Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:042/15
Data do Acordão:04/21/2016
Tribunal:CONFLITOS
Relator:MARIA DA GRAÇA TRIGO
Descritores:RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL.
CONFLITO DE JURISDIÇÃO.
COMPETÊNCIA DOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS.
CONCESSIONÁRIO.
Sumário:
Nº Convencional:JSTA00069670
Nº do Documento:SAC20160421042
Data de Entrada:10/21/2015
Recorrente:A.........., NO CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO ENTRE A COMARCA DO BAIXO VOUGA, AVEIRO, JUÍZO DE GRANDE INSTÂNCIA CÍVEL - J2 E O TAF DE AVEIRO, UNIDADE ORGÂNICA 1
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:CONFLITO NEGATIVO
Objecto:SENT TAF AVEIRO.
SENT TJ OVAR.
Decisão:DECL COMPETENTE JURISDIÇÃO ADMINISTRATIVA.
Área Temática 1:DIR ADM CONT - CONFLITO NEGATIVO.
Legislação Nacional:CONST76 ART212.
ETAF02 ART4 N1 I.
DL 239/2004.
DL 374/2007 ART1 ART4 ART8 ART10 ART12.
CCIV66 ART1311.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam no Tribunal dos Conflitos
1. Em 28 de Dezembro de 2007, A………………, por si e na qualidade de cabeça de casal da herança de B………………, interpôs no Tribunal Judicial da Comarca de Ovar, contra IEP Instituto de Estradas de Portugal, uma acção pedindo o reconhecimento de que o espaço ocupado com a construção de estrada/rotunda, sito no lugar do ……….., da freguesia de ………. concelho de Ovar é propriedade da herança, que os eucaliptos, os pinheiros e demais madeira cortada eram propriedade da herança, que a conduta do réu é ilícita e lesou os autores, exigindo o pagamento de indemnização pela ocupação do terreno, pela madeira cortada e ainda pelo custo de nova abertura de entrada no terreno, no total de €39.750, acrescidos dos juros legais contados da data da citação, até efectivo e integral pagamento, bem como das custas de parte e procuradoria. Fundamenta o pedido “nos artigos 2078º, nº 1, 2091º, 1305º, 1310º, 1311º, 483º, 487º, 562º, e 566, todos do Código Civil”.

O réu contestou, invocando a excepção de ilegitimidade e pedindo a absolvição da instância. O autor replicou.

No despacho saneador, o tribunal julgou-se oficiosamente incompetente em razão da matéria e absolveu o réu da instância. Em síntese, considerou estar em causa uma acção abrangida pela alínea g), do art. 4º, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei n° 13/2002, de 19 de Fevereiro, tendo em conta o objecto da acção (responsabilidade civil extracontratual) e a natureza de pessoa colectiva de direito público do réu (art. 4º, nº 1, do Decreto-Lei nº 374/2007, de 7 de Novembro).

Por pedido das partes, os autos foram remetidos ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro.

O réu requereu a intervenção principal provocada da concessionária da empreitada, C……….. do Norte, S.A., aceite por despacho do tribunal. Veio a Interveniente contestar, invocando a excepção de ilegitimidade por não ser ela a concessionária do troço de estrada em causa, e pedindo a absolvição da instância. O autor replicou.

Corrigindo, veio o réu requerer a intervenção principal provocada da concessionária C…………….. da Costa da Prata, S.A.. Veio a Interveniente contestar, invocando excepção por incompetência material do tribunal, em virtude de se tratar de uma acção de reivindicação da propriedade, instaurada ao abrigo do art. 1311º do Código Civil, assim como pelo facto de, à data da construção da obra (entre Abril de 2003 e Setembro de 2004), vigorar ainda - quanto à responsabilidade civil extracontratual dos poderes públicos - o Decreto-Lei nº 48.051, de 21 de Novembro de 1967, cujo âmbito de aplicação (cfr. art. 1º) era limitado ao Estado e outras pessoas colectivas públicas, não abrangendo, portanto, empresas concessionárias. Pede a absolvição da instância e requer a intervenção principal provocada de D………………. ACE. O autor respondeu à contestação.

Por despacho judicial foi admitida a intervenção principal provocada da D……………., ACE. A Interveniente contestou, invocando a excepção de incompetência material do tribunal, nos exactos termos da Interveniente C………….. da Costa da Prata, S.A., e pedindo a absolvição da instância. Requereu a intervenção provocada principal da construtora E…………., S.A. O autor respondeu à contestação.

