Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:09/22
Data do Acordão:11/08/2022
Tribunal:CONFLITOS
Relator:ARAGÃO SEIA
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P30164
Nº do Documento:SAC2022110809
Data de Entrada:03/24/2022
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VIANA DO CASTELO, JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE VIANA DO CASTELO — JUIZ 3 E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE BRAGA U02
AUTOR: A............
RÉU: ESTADO PORTUGUÊS E OUTROS
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Conflito n.º 9/22

Acordam no Tribunal dos Conflitos

Relatório
A…………, com os demais sinais nos autos, intentou no Tribunal Judicial de Viana do Castelo, Juízo de Competência Genérica de Valença, acção declarativa de condenação contra B…………, C…………, D………… e E…………, Lda, formulando os seguintes pedidos:
“I - Declarar-se que o autor é comproprietário, no quota-parte de 1/2 (metade) indivisa, das frações autónomas designadas pelas letras “CH”, “CI”, “CJ”, “CK”, “CL”, “CM”, “CN”, “CP”, “CQ”, “CR”, “CT” e “CS” do prédio identificado no artigo 1º da petição inicial, o que já acontecia em 18 de janeiro de 2019, data da realização da venda na execução fiscal a que se alude nos artigos 23º e 24º da petição inicial;
II - Ser reconhecido ao Autor, enquanto comproprietário, o direito de preferência na venda ou alienação da quota-parte, correspondente a metade indivisa, das frações autónomas referidas no antecedente ponto "I”, e pelos preços por que as mesmas foram vendidas na execução fiscal a que se alude no artigo 16º da petição inicial, no âmbito das vendas e pelos preços referidos nos artigos 18º, 23º e 24º do mesmo articulado, ao abrigo das disposições legais pertinentes, designadamente, do disposto nos artigos 1.409º, nº 1, e 1.410º, nº 1, do Código Civil, substituindo-se os adquirentes de tais metades indivisas nas aludidas frações {Réus} pelo aqui Autor, enquanto preferente na titularidade do direito de propriedade sobre tais metades, e consequentemente, condenar-se os Réus a abrir mão dessas quotas-partes a favor do Autor, a quem deverão entregar os bens e direitos que titulam, livres e desonerados, mediante o recebimento das importâncias mencionadas no artigo 33º desta petição inicial, cabendo aos 1º, 2º, 3º e 4ª Réus, respetivamente, os montantes totais indicados sob as alíneas a), b), c) e d) desse mesmo artigo 33º, já depositadas por via dos depósitos autónomos juntos como documentos nºs 31 a 34;
III - Ordenar-se o cancelamento de quaisquer registos lavrados a favor dos Réus, consequentemente à venda a que se faz referência nos artigos 18º, 23º e 24º desta petição inicial, e feitos com base nela, ou de outros (registos) lavrados consequentemente a atos de oneração ou de disposição subsequentes àquele (de aquisição a favor dos RR.); e,
IV- Condenarem-se os Réus no pagamento das custas, encargos e demais, legais, acréscimos.”
Em sede de contestação, os Réus D………… e E…………, Lda, além do mais, arguiram a excepção de incompetência material do Tribunal. Na resposta, o Autor veio defender que “o exercício do direito legal de preferência por parte do comproprietário pressupõe, pois, a legalidade da venda (…) não se destinando a exigir a responsabilidade civil extracontratual do Estado (…) não cabendo a ação instaurada pelo titular de tal direito (de preferência) contra os adquirentes dos bens, ou quota-parte dos bens dele (direito) objeto no âmbito da jurisdição administrativa a que se alude no artigo 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais”. (fls 65)
O Juízo de Competência Genérica de Valença julgou-se incompetente em razão do valor da causa e declarou competentes os Juízos Centrais Cíveis da Comarca de Viana do Castelo. (fls. 80)
No Juízo Central Cível de Viana do Castelo foi o Autor convidado a fazer intervir nos autos o Estado, tendo deduzido incidente de intervenção provocada passiva a qual foi admitida.
Em 09.07.2021, no Juízo Central Cível do Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo [Proc.n.º 330/19.8T8VLN], foi proferida decisão a julgar o tribunal incompetente em razão da matéria para apreciação do litígio por entender que a “(…) irregularidade omissiva alegadamente praticada no procedimento tributário invocado deve ser conhecida nessa mesma jurisdição. Com efeito, e como se refere no acórdão do Tribunal de Conflitos, de 07.07.2009, "em suma, dir-se-á que, atento o princípio constitucionalmente consagrado da tutela jurisdicional efectiva, os tribunais administrativos e fiscais apresentam-se hoje como tribunais comuns em matéria administrativa e fiscal, o que implica terem os meios processuais adequados para dar satisfação às pretensões formuladas pelos administrados em processos da sua competência, pelo que as normas processuais administrativas e tributárias devem ser interpretadas em conformidade com esse princípio constitucional (ainda que, para esse efeito, e a título subsidiário, seja necessário recorrer à aplicação das normas do processo civil). Face ao que se deixa exposto, não restam dúvidas que a jurisdição competente para apreciar a pretensão formulada pelos Autores junto do Tribunal Judicial (…) é a jurisdição administrativa e fiscal e, dentro desta, os tribunais tributários." Também no mesmo sentido pode ler-se o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 16.12.2015,relatado por Dulce Neto (disponível em www.dgsi.pt).
