Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:029/12
Data do Acordão:11/05/2013
Tribunal:CONFLITOS
Relator:ANA PAULA BOULAROT
Descritores:CONFLITO DE JURISDIÇÃO
GARANTIA
CONTRATO DE EMPREITADA DE OBRAS PÚBLICAS
Sumário:I - A intervenção dos Tribunais Administrativos justifica-se se houver que dirimir conflitos de interesses públicos e privados no âmbito de relações jurídicas administrativas, isto é, o que importará para declarar a competência daqueles Tribunais é saber se o conflito entre as partes nestes autos, é um conflito de interesses públicos e privados e se este mesmo conflito nasceu de uma relação jurídica administrativa
II - A mera presença da Administração, como contraente num contrato, não é suficiente para qualificar o mesmo de «administrativo»
III - Não obstante tenha existido um contrato de empreitada de obra pública celebrado entre a Requerente/Recorrente e o Requerido/Recorrido Município de Palmela, o dissenso não reside na interpretação e/ou cumprimento ou incumprimento do contrato, mas antes no accionamento da garantia prestada – uma garantia autónoma à primeira solicitação, cuja operância extravasa aquele mesmo convénio, uma vez que estoutro, de garantia autónoma é um negócio atípico, inominado, consentido pelo princípio da liberdade contratual a que alude o normativo inserto no artigo. 405º, nº1, do CCivil.
IV - A independência do contrato de garantia autónoma em relação ao contrato-base é um dos traços distintivos da garantia bancária e uma das características que lhe conferem autonomia, a qual se torna mais patente quando a garantia deva ser prestada à primeira solicitação, “on first demand”.
V - Estas características que enformam as garantias de que se cura na providência cautelar instaurada pela Requerente, aqui Recorrente, levam-nos a concluir que o aporema daqui não se pode subsumir no normativo inserto no artigo 4º, nº1, alíneas e) ou f) do ETAF, transcendendo assim a «ambiência» que ali se exige para se aferir da competência dos Tribunais Administrativos, a qual é deferida aos Tribunais comuns.
Nº Convencional:JSTA000P16535
Nº do Documento:SAC20131105029
Data de Entrada:11/19/2012
Recorrente:A............, SA, NO CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE A VARA DE COMPETÊNCIA MISTA DO TRIBUNAL JUDICIAL DE SETÚBAL E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE ALMADA
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Conflito n°. 29/12

ACORDAM, NO TRIBUNAL DOS CONFLITOS
I A…………, SA, instaurou contra o MUNICIPIO DE PALMELA e B…………, SA, no Tribunal Judicial de Setúbal, providência cautelar com vista a impedir o pagamento de duas apólices de seguro caução prestadas no âmbito de um contrato de empreitada celebrado entre a Recorrente e o primeiro Requerido, Município de Palmela, pedindo que este se abstenha de receber quaisquer valores decorrentes da prestação daquelas garantias e que a segunda Requerida se abstenha de proceder ao respectivo pagamento.
Alegou para o efeito e em síntese que celebrou com o primeiro Requerido um contrato de empreitada de obras públicas, com vista à execução do reforço do Sistema de Abastecimento de Água a Palmela (2ª fase), tendo sido prestadas no seu âmbito, dois seguros caução pela segunda Requerida a favor do primeiro Requerido, a título de garantias à primeira solicitação.
Em 29 de Setembro de 2010 foi decretada a insolvência da Requerente, sendo que o primeiro Requerido não reclamou na oportunidade e no âmbito daquele processo de insolvência qualquer crédito sob a Requerente, nomeadamente os eventualmente decorrentes da prestação das aludidas garantias, bem como não intentou qualquer acção judicial contra a massa insolvente, para verificação ulterior de créditos, nos termos do disposto no artigo 146°, n° 2, alínea b) do CIRE, pretendendo todavia, agora, que a segunda Requerida lhe pague um crédito não reconhecido e por isso não existente.

Foi proferida decisão a julgar a incompetência absoluta em razão da matéria da Vara Mista do Tribunal Judicial de Setúbal, para conhecer da providência peticionada.

A predita decisão transitou em julgado.

A Requerente instaurou então junto do Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada, uma providência cautelar especificada, nos termos da alínea f) do n° 2 do CPTA, com os mesmos fundamentos atrás expostos.

Na oposição ali apresentada, o Requerido Município de Palmela veio invocar, além do mais, a incompetência em razão da matéria daquele Tribunal Administrativo.

Na resposta, a Requerente pugnou pela competência do Tribunal, mas sem sucesso, pois em 1 de Outubro de 2012 foi proferida decisão a julgar aquele Tribunal incompetente em razão da matéria para conhecer dos presentes autos..

Esta decisão igualmente transitou em julgado.

A Excelentíssima Procuradora Geral Adjunta apôs o seu parecer no sentido de ser julgado competente o Tribunal Judicial.