Por despacho judicial foi admitida a intervenção principal provocada da E…………., S.A. A Interveniente contestou, invocando a excepção de incompetência material do tribunal, nos exactos termos das Intervenientes C…………… e D…………, e pedindo a absolvição da instância. O autor respondeu à contestação.

Por despacho saneador/sentença de fls. 793, o Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro julgou-se incompetente em razão da matéria, com a fundamentação seguinte: “In casu, os primeiros pedidos foram formulados pelo Autor […] radicam no reconhecimento do direito de propriedade sobre o prédio descrito no artigo 2º da petição inicial e, será esta a verdadeira pretensão formulada nos autos. É certo que o Autor formula igualmente pedidos de indemnização, sendo, contudo, pedidos cumulados de indemnização pela alegada violação do direito de propriedade.

Na verdade, resulta da petição inicial estarmos perante caso regulado exclusivamente pela lei civil e não pelo direito administrativo, dado estar em causa a defesa da propriedade.”

2. O autor requereu ao Presidente do Tribunal dos Conflitos a resolução do conflito negativo de jurisdição.

O Ministério Público emitiu parecer, no sentido da competência dos tribunais comuns, por “não merecer dúvidas que neste caso o pedido assenta no reconhecimento do direito de propriedade, uma vez que o autor reivindica a titularidade da propriedade correspondente à área ocupada pela construção de estrada/rotunda, sita em ………. junto à antiga estrada de …………., sendo certo que tal pedido se enquadra na previsão do art. 1311º do Código Civil.”

3. Corridos os vistos, cumpre conhecer, por estarem reunidos os necessários pressupostos. Como este Tribunal de Conflitos tem reafirmado reiteradamente, a competência afere-se em função dos termos da acção, tal como definidos pelo autor: objectivos (pedido e causa de pedir), e subjectivos (identidade das partes) (cfr. entre outros, os acórdãos de 28 de Setembro de 2010, proc. nº 023/09, de 20 de Setembro de 2011, proc. nº 03/11, de 10 de Julho de 2012, proc. nº 03/12, in www.dgsi.pt). Não releva para o efeito saber se a pretensão formulada é procedente, ou se as partes são legítimas.

Enquanto os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal, exercendo jurisdição em todas as questões não atribuídas a outras ordens judiciais, cabe aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções que tenham por objecto dirimir litígios emergentes das relações administrativas e fiscais (arts. 212º, nº 1, e 212º, nº 3, da Constituição da República Portuguesa).

À data da interposição da acção, a concretização da competência dos tribunais administrativos e fiscais resultava do art. 4º, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro. No que releva para o caso dos autos, são da competência dos tribunais administrativos, segundo a alínea i) do art. 4º do ETAF, os litígios sobre “responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público”.

4. O réu, identificado pelos autores como IEP-Instituto de Estradas de Portugal, foi sucessivamente transformado em Estradas de Portugal, E.P.E. (pelo Decreto-Lei nº 239/2004, de 21 de Dezembro) e em F……………, S.A. (pelo Decreto-Lei nº 374/2007, de 7 de Novembro). Revestia esta última forma jurídica à data da interposição da acção, tendo como objecto “a concepção, exploração, requalificação e alargamento da rede rodoviária nacional, nos termos do contrato de concessão que com ela é celebrado pelo Estado” (art. 4º, nº 1). Não obstante a adopção da forma de sociedade anónima de capitais públicos (art. 1º, nº 1), a lei determinou que “As infra -estruturas rodoviárias nacionais que integram o domínio público rodoviário do Estado e que estejam em regime de afectação ao trânsito público ficam nesse regime sob administração da F…………., S.A.” (art. 8º, nº 1), atribuindo à ré especiais poderes de autoridade e obrigações conexas, nos termos do art. 10º, nº 2: “Para o desenvolvimento da sua actividade, a F………… S.A., detém os poderes, prerrogativas e obrigações conferidos ao Estado pelas disposições legais e regulamentares aplicáveis no que respeita:

a) A processos de expropriação, nos termos previstos no respectivo código;

b) Ao embargo administrativo e demolição de construções efectuadas em zonas non aedificandi e zonas de protecção estabelecidas por lei;

c) À liquidação e cobrança, voluntária ou coerciva, de taxas e rendimentos provenientes das suas actividades;

d) À execução coerciva das demais decisões de autoridade;

e) Ao uso público dos serviços e à sua fiscalização;

f) À protecção das suas instalações e do seu pessoal;

g) À regulamentação e fiscalização dos serviços prestados no âmbito das suas actividades e à aplicação das correspondentes sanções, nos termos da lei;

h) À responsabilidade civil extracontratual, nos domínios dos actos de gestão pública;

i) À instrução e aplicação de sanções em processo contra-ordenacional”.

