade civil do Estado e demais pessoas colectivas de direito público.
Ora, à data dos factos geradores da eventual responsabilidade (2005/2006) vigorava ainda o regime de responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas colectivas de direito público previsto no DL nº 48051, de 21.11.1967, que apenas era aplicável a entidades públicas e seus funcionários ou agentes.
Assim sendo, como referem Freitas do Amaral e Mário Aroso de Almeida, in Grandes Linhas da Reforma do Contencioso Administrativo, 2ª ed., págs. 36-37), “na ausência de disposições de direito substantivo que prevejam a aplicação do regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público a entidades privadas, parece que a previsão do artº 4º, n.º 1, alínea i), do ETAF permanecerá sem alcance prático: os tribunais administrativos não serão competentes para apreciar a responsabilidade de entidades privadas por não haver norma que submeta (Como se sabe, novo regime, aplicável também a entes privados, viria a ser aprovado pela Lei nº 67/2007, de 31.12) essas entidades ao regime da responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas”.
Assim, a eventual responsabilização por actos ou omissões da actividade das Rés, entidades privadas, está cometida aos tribunais judiciais.

Pelo exposto, acordam os Juízes do Tribunal dos Conflitos em julgar competente em razão da matéria a jurisdição comum.
Sem custas.

Lisboa, 25 de Março de 2015. – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa (relatora) – Isabel Francisca Repsina Aleluia São MarcosCarlos Luís Medeiros de CarvalhoRaul Eduardo do Vale Raposo BorgesAntónio Bento São PedroOrlando Viegas Martins Afonso.