II A factualidade a ter em conta para a resolução da temática envolvente, unicamente respeitante à questão da competência, é a seguinte:
- Em 13 de Julho de 2006, a Requerente celebrou com o Município de Palmela um contrato de empreitada destinado à execução do reforço do Sistema de Abastecimento de Água a Palmela – 2ª Fase.
- No âmbito desse contrato e para garantia da execução dos trabalhos, a 2ª Requerida prestou a pedido da Requerente e a favor do Município de Palmela, o seguro caução com a apólice n.° 100009283/200, no montante de € 31.050,00.
- Ainda no âmbito desse contrato, em 11 de Abril de 2007, a pedido da Requerente, a 2ª Requerida emitiu novo seguro caução, com a apólice n.° 100010758/200, a favor do Município de Palmela, no valor de € 31.050,00.
- Os seguros caução foram prestados pela 2ª Requerida a favor do Município como garantias de solicitação.
- Em Setembro de 2007, o Município de Palmela comunicou à Requerente a sua intenção de lhe aplicar uma multa por incumprimento do prazo contratual, no valor de € 124.200,00.
- Na sequência da impugnação apresentada pela Requerente, o Município de Palmela decidiu reduzir o montante da multa, fixando o respectivo valor em € 62.100,00.
- No dia 29 de Setembro de 2010, no âmbito do processo n.° 1011/ 10.31YLSB, que correu seus termos pelo 4.° Juízo do Tribunal de Comércio de Lisboa, foi proferida sentença de declaração da insolvência da Requerente, devidamente transitada em julgado.
- O prazo para a reclamação de créditos foi fixado em 30 dias.
- Em 11 de Abril de 2011, a Assembleia de Credores aprovou o plano de insolvência apresentado pela Requerente, o qual foi homologado por sentença transitada em julgado em 19 de Julho de 2011.
- O Município de Palmela não apresentou ao administrador de insolvência qualquer reclamação de créditos sobre a Requerente nem instaurou qualquer acção contra a massa insolvente para verificação ulterior de créditos.
- Pretende agora o Município de Palmela que a 2ª Requerida lhe pague, a título de garante, o crédito.
- A requerente comunicou ao Município que não pode pagar a multa por incapacidade financeira e impedimento legal, tendo em conta que à aplicação da multa sobreveio a declaração de insolvência da Requerente.
- O Município de Palmela pretende accionar as apólices de seguro caução.
- A Requerente informou a 2ª Requerida que o crédito não é exigível.

Da competência do Tribunal em razão da matéria.

A competência dos tribunais em geral é a medida da sua jurisdição, o modo como entre eles se fracciona e reparte o poder jurisdicional, que tomado em bloco, pertence ao conjunto dos tribunais, cfr Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1976, 88 e 89.

Desta definição, podemos passar para uma classificação de competência, a qual em sentido abstracto ou quantitativo, será a medida da sua jurisdição, ou seja a fracção do poder jurisdicional que lhe é atribuída, ou, a determinação das causas que lhe cabem; em sentido concreto ou qualitativo, será a susceptibilidade de exercício pelo tribunal da sua jurisdição para a apreciação de uma certa causa, cfr Manuel de Andrade, ibidem e Miguel Teixeira de Sousa, A Competência e Incompetência dos Tribunais Comuns, 7.

Assim, a incompetência será a «insusceptibilidade de um tribunal apreciar determinada causa que decorre da circunstância de os critérios determinativos da competência não lhe concederem a medida da jurisdição suficiente para essa apreciação. Infere-se da lei a existência de três tipos de incompetência jurisdicional: a incompetência absoluta, a incompetência relativa e a preterição do tribunal arbitral.», cfr Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2ª edição, 128.

In casu, a questão suscitada, prende-se com a incompetência absoluta do Tribunal recorrido, em razão da matéria.

Dispõe o normativo inserto no artigo 66° do CPCivil (em consonância com o artigo 211º da CRP «Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais.») «São da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.», acrescentando o artigo 67° «As leis de organização judiciária determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais judiciais dotados de competência especializada.».

Neste conspectu, convém fazer apelo ao artigo 1°, n° 1 do ETAF no qual se predispõe «Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.», estando elencadas no artigo 4°, n° 1 de tal diploma, as questões que, nomeadamente, são da competência de tais Tribunais.

Quererá isto dizer que a intervenção dos Tribunais Administrativos se justificará se houver que dirimir conflitos de interesses públicos e privados no âmbito de relações jurídicas administrativas, isto é, o que importará para declarar a competência daqueles Tribunais é saber se o conflito entre as partes nestes autos, é um conflito de interesses públicos e privados e se este mesmo conflito nasceu de uma relação jurídica administrativa.

Não obstante as questões enunciadas no supra mencionado normativo sejam meramente exemplificativas, das mesmas poder-se-á retirar a ratio para o enquadramento de outras que ali não vêm expressamente consignadas, mas cuja ambiência seja suficiente para «atrair» a competência dos Tribunais do foro administrativo o que significa que a mera presença da Administração, como contraente num contrato, não é suficiente para qualificar o mesmo de «administrativo», uma vez que, apesar deste se destinar à «(…)realização de um resultado ou interesse especificamente protegido no ordenamento jurídico, se e enquanto se trata de uma tarefa assumida por entes da própria colectividade, isto é de interesses que só têm protecção específica da lei quando são prosseguidos por entes públicos — ou por aqueles que actuam por “devolução” ou “concessão” pública(…)» procura-se trazer ainda «(...) para o direito administrativo todos os contratos que tragam marcas — importantes e juspublicisticamente protegidas (específica ou exclusiva mente) — de administratividade (...), cfr E. de Oliveira, CPAdministrativo Anotado, 2ª edição, 811.

Queremos nós dizer que, não obstante tenha existido um contrato de empreitada de obra pública celebrado entre a Requerente/Recorrente e o Requerido/Recorrido Município de Palmela, o dissenso não reside na interpretação e/ou cumprimento ou incumprimento do contrato, mas antes no accionamento da garantia prestada — uma garantia autónoma à primeira solicitação, cuja operância extravasa aquele mesmo contrato, uma vez que estoutro contrato de garantia autónoma é um negócio atípico, inominado, consentido pelo princípio da liberdade contratual a que alude o normativo inserto no artigo. 405°, n°1, do CCivil.

Com base nesse acordo, o garante, em regra um Banco (aqui a Requerida B…………), obriga-se a pagar a um terceiro beneficiário (no caso o Requerido Município de Palmela) certa quantia, verificado o incumprimento de um contrato-base (in casu o contrato de empreitada de obra pública havido entre a Requerente e o Requerido Município de Palmela), sendo mandante ou ordenante o devedor nesse contrato, podendo ser definido tal convénio como «o contrato pelo qual o garante se responsabiliza perante o beneficiário, isto é, o credor dum terceiro, a responder total ou parcialmente pelas perdas financeiras sofridas pelo beneficiário em resultado do incumprimento, por esse terceiro, duma obrigação presente ou futura, sendo a obrigação do garante independente da existência, da extensão, da validade ou do carácter exequível da obrigação do terceiro.», apud José Simões Patrício, Preliminares Sobre A Garantia «On First Demand», ROA, Ano 43, Dezembro de 1983, 667.

A independência do contrato de garantia autónoma em relação ao contrato-base é um dos traços distintivos da garantia bancária e uma das características que lhe conferem autonomia, que na fiança não existe por esta ser caracterizada pela acessoriedade. A característica da autonomia é mais patente quando a garantia deva ser prestada à primeira solicitação, “on first demand”.

Na garantia autónoma o garante não pode, em regra, opor ao garantido (beneficiário) os meios de defesa ou excepções decorrentes das relações credor-devedor no contra-base, ao invés do que sucede na fiança, aí o fiador pode opor ao credor, não só os meios de defesa que lhe são próprios, como também os que competem ao devedor/afiançado.

A garantia, para se ter como autónoma, tem de se desligar em absoluto da relação principal entre beneficiário e devedor, eliminando-se assim um eventual risco de litigância sobre os pressupostos que legitimam o pedido de pagamento feito pelo beneficiário, cfr Almeida Costa e Pinto Monteiro, in Garantias Bancárias, CJ, ano Xl, tomo V, 19; José Simões Patrício, 1c.

O pagamento à primeira solicitação (on first demand), assumido pelo garante, implica a sua obrigação de pagar ao beneficiário a indemnização objecto da garantia, não podendo opor-lhe quaisquer excepções reportadas à relação principal (contrato-base), a menos que haja evidentes e graves indícios de actuação de má fé, nela se incluindo a conduta abusiva do direito, cfr Galvão Telles, in O Direito, Ano 120, 275/283; Menezes Cordeiro, Manual De Direito Bancário, 2010, 763/764; Almeida Costa e Pinto Monteiro, 1.c., 20; Javier Camacho de Los Rios, in El Seguro De Caución. Estudio Crítico (Editorial Mapfre, 1994), 121.

E, são todas estas características que enformam as garantias de que se cura na providência cautelar instaurada pela Requerente, aqui Recorrente, que nos levam a concluir que o aporema daqui não se pode subsumir no normativo inserto no artigo 4º, n° 1, alíneas e) ou f) do ETAF, transcendendo assim a «ambiência» que ali se exige para se aferir da competência dos Tribunais Administrativos, cfr neste sentido inter alia os Ac STA (Conflito) de 28 de Setembro de 2010 (Relator Fonseca Ramos) e da mesma data (Relator Sousa Leite).

III Destarte, atribui-se ao Tribunal Judicial de Setúbal a competência para conhecer da providência cautelar instaurada pela Requerente, aqui Recorrente, contra os Recorridos.

Sem custas.

Lisboa, 5 de Novembro de 2013. - Ana Paula Lopes Martins Boularot (relatora) - Alberto Acácio de Sá Costa Reis - José Amílcar Salreta Pereira - Vítor Manuel Gonçalves Gomes - António Leones Dantas - Rui Manuel Pires Ferreira Botelho.