Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:035/19
Data do Acordão:01/23/2020
Tribunal:CONFLITOS
Relator:JOSÉ VELOSO
Descritores:CONTRA-ORDENAÇÃO.
FALTA DE ALVARÁ.
Sumário:A execução de obras sem alvará ou título de registo - prevista e punida como contra-ordenação nos termos do artigo 4º, nº1, 6º, nº1, e 37º, nº1 e nº2 alínea a), do DL 12/2004, de 09.01, alterado pelo DL 69/2011, de 15.06 - deve ser considerada contra-ordenação urbanística para efeitos de determinação da competência material dos tribunais - artigo 4º, nº1 alínea l) do ETAF na redacção dada pelo DL nº 214-G/2015, de 02.10.
Nº Convencional:JSTA000P25475
Nº do Documento:SAC20200123035
Data de Entrada:07/04/2019
Recorrente:A…………, LDA., NO CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O MINISTÉRIO PÚBLICO - PROCURADORIA DA REPÚBLICA DA COMARCA DE LISBOA, PROCURADORIA DO JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE LISBOA E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO DE CÍRCULO DE LISBOA UNIDADE ORGÂNICA 4
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Conflito nº35/19
I. Relatório

1. A…………, LDA. - Sociedade Comercial identificada nos autos - impugnou judicialmente a decisão do «Vogal do Conselho Directivo do Instituto dos Mercados Públicos do Imobiliário e da Construção», de 26.03.2018, que a condenou na coima única de 8.000,00€ pela prática, em concurso efectivo, de 2 contra-ordenações, previstas e punidas nos termos do artigo 4º, nº1, 6º, nº1, e 37º, nº1 e nº2 alínea a), do DL 12/2004, de 09.01 - alterado pelo DL nº 69/2011, de 15.06 - ou seja, por ter executado, em Janeiro e Fevereiro de 2015, duas obras sem ser titular de alvará ou de título de registo.

Em 15.05.2018 o recurso de impugnação foi enviado ao Ministério Público junto do Juízo Local Criminal de Lisboa - artigo 62º, nº1, do RGCO [Regime Geral das Contra-ordenações - DL 433/82, de 27.10, na sua redacção actual].

Neste, foi proferida decisão, em 22.05.2018, que considerou competente para a apreciação do mérito da causa o Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa e, em conformidade, determinou a remessa do processo aos Serviços do Ministério Público junto desse TAC, nos termos e para os efeitos do artigo 62º do RGCO.

Recebido o processo no TAC de Lisboa, foi proferida decisão judicial a declarar a incompetência material da jurisdição administrativa para conhecer do recurso de impugnação, e suscitada a resolução do conflito negativo de competência por este Tribunal de Conflitos.

2. O Ministério Público, junto deste Tribunal de Conflitos, é de parecer que deve ser atribuída a competência em razão da matéria à jurisdição administrativa.

3. Cumpre, pois, apreciar e decidir o presente conflito.

II. Apreciação

1. A decisão proferida no Juízo Local Criminal de Lisboa foi a seguinte:

«Nos termos do disposto no artigo 4º, nº1 alínea l), do ETAF [redacção do DL nº214-G/2015, de 02.10], a partir de 01.09.2016 os tribunais da jurisdição administrativa têm competência para conhecer dos litígios que tenham por objecto impugnações judiciais da Administração Pública que apliquem coimas no âmbito do ilícito de mera ordenação social por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo.

Nos termos do disposto no artigo 5º, nº1, do ETAF, e 38º, nºs 1 e 2, da Lei da Organização do Sistema Judiciário A competência dos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal fixa-se no momento da propositura da causa, sendo irrelevantes as modificações que ocorram posteriormente.

Compulsados os autos remetidos pela Autoridade Administrativa verifica-se que a matéria em discussão é de índole urbanística, porquanto se encontra em causa contra-ordenação prevista e punida pelo artigo 6º, nº1 e 37º, nº1 alínea a) e nº2, alínea c), todos do DL 12/2004, de 09.01, alterado pelo DL nº 69/2011, de 15.06, por alegado exercício de actividade de construção sem possuir o título de registo concedido pelo IMPIC [Instituto dos Mercados Públicos do Imobiliário e da Construção].