Deste modo, apesar de a ré F…………., S.A. assumir a forma de direito privado, a lei sujeita-a expressamente ao regime da responsabilidade civil do Estado e das pessoas colectivas públicas, desde que estejam em causa actos de gestão pública.

5. A resolução do conflito negativo de jurisdição dos autos, exige a qualificação da natureza dos pedidos formulados pelos autores para que o réu seja condenado: “a) A reconhecer que o espaço que ocupou com a construção da estrada/rotunda, é propriedade da herança; b) Que os eucaliptos, pinheiros, e toda a madeira que teve de cortar, era pertença dos autores; c) Que a sua conduta é proibida por lei, dado tratar-se de violação de propriedade alheia; d) Que através daqueles actos ilícitos, a ré retirou benefícios, lesando a propriedade dos autores; e) Que, por consequência, deve ser obrigada a pagar, como justa indemnização, a quantia de 37.500,00 (trinta e sete mil e quinhentos euros) pelo terreno ocupado, ilegalmente, sem a respectiva autorização dos autores; f) A pagar €1.250,00 (mil duzentos e cinquenta euros) pela intervenção necessária para a abertura da entrada; g) A pagar a quantia de €1.000,00 (mil euros), pela madeira ali existente e retirada; h) Acrescidas dos juros legais, contados desde a data da citação, até efectivo e integral pagamento; i) Bem como nas custas e procuradoria.”

Há que determinar se o pedido dos autores corresponde a uma acção de reivindicação ou a uma acção de responsabilidade civil. O facto de se pedir o reconhecimento da propriedade do terreno e das árvores cortadas, não faz, só por si, com que se esteja perante uma acção real de reconhecimento da propriedade e consequente restituição da coisa, nos termos do art. 1311º do Código Civil.

Na verdade, no caso dos autos, os autores não pedem a restituição do terreno, mas apenas que se reconheça que ocorreu a violação do seu direito de propriedade sobre o terreno e as árvores, de tal forma que se dê como verificada a ilicitude da conduta do réu e, consequentemente, lhes seja concedida uma indeminização em dinheiro. Trata-se, assim, de uma acção de responsabilidade civil extracontratual.

É esta a orientação seguida na jurisprudência deste tribunal, por exemplo, no acórdão de 2 de Março de 2011, proc. nº 09/10, www.dgsi.pt, num caso em que os autores intentaram uma acção pedindo a condenação do réu a retirar uma conduta de água que a ré construira no subsolo do logradouro de um prédio de que são proprietários, e em que se concluiu: “Da análise respectiva resulta claramente que se trata de uma acção de responsabilidade civil extra-contratual: os autores, alegando que a ré ofendeu o seu direito de propriedade sobre o prédio identificado nos autos, causando-lhes os prejuízos que descrevem, pretendem uma indemnização, quer sob a forma de reconstituição natural (reposição do logradouro do prédio nas condições em que se encontrava antes da construção da conduta), quer através do pagamento de uma quantia em dinheiro (a determinar em liquidação)”.

6. Qualificando-se a presente acção como de responsabilidade civil extracontratual, recorde-se que a ré F……………., S.A. está sujeita ao regime de “responsabilidade civil extracontratual, nos domínios dos actos de gestão pública” (al. h) do art. 12º, nº 2, do Decreto-Lei nº 374/2007). É inegável que a construção do lanço IC1 constitui um acto de gestão pública, tal como foi entendido a respeito de casos idênticos aos dos autos em que também estava em causa a responsabilidade civil extracontratual da aqui ré F…………., S.A., pela construção de lanços de estradas: nos acórdãos de 9 de Dezembro de 2014 (proc. nº 35/14), de 29 de Janeiro de 2015 (proc. nº 50/14), e de 15 de Outubro de 2015, (proc. nº 51/14), todos consultáveis em www.dgsi.pt.

7. Concluindo, da conjugação do art. 4º, nº 1, alínea i), do ETAF, com o art. 10º, nº 2, do Decreto-Lei nº 374/2007, a competência para o conhecimento da presente acção cabe aos tribunais administrativos.

Lisboa, 21 de Abril de 2016. - Maria da Graça Machado Trigo Franco Frazão (relatora) - António Bento São Pedro - Isabel Francisca Repsina Aleluia São Marcos - Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa - Manuel Pereira Augusto de Matos - Jorge Artur Madeira dos Santos.