Com efeito, não faria sentido que a irregularidade que fundamenta a invocada pretensão à declaração do direito de preferência que tem de resultar, necessariamente, do não cumprimento de regras do procedimento tributário, designadamente da venda em execução fiscal, fosse apreciada e julgada na jurisdição comum.
Por isso é que a norma constante do artigo 49º, nº 1, alínea d), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais tem a abrangência que tem e o sentido teleológico de dever ser o tribunal tributário a apreciar a totalidade das questões que se levantam nos procedimentos tributários, evitando-se assim que a jurisdição comum seja obrigada a ponderar sobre e a declarar eventuais irregularidades que eventualmente surjam nesses processos, em incursões sobre regras processuais e de tramitação estranhas à sua competência material.”.
Remetidos os autos ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, também este Tribunal, por decisão proferida em 30.11.2021, se considerou incompetente em razão da matéria considerando que “Face ao objecto da presente lide como vem configurado pelo Autor, à luz do disposto nos artigos 1º e 4º do ETAF, constata-se que a relação material controvertida não cai no âmbito da jurisdição administrativa e fiscal.
A presente acção está proposta com fundamento no direito de preferência do Autor, enquanto comproprietário de bens imóveis que identificou, na aquisição da restante quota-parte indivisa dos mesmos bens, vendidos aos Réus, no âmbito de uma execução fiscal, tendo peticionado o reconhecimento do seu direito de preferência e a substituição dos Réus por si na aquisição daquelas metades indivisas.
Desta forma, o que está aqui em questão não é um conflito emergente de uma relação jurídica fiscal ou administrativa, mas um conflito entre sujeitos de direito privado proveniente de uma relação de direito privado.
Com efeito, o Autor não discute se os imóveis em causa deveriam ou não ser vendidos em execução fiscal, bem como não se insurge contra qualquer acto praticado pelo órgão da execução fiscal.
Na verdade, o que o Autor pretende é ver reconhecido o seu direito de preferência na aquisição da restante parte indivisa dos bens imóveis que identificou.
E, a titularidade do direito de preferência que o Autor invoca é conferida pelo direito civil - artigo 1409º do Código Civil -, estando também os respetivos pressupostos definidos na lei civil
A questão aqui em apreço foi já tratada pelo Tribunal dos Conflitos, designadamente nos Acórdãos (…) Em todos os referidos Arestos foi decidido que cabe aos tribunais comuns a competência material para conhecer de acção de preferência subsequente à venda judicial de imóvel no âmbito de processo de execução fiscal.
(…) Com efeito, os litígios desta natureza não estão incluídos no âmbito da jurisdição administrativa e fiscal delimitada pelo artigo 4º do ETAF, nem se conhece lei especial que lhe confira competência, sendo forçoso concluir que pertence aos tribunais da jurisdição comum a competência para conhecer do presente litígio, face à sua competência residual.”.
Suscitada a resolução do conflito de jurisdição e remetido o processo ao Tribunal dos Conflitos, as partes foram notificadas para efeitos do disposto no n.º 3 do artigo 11.º da Lei n.º 91/2019, de 4 de Setembro, e nada disseram (sendo que o Autor já havia requerido a intervenção do Tribunal dos Conflitos).
A Exma. Magistrada do MP emitiu parecer no sentido de dever ser atribuída a competência material para apreciar a presente acção aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal, juízos tributários especializados de execução fiscal, no caso concreto ao Juízo de Execução Fiscal e de Recursos Contraordenacionais do Tribunal Tributário do TAF de Braga.

Apreciação da questão
Cabe aos tribunais judiciais a competência para julgar as causas «que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional» [artigos 211.º, n.º 1, da CRP; 64.º do CPC; e 40.º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013, de 26/08 (LOSJ)], e aos tribunais administrativos e fiscais a competência para julgar as causas «emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais» [artigos 212.º, n.º 3, da CRP, 1.º, n.º 1, do ETAF].
A competência dos tribunais administrativos e fiscais é concretizada no artigo 4.º do ETAF (Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro) com delimitação do “âmbito da jurisdição” mediante uma enunciação positiva (n.ºs 1 e 2) e negativa (nºs 3 e 4).
Tem sido reafirmado por este Tribunal, e constitui entendimento jurisprudencial e doutrinário pacífico, que a competência material do tribunal se afere em função do modo como o autor configura a acção e que a mesma se fixa no momento em que a mesma é proposta.
Resulta da petição inicial que o pedido formulado pelo Autor é o do reconhecimento do direito de preferência nas vendas efetuadas no âmbito de execução fiscal, face à sua qualidade de comproprietário das metades indivisas das fracções autónomas que identifica.
O Tribunal dos Conflitos já teve oportunidade de apreciar esta questão concluindo pela competência dos tribunais comuns (cfr. Acórdãos do Tribunal dos Conflitos de 27.01.2011, Proc. 014/09, de 23.10.2014, Proc. 033/14, de 27.09.2018, Proc. 019/18, de 15.09.2021, Proc. 028/20 e de 13.10.2021, Proc. 01878/18.7BEPRT.S1, disponíveis em www.dgi.pt).