Ademais, a impugnação da decisão administrativa deu entrada no IMPIC após o dia 1 de Setembro de 2016, isto é, em 3 de Maio de 2018 - conforme folha 83.

Assim, atendendo aos factos acima mencionados é de concluir que a competência material para conhecer do mérito da causa cabe ao TAC de Lisboa, razão pela qual se determina remeter aos Serviços do Ministério Público os presentes autos nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 62º do RGCO.»

Por seu turno, a decisão do Tribunal Administrativo de Círculo centrou-se, e em síntese, nas razões seguintes:

[…]

…foi condenada por duas contra-ordenações «as quais não são contra-ordenações urbanísticas, no sentido estrito do conceito previsto no artigo 4º, nº1, alínea l), do ETAF, pelo que a sua apreciação não pode ser efectuada na jurisdição administrativa. O âmbito das contra-ordenações urbanísticas, no que concerne ao empreiteiro, é o que resulta do artigo 98º do Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação [Fernanda Paula Oliveira, Direito do Urbanismo, 2014-2017, CEJ, páginas 127 e 128].

São os tribunais judiciais que exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais [artigo 211º, nº1, CRP, e artigo 40º, nº1, LOS - Lei nº 62/2013, de 26.08], pelo que, para a impugnação judicial em causa são competentes os tribunais judiciais [artigo 130º nº4 b) LOS], e não os administrativos.»

[…]

2. Nos termos conjugados dos artigos 4º, nº1, alínea l), do ETAF [redacção dada pelo DL nº 214-G/2015, de 02.10], e 15º, nº5, do DL nº 214-G/2015, de 02.10, a partir de 1 de Setembro de 2016 compete à jurisdição administrativa julgar as impugnações judiciais de actos aplicadores de coimas por ofensa de normas em matéria de urbanismo.

E como tem, reiteradamente, decidido este Tribunal de Conflitos, o elemento de conexão relevante para se determinar no tempo essa competência em razão da matéria consiste na data da apresentação em juízo, pelo Ministério Público, dos autos de contra-ordenação e do respectivo recurso - AC de 30.03.2017, Conflito 031/16; AC de 28.09.2017, Conflito nº024/17; AC de 28.09.2017, Conflito nº026/17; AC de 09.11.2017, Conflito nº012/17; AC de 09.11.2017, Conflito nº022/17; AC de 09.11.2017, Conflito nº035/17; AC de 09.11.2017, Conflito nº039/17; AC de 09.11.2017, Conflito nº042/17; AC de 23.11.2017, Conflito nº037/17; AC de 30.11.2017, Conflito nº032/17; AC de 07.12.2017, Conflito nº021/17; AC de 20.12.2017, Conflito nº028/17; AC de 11.01.2018, Conflito nº030/17; AC de 11.01.2018, Conflito nº045/17; AC de 11.01.2018, Conflito nº027/17; AC de 08.02.2018, Conflito nº066/17; AC de 12.04.2018, Conflito nº071/17; AC de 12.04.2018, Conflito nº06/18; AC de 12.04.2018, Conflito nº07/18, entre outros.

No presente caso, tendo em conta, como já se disse acima, que a impugnação judicial foi remetida a juízo em Maio de 2018 esta questão está por si resolvida. Aliás, nem se mostra problematizada no âmbito deste conflito negativo.

A questão que gerou este conflito tem a ver, antes, com a natureza, urbanística ou não, das contra-ordenações pelas quais a sociedade impugnante foi punida.

O tribunal judicial entendeu tratar-se de contra-ordenações de índole urbanística, sem grandes explicações.

O tribunal administrativo entendeu não ser assim, uma vez que, diz, o âmbito das contra-ordenações urbanísticas, no que concerne ao empreiteiro, é o que resulta do artigo 98º do RJUE, e invoca em favor deste entendimento um artigo da Dra. Fernanda Paula Oliveira publicado pelo Centro de Estudos Judiciários [Contra-ordenações urbanísticas: âmbito e fase administrativa do processo, in «Direito do Urbanismo», CEJ, 2014-2017, páginas 127 e 128].

3. Está em causa a impugnação de uma decisão administrativa que condenou a sociedade «A………… LDA.» por violação do disposto nos artigos 4º, nº1, e 6º, nº1, do DL nº 12/2004, de 09.01 - alterado e republicado pelo DL 69/2011, de 15.06 - o que constitui ilícitos de mera ordenação social muito graves, de acordo com o que é estipulado no artigo 37º, nº1, e nº2, alíneas a) e c), do mesmo diploma.

Tais ilícitos de «mera ordenação social» consistem no exercício da actividade de construção sem alvará que autorize o respectivo titular a executar os trabalhos enquadráveis nas habilitações nele relacionadas [artigo 4º] ou sem título de registo se for esse o caso [artigo 6º].

De acordo com o artigo 4º, nº1 alínea l) do ETAF [redacção do DL 214-G/2015, de 02.10], os tribunais da jurisdição administrativa são os competentes para julgar os litígios relativos a Impugnações judiciais de decisões da Administração Pública que apliquem coimas no âmbito do ilícito de mera ordenação social por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo.

Apesar desta «limitação da competência material da jurisdição administrativa na área do ilícito da mera ordenação social» à matéria do urbanismo, sabemos que era intenção do legislador de 2015 remeter todo esse contencioso, em bloco, para os tribunais administrativos e só não o fez devido a insuficiências de estrutura e à reduzida rede de implantação geográfica destes tribunais.

Esse era, efectivamente, um segmento a considerar em matéria de alargamento do âmbito da jurisdição administrativa que constava da proposta inicial, objecto de debate público, mas que acabou por não vingar por se ter entendido «nesta fase, não incluir no âmbito desta jurisdição administrativa um conjunto de matérias que envolvem a apreciação de questões várias, tais como as inerentes aos processos que têm por objecto a impugnação das decisões da Administração Pública que apliquem coimas no âmbito do ilícito de mera ordenação social noutros domínios», já que se pretendia «que estas matérias sejam progressivamente integradas no âmbito dessa jurisdição, à medida que a reforma dos tribunais administrativos for sendo executada» - preâmbulo do DL nº 214-G/2015, de 02.10.

Assim, é de sublinhar, para efeito de resolução deste conflito, que a limitação de competência que consta da citada alínea l) a matérias de urbanismo não resulta - por parte do legislador - de uma ponderação de natureza mas antes de conveniência.

4. Sobre «contra-ordenações» estipula o artigo 98º do RJUE [DL 555/99, de 16.12], tal como vigorava à data dos ilícitos em causa - tempus regit actum - o seguinte:

«1- […] são puníveis como contraordenação: a) A realização de quaisquer operações urbanísticas sujeitas a prévio licenciamento sem o respectivo alvará de licenciamento, excepto nos casos previstos nos artigos 81º e 113º; b) A realização de quaisquer operações urbanísticas em desconformidade com o respectivo projecto ou com as condições do licenciamento ou da comunicação prévia; c) A execução de trabalhos em violação do disposto no nº2 do artigo 80º-A; d) A ocupação de edifícios ou suas fracções autónomas sem autorização de utilização ou em desacordo com o uso fixado no respectivo alvará ou comunicação prévia, salvo se estes não tiverem sido emitidos no prazo legal por razões exclusivamente imputáveis à câmara municipal; e) As falsas declarações dos autores e coordenador de projectos no termo de responsabilidade relativamente à observância das normas técnicas gerais e específicas de construção, bem como das disposições legais e regulamentares aplicáveis ao projecto; f) As falsas declarações no termo de responsabilidade do director de obra e do director de fiscalização de obra ou de outros técnicos relativamente: […]; g) A subscrição de projecto da autoria de quem, por razões de ordem técnica, legal ou disciplinar, se encontre inibido de o elaborar; h) O prosseguimento de obras cujo embargo tenha sido legitimamente ordenado; i) A não afixação ou a afixação de forma não visível do exterior do prédio, durante o decurso do procedimento de licenciamento ou autorização, do aviso que publicita o pedido de licenciamento ou autorização; j) A não manutenção de forma visível do exterior do prédio, até à conclusão da obra, do aviso que publicita o alvará ou a comunicação prévia; l) A falta do livro de obra no local onde se realizam as obras; m) A falta dos registos do estado de execução das obras no livro de obra; n) A não remoção dos entulhos e demais detritos resultantes da obra nos termos do artigo 86º; o) A ausência de requerimento a solicitar à câmara municipal o averbamento de substituição do requerente, do autor de projecto, de director de obra ou director de fiscalização de obra, do titular do alvará de construção ou do título de registo emitido pelo InCI, I.P., bem como do titular de alvará de licença ou apresentante da comunicação prévia; p) A ausência do número de alvará de loteamento ou da comunicação prévia nos anúncios ou em quaisquer outras formas de publicidade à alienação dos lotes de terreno, de edifícios ou fracções autónomas nele construídas; q) A não comunicação à câmara municipal dos negócios jurídicos de que resulte o fraccionamento ou a divisão de prédios rústicos no prazo de 20 dias a contar da data de celebração; r) A realização de operações urbanísticas sujeitas a comunicação prévia sem que esta tenha ocorrido; s) A não conclusão das operações urbanísticas referidas nos nºs 2 e 3 do artigo 89º nos prazos fixados para o efeito; t) A deterioração dolosa da edificação pelo proprietário ou por terceiro ou a violação grave do dever de conservação.»

A verdade é que nada do corpo textual deste artigo legitima a conclusão de que se trata de um elenco fechado, de modo a justificar o entendimento do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa.

Aliás, nem a própria doutrina que é por ele invocada vai nesse sentido, já que a citada autora - Dra. Fernanda Paula Oliveira -, como bem sublinha o Ministério Público no seu parecer, não defende que as únicas contra-ordenações urbanísticas, ainda que concernentes aos empreiteiros, sejam as previstas no citado artigo 98º do RJUE, limitando-se a veicular o entendimento de que essas, sem dúvida, se incluem no âmbito da alínea l) do nº1 do artigo 4º do ETAF. E é a mesma autora que, num outro artigo, também publicado pelo CEJ [Contra-ordenações urbanísticas: os casos, «Regime Geral das Contra-ordenações e as Contra-ordenações Administrativas e Fiscais», CEJ, e-book de Setembro/2015, página 80], depois de elencar as contra-ordenações previstas nos artigos 98º do RJUE, diz o seguinte: «Fica, assim, feito o registo do elenco das contraordenações urbanísticas no âmbito do Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação, com nota de que se trata de uma pequena parte das contraordenações urbanísticas mas, também, com a consciência de que são estas as que maior relevo assumem e que ocorrerão na maior parte dos casos.»

Seja como for uma coisa é certa, as contra-ordenações aqui em causa sancionam a execução de obras por empreiteiro com falta de título para as poder executar, e não há razão alguma para, após a ponderação do elenco das alíneas do artigo 98º do RJUE, devermos concluir que elas têm uma natureza diferente das que aí estão previstas. Até porque a conduta ilícita sancionada com coima não é a mera falta de alvará [artigo 4º], ou de título de registo [artigo 6º], mas antes o exercício da actividade de construção na sua falta. O que significa o exercício de «actividade urbanística», por natureza.

Em conclusão: assiste razão à decisão proferida pelo tribunal judicial, devendo a competência, em razão da matéria, para conhecer da impugnação judicial em causa, ser atribuída ao tribunal da jurisdição administrativa.

III. Decisão

Nestes termos, decidimos resolver o presente conflito mediante a atribuição da competência, em razão da matéria, para conhecer da presente causa, ao Tribunal Administrativo.

Sem custas.

Lisboa, 23 de Janeiro de 2020. – José Augusto Araújo Veloso (relator) – Manuel Tomé Soares Gomes - José Francisco Fonseca da Paz – António Manuel Clemente Lima – Maria Benedita Malaquias Pires Urbano – Maria Olinda da Silva Nunes Garcia.