Assim, no Acórdão de 23.10.2014, Proc. 033/14, decidiu-se:
Cumpre referir que a titularidade do direito de preferência de que se arrogam os autores é uma titularidade de direito civil - art. 1380.º do CC -. E os autores serão titulares do direito de preferência - direito real de aquisição - se preencherem os pressupostos e os requisitos definidos na lei civil.
Nenhuma legislação de direito público lhes confere essa qualidade de preferentes, nem essa qualidade deriva de qualquer acto de império de qualquer autoridade administrativa do Estado.
Assim, toda e qualquer necessidade de prévia notificação dos titulares do direito de preferência tem a ver com a necessidade de respeito das disposições de direito civil, e não de direito público - neste sentido ver Ac. deste Tribunal dos Conflitos de 09-12-2010, processo 22/10.
Essa evidência retira-se, aliás, da forma como é formulado o pedido pelos autores: - ser reconhecido aos autores o direito de preferência; - ser declarada a ineficácia da alienação do imóvel.
À excepção da circunstância de a venda se ter efectuado no âmbito de uma execução fiscal, nada, nem nenhum elemento nos presentes autos, permite integrar a presente acção na jurisdição administrativa e fiscal.
Uma acção de preferência como a presente, prevista no art. 1380.º do CC, é manifestamente o exercício de um direito real de aquisição, visando dar completude ao direito de propriedade do proprietário confinante.
E tem como objectivo primeiro a declaração da existência desse direito de preferência e como escopo ulterior a materialização e efectivação desse direito de preferência.
Aos autores, nesta acção, compete, provar que são proprietários de um prédio, que o mesmo confina com o prédio objecto da venda executiva, que o seu prédio tem uma área inferior à unidade de cultura.
Comprovados estes factos só a qualidade igualmente de preferente do adquirente ou outros factos modificativos, impeditivos ou extintivos poderão obstaculizar a procedência da acção.
Assim, as questões decidendas não emergem de qualquer relação jurídica administrativa, sendo que a circunstância de o prédio sobre o qual incide a suposta preferência ter sido vendido numa execução fiscal não confere qualquer autonomia dogmática susceptível de converter um pedido privatístico numa pretensão de carácter publicista.
Como se escreveu num Acórdão deste Tribunal dos Conflitos, de 27-01-2011, proc. 014/09, em que se colocava uma questão idêntica - relacionada com o direito de preferência do arrendatário, preterido num ajuste directo que procedeu à adjudicação de fracções do Estado (e que por sua vez citava um outro acórdão deste mesmo tribunal - processo 22/10 -), «a titularidade do direito de preferência de que se arrogam os autores é uma titularidade de direito civil, a sua condição de arrendatários conforme o direito civil. E os autores serão titulares do direito de preferência se preencherem os pressupostos, os requisitos definidos na lei civil.
Não é nenhuma lei de direito público que lhes confere essa qualidade, nem essa qualidade deriva de qualquer acto de império de qualquer autoridade administrativa do Estado, nomeadamente não resulta de qualquer acto da entidade que procedeu à venda em nome do Estado.
Assim, a prévia notificação dos titulares do direito de preferência tem a ver com a necessidade de respeito das disposições de direito civil, não de direito público.
(...).
(...) E afinal nos autos, os autores não pretendem questionar mais nada que não seja o não terem podido exercer o seu direito de preferência, por isso que pedem que lhes seja reconhecida a qualidade de preferentes para os devidos efeitos. (...)».
Ante os pedidos formulados, conexionados com o direito e acção de preferência, previsto no art. 1380.º do CC, é de concluir pela competência material dos tribunais comuns.
Caso houvesse necessidade de discutir, no âmbito dos presentes autos, qualquer vicissitude do processo de execução fiscal, a mesma sempre constituiria uma mera questão prejudicial a atender nos termos do art. 92.º, n.º 1, do CPC.
(…) Cabe aos tribunais comuns a competência material para conhecer de acção de preferência subsequente à venda judicial de imóvel no âmbito de processo de execução fiscal”.
No caso dos autos, o Autor não pretende discutir se as frações deveriam ou não ser vendidas em execução fiscal, não reage contra nenhum acto de órgão da execução fiscal nem aqui está em causa um incidente no processo de execução fiscal. O que o Autor pretende é exercer o direito de preferência por meio da acção prevista no artigo 1410.º do Código Civil por, segundo alega, ser titular do direito de preferência que lhe é conferido pelo lei civil - artigo 1409.º do mesmo Código.
Assim, reiterando o entendimento adoptado na jurisprudência citada, conclui-se que a competência para apreciar a pretensão do Autor cabe aos tribunais judiciais.
Pelo exposto, acordam em julgar competente para apreciar a presente acção o Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo, Juízo Central Cível de Viana do Castelo.
Sem custas.
D.n.

Lisboa, 8 de Novembro de 2022. - Jorge Miguel Barroso de Aragão Seia (relator) - Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza.